“O rei veio a Memphis em um dia de festa. Ele navegou para cima e para baixo em seu navio para poder contemplar os dois lados do lugar. Assim que desembarcou no bairro da cidade chamado Onkhtawy, ele entrou no templo escoltado por seus magnatas, suas esposas e seus filhos reais, com todas as coisas preparadas para a festa; sentado no navio, ele navegou para cima, a fim de celebrar a festa em honra de todos os deuses que habitam em Memphis, de acordo com a grandeza da boa vontade no coração do senhor da terra, e a coroa branca estava em seu testa.”
Inscrição na estela sepulcral de Pshereni-ptah relatando um evento sobre o faraó Ptolemeu XII, pai da famosa Cleópatra [1]
Jéssica Inanna, também publicado no Esquerda Online.
Anunciado o docudrama sobre Cleópatra VII, a famosa faraó, seguiu-se uma enorme “polêmica”. No filme da Netflix, atriz principal é negra, o que supostamente a “proíbe” de interpretar o papel. “Cleópatra”, dizem muitos comentários, “era puro sangue grego” (sic), “portanto era branca, branquíssima, até loira” (sic!). Ora, na verdade há “furos” na árvore genealógica ptolemaica. Mesmo considerando apenas os casamentos “oficiais”, a dinastia ptolemaica continha 12,5% de seu DNA herdados de um rei persa, 15,6% de uma mulher iraniana e 12,5% de uma mulher desconhecida. Afirmar que os ptolemaicos se preocupavam em manter um “puro sangue grego” não passa de um anacronismo que reproduz ideologias pseudocientíficas sobre “raças humanas” que surgiram no século XVI.
Sobre o docudrama da Netflix, verdade seja dita: a “revolta” não é porque a Cleópatra esteja supostamente sendo retratada com fenótipo “anacrônico”. Pelo contrário: há várias dezenas de retratações históricas de Cleópatra, mas poucas (talvez nenhuma) a retrate de maneira fidedigna em sua aparência. Além disso, filmes sobre acontecimentos históricos raramente deixam de ser anacrônicos. A questão é uma mulher que ganhou destaque na História ser interpretada por uma atriz “negra”. Aliás, Adele James, a atriz, não se declara “negra”, mas miscigenada. [2]
A descendência de Apama I, sogdiana, e Mithradates II, de uma dinastia persa
É lógico que a família ptolemaica, como qualquer dinastia, era muito seletiva em relação aos seus matrimônios. A endogamia (casamentos consanguíneos) era muito frequente, assim como na dinastia selêucida e em outras de origem na Macedônia. Há, no entanto, duas notáveis exceções: Berenice II, cuja mãe, Apama II, era selêucida; e Cleópatra I, que era princesa selêucida e neta de Mithradates II, rei persa do Reino do Ponto. Ambas eram descendentes de Apama I, mulher nobre da Sogdia (um antigo reino iraniano) que se tornou a primeiríssima rainha selêucida.
Apama I e Mithradates II, de fato, eram parentes distantes de Cleópatra I, ainda mais de Cleópatra VII! Isso é uma característica da prática de endogamia: preservar, por muitas gerações, uma fração considerável do DNA de ancestrais mais antigos.
Vamos fazer as contas!
Mithradates II era avô materno de Cleópatra I, portanto 1/4 (25%) do DNA dela originou-se nele.
Apama I era avó paterna de Apama II, portanto 1/8 (12,5%) do DNA de Berenice II (filha de Apama II) foi herdado de Apama I.
Ora, Berenice II casou-se com Ptolemeu III, seu meio-primo, e o casal gerou Ptolemeu IV e Arsinoe IV. Ambos, portanto, herdaram 1/16 (6,25%) do DNA de Apama I. Os dois se casaram e seu filho, Ptolemeu V, também herdou 1/16 do DNA de Apama I (1/32 do pai e 1/32 da mãe). Ptolemeu V casou-se com Cleópatra I.
Finalmente, voltamos a Cleópatra I. Vamos de cima para baixo: [3] Seleucus I, o rei fundador da dinastia selêucida, casou-se com Apama I e o casal gerou Antiochus I (o herdeiro do trono) e Achaeus. Este, por sua vez, casou-se com uma mulher desconhecida. Bem, estou supondo que foi apenas uma – vamos chamá-la de Maria Joana. Achaeus e Maria Joana tiveram duas filhas, Laodice I e Laodice II. [4] Ambas herdaram, obviamente, 1/4 do DNA de Apama I e 1/2 de Maria Joana.
Antiochus II, por ser filho de Antiochus I, herdou 1/4 do DNA de Apama I. Ao casar-se com Laodice I, seus filhos (Seleucus II e Laodice do Ponto) também herdariam 1/4 do DNA de Apama I (1/8 pelo pai e 1/8 pela mãe) e 1/4 de Maria Joana (pela mãe).
Seleucus II casou-se com Laodice II (isso mesmo, a irmã da mãe!) e seus filhos, Seleucus III e Antiochus III, também herdaram as mesmas frações: 1/4 de Apama I (1/8 pelo pai, 1/8 pela mãe) e 1/4 de Maria Joana (pela mãe).
