quarta-feira, 30 de julho de 2014

Não à transfobia, venha de quem vier!

Por que as pessoas trans são invisíveis? Por que todo mundo, mesmo dentro dos próprios movimentos que teoricamente deveriam entender alguma coisa sobre opressões, não entende quase nada sobre a nossa própria existência? E quando finalmente temos condições de anunciar nossa existência, ainda tentam nos dizer quem nós somos e do que nós precisamos. Temos a impressão que as pessoas tentam o tempo todo nos empurrar de volta à inexistência. Não, engano meu, não é impressão, isso realmente acontece. É isso que a humanidade "aprendeu" durante milênios.

A inexistência social das pessoas trans*

A criminalização da "homossexualidade" (antes denominada "sodomia") significou, durante milênios, o genocídio de LGBTs. Na verdade, alteraram a própria História para tentar apagar a nossa existência, mas não conseguiram. Durante a Idade Média, a perseguição a LGBTs impossibilitava que sua existência fosse conhecida senão por um setor minoritário da sociedade. A nossa sociedade ficou alienada a tal ponto que não sabia sequer que LGBTs existem e sempre existiram dentro dela. Ainda que esta alienação foi revertida em parte pela luta do movimento LGBT, ela continua a existir em todos os países capitalistas e, na maioria deles, continua a atingir mais fortemente as pessoas trans*.

Quando os comunistas do século 19, mesmo o próprio Marx, se depararam com os homossexuais que apareciam na imprensa ou lançavam livros, acreditaram que a homossexualidade era uma degeneração burguesa, já que estes homossexuais eram todos burgueses. Mesmo na década de 1920, a maioria dos comunistas que defendiam a descriminalização da homossexualidade (como ocorreu na Revolução Russa) acreditavam que não existia homossexualidade na classe operária.

No campo da (pseudo-)esquerda, o troféu de burrice vai para as seitas stalinistas que acreditam que as pessoas trans são uma degeneração burguesa pós-moderna. Marx, apesar de ter estudado inúmeros livros, ao menos tinha duas desculpas para sua burrice: (1) ele vivia no século 19 e (2) não existia identidade LGBT antes do surgimento do capitalismo, mas, ah, esses stalinistas! Em que mundo vivem? As centenas de tribos africanas e indígenas em que travestis e transexuais são aceitos socialmente mandaram lembranças.

A invisibilidade lésbica, bissexual e trans também são expressões desta mesma alienação. Quando homens gays rejeitam a travestilidade porque acreditam que um "homem" não precisa vestir-se ou comportar-se "como se fosse" uma mulher, isso nada mais é do que a conclusão precipitada de alguém que se depara com uma travesti pela primeira vez na vida. Quando uma pessoa é expulsa de uma balada gay porque beija alguém do gênero oposto, é porque os gays não sabem que existem pessoas bissexuais. O mais curioso é quando homens gays ficam em roda conversando sobre sexo entre homens e outras coisas masculinas e ainda por cima reclamam quando as mulheres lésbicas não se interessam com essas conversas! Eles por acaso são burros? Sim, são alienados!

Foram as travestis as primeiras que se revoltaram com a polícia em Nova Iorque em 1969, dando origem à Revolta de Stonewall. É triste, muito triste, que hoje o aniversário desta revolta seja popularmente conhecido como "Parada Gay". Gay? Ai, ai...

Muitas feministas radicais, por incrível que pareça, dizem que as mulheres trans são homens que dizem que são mulheres porque querem ocupar os movimentos feministas e os espaços públicos ocupados pelas mulheres. Se nossa história não tivesse sido apagada, essas feministas saberiam que, pelo contrário, as pessoas trans existem desde "sempre" e que foram expulsas dos espaços públicos da mesma forma que as mulheres.

Fazem questão de excluir as mulheres trans de seus espaços porque elas têm "sexo masculino". Muitas vezes dizem que as mulheres trans têm privilégios masculinos. Oi? Privilégios masculinos?

Quem são as travestis?

Uma vez que existe um esforço constante para apagar as travestis da história e da sociedade, existem poucos dados sobre a vida social das travestis. Mas temos alguns poucos dados.

Gabriela Monelli, presente!
Segundo o GGB, dos assassinatos documentados de LGBTs em 2013, 35% eram travestis. A estimativa do GGB de 2011 é que existem 50 mil travestis e 2 mil transexuais no Brasil. Ou seja, ano passado, cerca de uma travesti a cada 460 foi assassinada em 2013. Comparando os dados do GGB de forma relativa à população (considerando que 7,8% dos homens se declararam homossexuais num estudo do Instituto de Psiquiatria do HC da USP em 2009), concluímos que a probabilidade de uma travesti ser vítima fatal de um crime de ódio é cerca de 90 vezes maior que a de um homem gay. Um estudo feito nos EUA aponta que 46% dos homens transexuais e 43% das mulheres transexuais já tentaram cometer suicídio em sua vida. Temos também alguns dados sobre as travestis na Argentina: lá, a expectativa de vida de uma travesti é de 35 anos, 90% delas vive em situação de prostituição e 16% não concluíram o ensino fundamental.

A conclusão inevitável é que a grande maioria das travestis (que começam a se identificar, em média, entre 10 e 12 anos de idade) é expulsa das escolas e é arrastada à prostituição por não encontrarem nenhum espaço no mercado de trabalho formal. Um dos únicos espaços sociais que não expulsam sistematicamente as travestis de seu interior são as casas de prostituição. Saúde pública, transporte público, polícia, sistema judiciário e universidades são apenas alguns exemplos das instituições nas quais as travestis são constantemente hostilizadas. Entre as travestis, são também comuns os relatos de estupro, assédio e agressões físicas e psicológicas, desmoralizações, etc.

