Felizmente, é possível encontrar algumas pesquisas e estimativas mais precisas vindas de outros países. Vamos aos números!
Estimativas da população trans
Ano passado, a Índia incluiu três opções no campo gênero: "masculino", "feminino" e "terceiro gênero". Isso foi resultado de uma decisão da Suprema Corte em reconhecimento da existência daquelas popularmente conhecidas como hijras, que são socialmente semelhantes às travestis latino-americanas. No censo, 488 mil pessoas se identificaram como pertencendo ao terceiro gênero. Isso significa que existe, no mínimo, 1 pessoa transgênera para cada 2480 pessoas na Índia (abreviadamente: 1:2480). Se a proporção de travestis no Brasil fosse a mesma, teríamos 82 mil travestis no país!
Hijras são admitidas pela primeira vez na História no programa de pós-graduação através de um sistema de cotas na Universidade de Nova Delhi, Índia |
Uma crítica às estimativas "oficiais" se encontra no belo artigo acadêmico de Lynn Conway, que é cientista da computação e engenheira elétrica, e Femke Olyslager, também engenheira elétrica, ambas mulheres trans. Elas apontaram diversos erros cometidos pelas estimativas anteriores, porque partiam de pressupostos absurdos: por exemplo, que todas as pessoas transexuais realizam a chamada CRS (cirurgia de redesignação "sexual"). Também ignoraram que essas realizam a CRS com, em média, 40 a 45 anos, o que significa que a contagem ignora, no mínimo, metade das pessoas transexuais adultas (ou seja, aquelas que ainda irão realizar a CRS).
A partir de entrevistas feitas com cirurgiões (no ano de 2001) que realizam a CRS, elas calcularam que, entre as pessoas designadas ao sexo masculino, no mínimo 1 a cada 1300 realizaram ou vão realizar a CRS nos EUA. Isso não é um ponto fora da curva: o mesmo cálculo com dados de um estudo em Singapura (no ano de leva à proporção de 1 mulher trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 2000 pessoas designadas ao sexo masculino, e 1 homem trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 5600 designadas ao sexo feminino. No Reino Unido, a proporção de mulheres trans que fizeram ou farão a CRS é 1:1900.
Aviso: Na minha opinião, não há razão para calcular a proporção de mulheres trans entre pessoas designadas ao sexo masculino. Conway e Olyslager fazem esta estimativa porque partem da concepção que a causa da transexualidade é biológica.
Transgeneridade e contexto socioeconômico
Travestis na América Latina e Hijras na Índia: subemprego, marginalização, ausência de emprego formal e de direitos humanos. |
No estudo feito na Argentina, 67% das pessoas trans entrevistadas eram travestis. Apenas 5,3% das pessoas não se identificava nem como travesti, nem como mulher ou homem trans (ou transexual).
Identidades das pessoas trans entrevistadas em La Matanza, Argentina |
No estudo feito nos EUA, as identidades são bem distintas. Lá são encontradas identidades de gênero não-binárias, ou seja, que não são nem exclusivamente masculinas nem exclusivamente femininas. É o caso do gênero queer e "dois-espíritos". Esta última identidade não-binária é presente em diversas tribos indígenas norte-americanas. Esse nome foi escolhido porque várias delas acreditam que a pessoa dois-espíritos carrega um espírito feminino e outro masculino. Conforme a pesquisa indica, muitas pessoas não-indígenas se identificam com o termo.
O estudo permitiu que as pessoas se identificassem com diversas identidades, mas colocou as pessoas em categorias analíticas para prosseguir no estudo.
Classificação analítica das pessoas trans entrevistadas nos EUA |
De acordo com o relatório, "transgender MTF" e "transgender FTM" são sinônimos de mulher transgênera e homem transgênero, respectivamente. "Gender non-conforming" é o nome dado às pessoas que não se encaixavam nas outras duas categorias (o que inclui gêneros não-binários).
Aviso: os termos MTF e FTM são inadequados.
A institucionalidade expressa nas leis e nos livros de psiquiatria afirmam que o que diferencia a mulher transexual e a travesti é que a primeira tem repulsa por sua genitália por motivos biológicos e deseja, portanto, realizar uma vaginoplastia, enquanto a travesti não tem repulsa pela genitália. Entretanto, na pesquisa argentina, 67% das pessoas trans são travestis, enquanto, na pesquisa estadunidense, apenas 14% das mulheres transgêneras não realizaram nem desejam realizar a vaginoplastia.
Se esses gêneros ocorressem por razões biológicas, haveria alguma correspondência às travestis (tanto em subjetividade quanto em identidade) nos EUA e que ocorre com mais ou menos a mesma proporção que ocorre na Argentina e na Índia. Além disso, a presença de 13% de pessoas com identidade de gênero não-binária não encontra correspondência na Argentina. A tese de que a disforia genital tem razão biológica não se sustenta diante desses números.
A transgeneridade é, de fato, um fenômeno universal (ou praticamente universal) nas sociedades em que existe o gênero. Entretanto, a forma como ela se expressa depende das relações socioeconômicas (leia-se: sociais e econômicas) de cada sociedade. Muito provavelmente, as mulheres trans buscam uma adequação melhor do corpo porque nos EUA a inserção de pessoas trans no mercado de trabalho é maior. A busca pela cirurgia diminui a rejeição, aumenta a possibilidade de encontrar e manter um emprego, alterar os documentos, etc. Isso, evidentemente, também tem um reflexo subjetivo. No Brasil, por outro lado, o acesso à CRS é muito mais precário e burocratizado, de forma que não é costume das travestis buscarem-na. Isso também tem seu reflexo subjetivo na construção da identidade de gênero.