Voltemos à Laodice do Ponto: por que ela tem esse nome? É porque ela se casou com Mithradates II e teve, com ele, a filha Laodice III, que herdou, portanto, 1/4 de Apama I e 1/4 de Maria Joana (ambas pela mãe).
Finalmente chegamos a Cleópatra I! Seu pai, Antiochus III, e sua mãe, Laodice III, ambos tinham 1/4 de Apama I e 1/4 de Maria Joana.
O veredito final. Cleópatra I herdou 1/4 do DNA de Apama I, 1/4 de Maria Joana e 1/4 de Mithradates II. Ao casar-se com Ptolemeu V (que tinha 1/4 de Mithradates II), seus filhos e filhas (Ptolemeu VI, Ptolemeu VIII, Cleópatra IV) herdariam 1/8 (15,6%) de Apama I, 1/8 (12,5%) de Maria Joana e 5/32 (12,5%) de Mithradates II.
Os casamentos oficiais entre descendentes desse casal foram endogâmicos. Pressupondo que não há nenhum “furo” na árvore genealógica, todos os descendentes teriam as mesmas frações do DNA herdadas dessas três pessoas.
De Apama I a Cleópatra I, 5 gerações. De Cleópatra I a Cleópatra VII, outras 4. Ao todo 9 gerações, mas a hereditariedade é típica de 3 gerações de distância.
Os “furos” na dinastia ptolemaica
Pressupor que não há nenhum “furo” na árvore genealógica inclui pressupor que:
Ptolemeu XII era filho (biológico) de Ptolemeu IX e Cleópatra IV.
Cleópatra V também era filha do mesmo casal, ou então, de Cleópatra Selene com Ptolemeu VIII (alguns historiadores dizem uma coisa, outros dizem outra).
Cleópatra VII era filha (biológica) de Ptolemeu XII e Cleópatra V.
Há, no entanto, razões para duvidar das três hipóteses acima, por exemplo:
Não há nenhuma fonte primária [5] que afirme qualquer uma das três hipóteses acima. Em particular, não há relato que diga o nome do pai nem da mãe de Cleópatra V Triphaena. A única possível fonte indireta é um relato de que Ptolemeu X e Cleópatra Selene tinham uma filha – cujo nome não é dado.
Há três fontes primárias de que Ptolemeu XII era filho “ilegítimo”: dois textos dizem que ele era conhecido como Ptolemeu Nothos (ou Ptolemeu, o bastardo) e outro que Ptolemeu IX, pai de Ptolemeu XII, tinha apenas uma filha legítima, Berenice III. [6]
Há um relato de Strabo muito interessante. [7] Houve uma revolta em Alexandria (capital do Egito) e os rebeldes expulsaram Ptolemeu XII do Egito. Como ele “teve três filhas, das quais uma, a mais velha, era legítima, proclamaram-na rainha” – a filha era Berenice IV. Como seus irmãos eram infantes, procuraram “um marido para ela da Síria, um certo Cybiosactes”, que seria um impostor; mas “em seu lugar veio um homem que também fingiu ser filho de Mithradates Eupator – quero dizer Archelaus”. Eventualmente, Berenice é executada pelo próprio pai que então declara Cleópatra VII como corregente.
Veja que curioso: além de afirmar que Berenice era única filha legítima (implicitamente: Cleópatra VII não era), o relato é que Berenice tentou se casar com um príncipe sírio (da dinastia selêucida) e depois com um príncipe filho de Mithradates VI, da mesma dinastia de Mithradates II.
Historiadores supõem que Strabo, ao afirmar que Cleópatra VII era ilegítima, estava cometendo alguma confusão (seráo?). De qualquer forma, a tentativa de golpe mostra que, ao menos, ela se dispunha a se casar com um príncipe estrangeiro e que, ao menos para os revoltosos, o casamento com Berenice, por si só, tornaria seu marido legítimo herdeiro do trono faraônico.
Finalmente, um relato de Apiano [8] afirma que os irmãos Ptolemeu XII e Ptolemeu do Chipre se tornaram noivos de duas filhas de Mithradates VI, Mitrhadatis e Nyssa. Muitos historiadores afirmam que tais casamentos não ocorreram, afinal, Ptolemeu XII casou-se com Cleópatra V. Isso ignora que, na Macedônia e no Egito, casamentos poligâmicos eram permitidos.
Na poligamia do Egito, uma das esposas do faraó era considerada a principal e se tornava faraó (e corregente). Os filhos e filhas das outras esposas do faraó entravam na linha sucessória após filhos e filhas da esposa principal. Romanos denominavam como concubinas essas “esposas menores” dos ptolemaicos e não citavam seus nomes, porque não reconheciam a legitimidade desses casamentos. Para um exemplo disso, pesquise sobre as 4 esposas e 12 filhos de Ptolemeu I.
