quarta-feira, 15 de abril de 2015

Transgeneridade na ponta do lápis (crítica às teses "científicas")

Não temos muitos dados precisos sobre a população trans no Brasil. Infelizmente, o IBGE não perguntou, em seu último censo, a identidade de gênero nem o nome social das pessoas entrevistadas. Enquanto o governo do PT continua fingindo que a gente não existe, com políticas LGBTs que definham por falta de financiamento, o Congresso ataca diretamente os nossos direitos e estimula cada vez mais o ódio contra nós. Não há nenhum censo sobre a nossa realidade nesse país - e, diga-se de passagem, o mesmo pode ser dito para quase todos os países do mundo. As estimativas que encontrei, que são defendidas por diversas ONGs e instituições do país, não parecem muito confiáveis.

Felizmente, é possível encontrar algumas pesquisas e estimativas mais precisas vindas de outros países. Vamos aos números!

Estimativas da população trans

Ano passado, a Índia incluiu três opções no campo gênero: "masculino", "feminino" e "terceiro gênero". Isso foi resultado de uma decisão da Suprema Corte em reconhecimento da existência daquelas popularmente conhecidas como hijras, que são socialmente semelhantes às travestis latino-americanas. No censo, 488 mil pessoas se identificaram como pertencendo ao terceiro gênero. Isso significa que existe, no mínimo, 1 pessoa transgênera para cada 2480 pessoas na Índia (abreviadamente: 1:2480). Se a proporção de travestis no Brasil fosse a mesma, teríamos 82 mil travestis no país!

Hijras são admitidas pela primeira vez na História
no programa de pós-graduação através de um
sistema de cotas na Universidade de Nova Delhi, Índia
Entretanto, existem vários problemas nessa proporção. Primeiro, é que não são podem ser contabilizadas as pessoas que vão um dia se identificar como trans (embora seja possível calcular estimativas delas). Segundo é que a população trans é, em média, muito jovem. Além disso, acredita-se que existem pessoas transgêneras que não se identificaram no censo. Além das hijras, existem outras pessoas transgêneras na Índia que não são socialmente reconhecidas.

Uma crítica às estimativas "oficiais" se encontra no belo artigo acadêmico de Lynn Conway, que é cientista da computação e engenheira elétrica, e Femke Olyslager, também engenheira elétrica, ambas mulheres trans. Elas apontaram diversos erros cometidos pelas estimativas anteriores, porque partiam de pressupostos absurdos: por exemplo, que todas as pessoas transexuais realizam a chamada CRS (cirurgia de redesignação "sexual"). Também ignoraram que essas realizam a CRS com, em média, 40 a 45 anos, o que significa que a contagem ignora, no mínimo, metade das pessoas transexuais adultas (ou seja, aquelas que ainda irão realizar a CRS).

A partir de entrevistas feitas com cirurgiões (no ano de 2001) que realizam a CRS, elas calcularam que, entre as pessoas designadas ao sexo masculino, no mínimo 1 a cada 1300 realizaram ou vão realizar a CRS nos EUA. Isso não é um ponto fora da curva: o mesmo cálculo com dados de um estudo em Singapura (no ano de  leva à proporção de 1 mulher trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 2000 pessoas designadas ao sexo masculino, e 1 homem trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 5600 designadas ao sexo feminino. No Reino Unido, a proporção de mulheres trans que fizeram ou farão a CRS é 1:1900.

Aviso: Na minha opinião, não há razão para calcular a proporção de mulheres trans entre pessoas designadas ao sexo masculino. Conway e Olyslager fazem esta estimativa porque partem da concepção que a causa da transexualidade é biológica.

Transgeneridade e contexto socioeconômico


Travestis na América Latina e Hijras na Índia:
subemprego, marginalização, ausência de
emprego formal e de direitos humanos.
Quando as hijras foram questionadas a qual gênero elas pertenciam, 5% responderam "transgênero", 36% responderam "feminino" (ou seja, como mulher) e 59% responderam simplesmente "hijra". Este perfil identitário se assemelha muito ao das travestis latino-americanas. Tanto "hijra" quanto "travesti" são identidades de gênero femininas, que se apresentam através de nomes e pronomes femininos. Embora não haja estatísticas, é bastante conhecido que uma parte das travestis se identifica como mulher e outra parte se identifica simplesmente como travesti, assim como ocorre com as hijras.

No estudo feito na Argentina, 67% das pessoas trans entrevistadas eram travestis. Apenas 5,3% das pessoas não se identificava nem como travesti, nem como mulher ou homem trans (ou transexual).