Utilizando os dados de Conway e Olyslager (1 a cada 2500 pessoas designadas ao sexo masculino já realizaram a CRS) com o estudo da National Task Force nos EUA (23% das mulheres transgêneras já realizaram a CRS), calculamos que, nos EUA, a proporção de mulheres trans é cerca de 1 a cada 580 mulheres, a proporção de homens trans é de 1 a cada 970 homens, a proporção de pessoas com identidade de gênero trans (ou seja, mulheres e homens trans e gêneros não-binários) é de 1 a cada 620 pessoas!
Outro estudo no Reino Unido afirmou que nesse país o número de pessoas que busca um tratamento para a "disforia de gênero" (sic) está aumentando em cerca de 15% a cada ano (que é a mesma taxa na Europa). Isso significa que a cada 5 anos, a população trans que busca tratamento na Europa dobra!
A estimativa pode ser imprecisa, mas não resta dúvida que a quantidade de pessoas trans nos EUA é proporcionalmente muito maior do que a na Índia. Todos esses dados nos levam a concluir que a existência de pessoas trans numa sociedade depende muito mais dos fatores socioeconômicos do que dos fatores religiosos e culturais. Ora, os EUA é um país majoritariamente cristão e nele os pastores fundamentalistas alimentam a aversão e o ódio às pessoas trans. A sanha transfóbica dos fundamentalistas alimenta a violência e os crimes de ódio como também a depressão e as taxas de suicídio. Os dados parecem indicar que isso leva as pessoas trans a buscarem ainda mais os tratamentos e as cirurgias para conseguir se encaixar na sociedade e evitar a violência.
A transfobia nos mata todos os dias, mas não faz com que deixemos de ser trans.
Transfobia: de norte a sul, de leste a oeste...
Em La Matanza, [2] 51% das travestis e mulheres trans responderam que sua principal atividade remunerada é a prostituição, que, na prática, é criminalizada. 85% delas afirmaram que estão ou já estiveram em situação de prostituição. Na índia, 32% das hijras afirmaram que sua principal atividade remunerada é a esmola, enquanto 21% afirmaram que é a prostituição, sendo que ambas atividades são criminalizadas. Outras 32% trabalham em uma ONG voltada para hijras ou prevenção de AIDS.Conseguir um emprego formal é um desafio. Na argentina, [2] 44% das pessoas entrevistadas realizaram um curso de capacitação profissional, mas, dentre estas, 52% responderam que isso não as ajudou a encontrar um emprego. 72% das pessoas disseram estar procurando outra fonte de renda e, destas, 82% responderam que esta busca é dificultada por sua identidade trans.
Nos EUA, [3] a exclusão das pessoas trans do mercado de trabalho formal é menor, mas ainda assim o acesso e as condições de emprego são bastante precárias. Enquanto 7% da população está desempregada, 14% das pessoas trans também estão. Enquanto 7% da população estadunidense recebe menos que $10 mil por ano, na população trans essa proporção sobre para 15%, sobe para 28% considerando as pessoas trans latinas e para 35% entre as pessoas trans negras. 97% afirmaram terem sido maltratadas no trabalho, incluindo perseguição por parte de colegas (50%), uso repetido e proposital do pronome de gênero errado (45%), acesso negado ao banheiro correto (22%), violência física (7%) e assédio sexual (6%). 26% delas perderam o emprego por serem transgêneras e 44% não conseguiram algum emprego por serem transgêneras.
Somos todas Verônica |
O outro estudo [4] também realizado na Argentina envolvendo mais regiões diverge um pouco com respeito aos números, mas mostra a mesma realidade de marginalização, exclusão e violência.
87% das hijras [1] também afirmaram que tiveram problemas causados pela polícia. Não há dados estatísticos sobre quais problemas elas enfrentaram, mas os relatos também mostram abuso sexual e estupro. Anitha Chettiar afirma:
Dentre aquelas que eram perseguidas frequentemente [pela polícia], duas das hijras disseram que foram espancadas pela polícia e advertidas que elas não podiam pedir esmola. Uma das que foram perturbadas por causa do trabalho sexual, disse: "Eu não sou permitida de solicitar clientes para sexo. Mas muitos policiais fizeram sexo comigo", e outra acrescentou, "Os policiais não me deixam trabalhar com sexo, mas exigem sexo gratuito."Anitha inclui outros relatos de violência policial que indicam que na Índia, a violência policial tem a mesma natureza que na Argentina.
No mundo todo, de norte a sul, de leste a oeste, impera a transfobia. E esse império vai cair.
[1] Estudo de Anitha Chettiar, publicado na International Journal of Social Science and Humanity, Vol. 5, No. 9, que foi baseado em entrevistas feitas com 63 hijras.
[2] Teste piloto realizado pelo governo argentino sobre 209 pessoas trans (principalmente travestis, mulheres e homens trans) da cidade de La Matanza.
[3] Estudo do National Center for Transgender Equality e do National Gay and Lesbian Task Force, que entrevistou 6450 pessoas trans (incluindo crossdressers e drag queens/kings) espalhadas por todo o território dos EUA. Outros arquivos sobre esse mesmo estudo podem ser encontrados aqui.
[4] Estudo sobre o impacto da Lei de Identidade de Gênero na Argentina realizado pela Asociación de Travestis, Transexuales y Transgéneros de la Argentina (ATTTA).
Adorei seu blog. Como podem ser ao mesmo tempo invisíveis para economia e visíveis para agressões? Estou chocada! Obrigada pela sua audácia!
ResponderExcluirOlá! Seu blog é ótimo. Estou pesquisando sobre Trans e as infos aqui são incríveis. Será que poderíamos trocar umas figurinhas? :)
ResponderExcluirOpa, podemos sim ^_^
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