Ou esse caso mais exemplar. Ptolemeu II casou-se com Arsinoe II, sua irmã. Mais de 15 anos depois, ele se casou com Arsinoe I, princesa da Trácia, com quem teve dois filhos e uma filha. Após a morte de Arsinoe I, seus filhos e filha foram adotados por Arsinoe II, um deles, Ptolemeu III, herdou o trono.
Estamos realmente discutindo quanto pigmento a pele da Cleópatra tinha?
Acho muito interessante a discussão sobre as possíveis ancestralidades de Cleópatra. Primeiro que ela escancara que há muita gente anacronicamente projetando uma ideologia de “raça pura” sobre a família ptolemaica e, pior ainda, chamando isso de “fato histórico”.
Pensando bem, isso não é interessante, na verdade é assustador.
Segundo que isso me fez conhecer a hipótese que Cleópatra teria sido neta, por parte materna, de Mithradates VI e Hypsicratea/Hypsicrates [9]. Uma teoria que, na minha opinião, faz sentido e possivelmente diz mais sobre quem foi Cleópatra do que saber a quantidade de eumelanina produzida pelos melanócitos de sua pele.
Ora, ainda hoje, na Grécia, encontram-se pessoas que têm tom de pele oliva, até mesmo um tom próximo da atriz Adele James. Sem falar na variedade de cores de pele na Pérsia, no Irã, no Egito… Ora, a própria mãe dela pode ter sido, por exemplo, uma sacerdotisa de Memphis ou algo assim.
A discussão não seria grande problema se fosse como, sei lá, discutir qual a cor do cavalo de Napoleão. Mas, obviamente, está muito longe disso. Aponta-se, inclusive, como “evidência” as retratações de Cleópatra que evidenciam um fenótipo “grego”. Gente, o que raios o tamanho do nariz e o formato do rosto têm a ver com cor de pele?
Uma discussão atrelada é a crítica de que retratar Cleópatra como egípcia seria um equívoco, já que ela era de uma dinastia grega macedônica. Essa, sim, é uma discussão interessante, mas complexa. De toda forma, o trem descarrilha quando se apela para o argumento a suposta cor de sua pele ou de seu cabelo.
Honestamente, não assisti à série ainda, portanto não vou opinar sobre sua qualidade ou precisão histórica. Escrevo esse texto tão somente porque a discussão que estou vendo por aí está num nível ridiculamente absurdo e racista.
Notas
[1] Tradução e negrito nosso. Disponível em:
https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Gazetteer/Places/Africa/Egypt/_Texts/BEVHOP/12*.html
[2] Vale destacar que, no Reino Unido, a autodeclaração racial segue regras distintas do Brasil. Aqui, qualquer pessoa que se autodeclare com cor/etnia/raça preta ou parda é considerada negra, inclusive em questões legais envolvendo cotas. No Reino Unido, existe autodeclaração de pessoa miscigenada. Note que, pelos dados deste texto, Cleópatra era miscigenada – ao menos do ponto de vista de nacionalidade – e talvez isso inclusive se refletisse na cor da sua pele. Isso tudo depende muito, é lógico, da pergunta que vale ouro: quem era, afinal de contas, a mãe de Cleópatra VII Philopator?
[3] Você pode acompanhar a árvore genealógica selêucida pelo link. Note que apenas a parte cima será usada. Além disso, há um erro na árvore: Laodice II era irmã de Laodice I.
https://www.instonebrewer.com/TyndaleSites/Egypt/ptolemies/affilates/aff_seleucids.htm
[4] Algumas fontes afirmam que Laodice II era filha de Andromacus, portanto neta de Achaeus. Creio que isso é apenas uma confusão: Polybius, historiador da antiguidade, afirma que Andromacus era irmão das duas Laodices:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Plb.+4.51
[5] Por “fonte primária”, consideramos textos da antiguidade (por exemplo, de geógrafos ou historiadores romanos), ou ainda inscrições arqueológicas vindas daquela época. Não consideramos, por razões óbvias, por exemplo, a peça teatral de Shakespeare sobre Cleópatra – afinal, ele, um dramaturgo da Idade Média, não tinha acesso a fontes históricas e nem mesmo o interesse de retratar eventos históricos de maneira objetiva.
[6] Pausanias, Descrição da Grécia [1.9.3]. Disponível em:
https://www.theoi.com/Text/Pausanias1A.html
[7] Strabo, Geografia [XVII.11]. No link abaixo, o primeiro parágrafo:
https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Strabo/17A2*.html
[8] Apiano, Guerras Mitridáticas [XVI.113]. Disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0230%3Atext%3DMith.%3Achapter%3D16%3Asection%3D111
[9] Hewitt Freiburg, From Amazon to Pharaoh – Following a Trail from Hypsicratea to Cleopatra VII. Disponível em:
https://www.academia.edu/13591257/From_Amazon_to_Pharaoh_Following_a_Trail_from_Hypsicratea_to_Cleopatra_VII?fbclid=IwAR0EGprkDTaSwf00uyoLQ40jvNkjUp8b1rqFHBi-GUb5jK_kgDOFlOTxN1U