Identidades das pessoas trans
entrevistadas em La Matanza, Argentina

No estudo feito nos EUA, as identidades são bem distintas. Lá são encontradas identidades de gênero não-binárias, ou seja, que não são nem exclusivamente masculinas nem exclusivamente femininas. É o caso do gênero queer e "dois-espíritos". Esta última identidade não-binária é presente em diversas tribos indígenas norte-americanas. Esse nome foi escolhido porque várias delas acreditam que a pessoa dois-espíritos carrega um espírito feminino e outro masculino. Conforme a pesquisa indica, muitas pessoas não-indígenas se identificam com o termo.

O estudo permitiu que as pessoas se identificassem com diversas identidades, mas colocou as pessoas em categorias analíticas para prosseguir no estudo.

Classificação analítica das pessoas trans entrevistadas nos EUA

De acordo com o relatório, "transgender MTF" e "transgender FTM" são sinônimos de mulher transgênera e homem transgênero, respectivamente. "Gender non-conforming" é o nome dado às pessoas que não se encaixavam nas outras duas categorias (o que inclui gêneros não-binários).

Aviso: os termos MTF e FTM são inadequados.

A institucionalidade expressa nas leis e nos livros de psiquiatria afirmam que o que diferencia a mulher transexual e a travesti é que a primeira tem repulsa por sua genitália por motivos biológicos e deseja, portanto, realizar uma vaginoplastia, enquanto a travesti não tem repulsa pela genitália. Entretanto, na pesquisa argentina, 67% das pessoas trans são travestis, enquanto, na pesquisa estadunidense, apenas 14% das mulheres transgêneras não realizaram nem desejam realizar a vaginoplastia.

Se esses gêneros ocorressem por razões biológicas, haveria alguma correspondência às travestis (tanto em subjetividade quanto em identidade) nos EUA e que ocorre com mais ou menos a mesma proporção que ocorre na Argentina e na Índia. Além disso, a presença de 13% de pessoas com identidade de gênero não-binária não encontra correspondência na Argentina. A tese de que a disforia genital tem razão biológica não se sustenta diante desses números.

A transgeneridade é, de fato, um fenômeno universal (ou praticamente universal) nas sociedades em que existe o gênero. Entretanto, a forma como ela se expressa depende das relações socioeconômicas (leia-se: sociais e econômicas) de cada sociedade. Muito provavelmente, as mulheres trans buscam uma adequação melhor do corpo porque nos EUA a inserção de pessoas trans no mercado de trabalho é maior. A busca pela cirurgia diminui a rejeição, aumenta a possibilidade de encontrar e manter um emprego, alterar os documentos, etc. Isso, evidentemente, também tem um reflexo subjetivo. No Brasil, por outro lado, o acesso à CRS é muito mais precário e burocratizado, de forma que não é costume das travestis buscarem-na. Isso também tem seu reflexo subjetivo na construção da identidade de gênero.

Utilizando os dados de Conway e Olyslager (1 a cada 2500 pessoas designadas ao sexo masculino já realizaram a CRS) com o estudo da National Task Force nos EUA (23% das mulheres transgêneras já realizaram a CRS), calculamos que, nos EUA, a proporção de mulheres trans é cerca de 1 a cada 580 mulheres, a proporção de homens trans é de 1 a cada 970 homens, a proporção de pessoas com identidade de gênero trans (ou seja, mulheres e homens trans e gêneros não-binários) é de 1 a cada 620 pessoas!

Outro estudo no Reino Unido afirmou que nesse país o número de pessoas que busca um tratamento para a "disforia de gênero" (sic) está aumentando em cerca de 15% a cada ano (que é a mesma taxa na Europa). Isso significa que a cada 5 anos, a população trans que busca tratamento na Europa dobra!

A estimativa pode ser imprecisa, mas não resta dúvida que a quantidade de pessoas trans nos EUA é proporcionalmente muito maior do que a na Índia. Todos esses dados nos levam a concluir que a existência de pessoas trans numa sociedade depende muito mais dos fatores socioeconômicos do que dos fatores religiosos e culturais. Ora, os EUA é um país majoritariamente cristão e nele os pastores fundamentalistas alimentam a aversão e o ódio às pessoas trans. A sanha transfóbica dos fundamentalistas alimenta a violência e os crimes de ódio como também a depressão e as taxas de suicídio. Os dados parecem indicar que isso leva as pessoas trans a buscarem ainda mais os tratamentos e as cirurgias para conseguir se encaixar na sociedade e evitar a violência.

A transfobia nos mata todos os dias, mas não faz com que deixemos de ser trans.

Transfobia: de norte a sul, de leste a oeste...