A exploração sexual de travestis é bastante lucrativa. O tráfico humano associado à prostituição também atinge as travestis ainda crianças. Existem, inclusive, especialistas em procurar as travestis jovens que ainda estão dentro do armário. Só como um exemplo, imagine um "menino" de 12 anos que sonha constantemente em "tornar-se" uma menina, que é hostilizada na escola e em sua casa, quando não é expulsa. Este(a) especialista, no momento oportuno, lhe faz uma oferta: ela pode ganhar um corpo de mulher, mas terá que "trabalhar" para pagá-lo. Para quem não sabe, para as travestis da periferia, este "corpo de mulher" é criado a partir de pesadas doses de hormônios e pela aplicação clandestina de silicone industrial em seu corpo, o que denominam de bombadeiras. É desnecessário dizer o quanto isso é arriscado para a saúde e a própria vida destas adolescentes. Esta travesti, ainda adolescente, não terá escolha senão ser vítima de exploração sexual até pagar sua "dívida".

Resumindo, a posição social mais comum das travestis está muito longe de serem as posições privilegiadas de alguns homens: os empregos mais bem remunerados, os postos administrativos e políticos ou entre os capitalistas. Algumas travestis podem ser encontradas nos postos típicos ocupados pela maioria das mulheres, mas a maioria das travestis não são professoras e pedagogas mal remuneradas, nem cozinheiras, faxineiras, terceirizadas, etc. A condição mais comum das travestis é muito parecida com a das mulheres mais oprimidas, mais pobres e marginalizadas da nossa sociedade, assim como acontece com muitas mulheres negras.

Portanto, do ponto de vista social, as travestis não são homens, mas mulheres, mulheres oprimidas, pobres e marginalizadas. Elas não são vítimas apenas dos crimes de ódio direcionados a LGBTs, mas também da naturalização da violência contra a mulher, da objetificação e sexualização da mulher, da exploração sexual, da expulsão dos espaços públicos e de quase todo tipo de marginalização e violência que as mulheres sofrem (exceto aqueles relacionados à gravidez e à reprodução). Mesmo as travestis que não se identificam como mulheres, na maior parte das vezes estão socialmente mais próximas das mulheres do que dos homens. É verdade que as pessoas dizem que as travestis são homens disfarçados como mulheres, mas, ao mesmo tempo, as travestis são tratadas como aberrações da natureza e como mulheres indesejadas.

Invisíveis.

Quem determina nossa existência?

Parece ser óbvio, deveria ser óbvio, mas ainda precisamos dizer pra todo mundo que nós somos quem nós somos. Quem determina quem nós somos e quem nós deveríamos ser não é a sociedade, nem os capitalistas da mídia, da imprensa e das religiões que mais parecem empresas, nem as teorias acadêmicas absurdas que reduzem o nosso gênero à nossa genitália, nem os psicólogos e endocrinólogos, muito menos as pessoas que nos chamam de pirocos, mas sim nós mesmas.

sábado, 19 de julho de 2014

Uma pequena palavra sobre este inusitado blog

Olá! Meu nome é Jéssica e eu tenho uma coisa a dizer.

Há até cerca de um ano atrás, eu tinha um blog, que continua no ar, mas está abandonado. Sim, abandonei o blog junto com as ideias absurdas que ele carrega. Não que eu o negue: poderia eu negar minha própria história, minha própria existência? Mas ah! Sim, tem muita merda ali!

Minhas ideias mudaram, minha concepção de mundo mudou, minha vida mudou, eu mudei. Mas nem tanto assim.

Aquele outro blog, eu o criei por uma razão muito simples, porém crucial para a minha própria existência, para minha própria identidade, direito ao qual me foi negado e continua sendo negado dia após dia, quando eu ando na rua, quando eu apareço publicamente, quando eu tento conversar. No começo de 2011, um "escândalo" familiar me abriu os olhos: eu precisava ter minha própria opinião, urgente. O constrangimento, a intimidação, a violência, a opressão tinham me domesticado a não dizer nada até o ponto que me fez explodir para fora tudo o que já existia do lado de dentro. Mas explodir para fora... para onde? Aonde explodir tudo aquilo, se não aprendi a falar? Eu só sei escrever!

Estava em um planeta estranho, em um mundo confuso e queria sair dali, como a Alice, no país das maravilhas medonhas.
Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.
Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice.
Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.
Lewis Carrol

Desorientada como uma cega no meio de um tiroteio, no fundo eu já sabia que, para ter uma opinião própria, precisava construir uma. Fui assim construindo minha própria identidade a partir do que me foi ensinado, construindo novas ideias e pouco tempo depois deixando elas pelo caminho. Todo mundo pensa, mas ninguém pensa sem um modo de pensar e ninguém muda o modo de pensar sem mudar, ao mesmo tempo, sua própria vida, sua própria existência.

Para explicar de onde saí, por onde percorri e aonde cheguei, precisaria mais do que uma pequena palavra. Por ora, resta-me dizer que não cheguei em lugar algum porque ainda não morri. Sei falar mais do que sabia em 2011, o mundo ao meu redor mudou em muitos sentidos, mas a necessidade de escrever permanece. Sem blog, não deixei de escrever, mas voltou o sufoco e com ele o desespero. Precisei chegar à mesma conclusão que antes: preciso escrever, preciso de um blog, antes que eu me afogue. Um novo blog para uma nova pessoa:

uma travesti marxista.


P.S.: Melhor deixar aqui este aviso antes que alguém venha reclamar.