Em La Matanza, [2] 51% das travestis e mulheres trans responderam que sua principal atividade remunerada é a prostituição, que, na prática, é criminalizada. 85% delas afirmaram que estão ou já estiveram em situação de prostituição. Na índia, 32% das hijras afirmaram que sua principal atividade remunerada é a esmola, enquanto 21% afirmaram que é a prostituição, sendo que ambas atividades são criminalizadas. Outras 32% trabalham em uma ONG voltada para hijras ou prevenção de AIDS.

Conseguir um emprego formal é um desafio. Na argentina, [2] 44% das pessoas entrevistadas realizaram um curso de capacitação profissional, mas, dentre estas, 52% responderam que isso não as ajudou a encontrar um emprego. 72% das pessoas disseram estar procurando outra fonte de renda e, destas, 82% responderam que esta busca é dificultada por sua identidade trans.

Nos EUA, [3] a exclusão das pessoas trans do mercado de trabalho formal é menor, mas ainda assim o acesso e as condições de emprego são bastante precárias. Enquanto 7% da população está desempregada, 14% das pessoas trans também estão. Enquanto 7% da população estadunidense recebe menos que $10 mil por ano, na população trans essa proporção sobre para 15%, sobe para 28% considerando as pessoas trans latinas e para 35% entre as pessoas trans negras. 97% afirmaram terem sido maltratadas no trabalho, incluindo perseguição por parte de colegas (50%), uso repetido e proposital do pronome de gênero errado (45%), acesso negado ao banheiro correto (22%), violência física (7%) e assédio sexual (6%). 26% delas perderam o emprego por serem transgêneras e 44% não conseguiram algum emprego por serem transgêneras.

Somos todas Verônica
As chances de sofrer algum tipo de violência são grandes. Em La Matanza, Argentina, [2] 50% afirmaram terem sofrido discriminação por parte da própria família, 41% por parte de amigos, 63% dos vizinhos, 85% de pessoas estranhas na rua, 58% por parte de colegas da escola e 77% da polícia. Entre os problemas causados pela polícia, 33% afirmaram terem sofrido extorsão, ameaça, maltrato ou humilhação, 20% foram detidas arbitrariamente, 15% sofreram violência verbal, 14%, violência física, outros 14%, abuso sexual ou estupro e ainda 3% afirmaram terem sido vítimas de tortura.

O outro estudo [4] também realizado na Argentina envolvendo mais regiões diverge um pouco com respeito aos números, mas mostra a mesma realidade de marginalização, exclusão e violência.

87% das hijras [1] também afirmaram que tiveram problemas causados pela polícia. Não há dados estatísticos sobre quais problemas elas enfrentaram, mas os relatos também mostram abuso sexual e estupro. Anitha Chettiar afirma:
Dentre aquelas que eram perseguidas frequentemente [pela polícia], duas das hijras disseram que foram espancadas pela polícia e advertidas que elas não podiam pedir esmola. Uma das que foram perturbadas por causa do trabalho sexual, disse: "Eu não sou permitida de solicitar clientes para sexo. Mas muitos policiais fizeram sexo comigo", e outra acrescentou, "Os policiais não me deixam trabalhar com sexo, mas exigem sexo gratuito."
Anitha inclui outros relatos de violência policial que indicam que na Índia, a violência policial tem a mesma natureza que na Argentina.

No mundo todo, de norte a sul, de leste a oeste, impera a transfobia. E esse império vai cair.


[1] Estudo de Anitha Chettiar, publicado na International Journal of Social Science and Humanity, Vol. 5, No. 9, que foi baseado em entrevistas feitas com 63 hijras.
[2] Teste piloto realizado pelo governo argentino sobre 209 pessoas trans (principalmente travestis, mulheres e homens trans) da cidade de La Matanza.
[3] Estudo do National Center for Transgender Equality e do National Gay and Lesbian Task Force, que entrevistou 6450 pessoas trans (incluindo crossdressers e drag queens/kings) espalhadas por todo o território dos EUA. Outros arquivos sobre esse mesmo estudo podem ser encontrados aqui.
[4] Estudo sobre o impacto da Lei de Identidade de Gênero na Argentina realizado pela Asociación de Travestis, Transexuales y Transgéneros de la Argentina (ATTTA).

3 comentários:

  1. Adorei seu blog. Como podem ser ao mesmo tempo invisíveis para economia e visíveis para agressões? Estou chocada! Obrigada pela sua audácia!

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  2. Olá! Seu blog é ótimo. Estou pesquisando sobre Trans e as infos aqui são incríveis. Será que poderíamos trocar umas figurinhas? :)

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