sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Em defesa dos "homens de saia" e das fantasias carnavalescas

Piu, passista da beija-flor que foi
assassinada este ano.
É carnaval! A festa é feita bem no meio da rua com seus blocos, fantasias, músicas e danças. Até o povo mais pobre das periferias aproveita para ocupar a rua, festejar, enfrentando muitas vezes a violência policial por conta disso. Durante a festa, muitas pessoas aproveitam para fazer aquilo que a moral hipócrita da nossa sociedade não permite. Aquilo que também acontece de forma escancarada durante a Parada LGBT, no carnaval, também acontece de forma mascarada: o ato de travestir-se.

Evidentemente, isso não acontece sem contradições. Muitos homens, ao usarem uma roupagem feminina, ridicularizam a figura feminina e tornam-se alvo de chacota intencionalmente. Essa chacota não se dirige ao homem que se veste, mas sim à travesti que não está lá, à travesti que "não existe". Por conta disso, muitas pessoas, tendo em vista a defesa das pessoas trans, estão espalhando que não apenas a ridicularização do feminino e da travesti, mas até o próprio ato de travestir-se (ou transvestir-se) é uma atitude transfóbica. "O homem de saia apaga a travesti", dizem. "A fantasia não vale mais que a identidade".

Mas, afinal, onde está a transfobia e a misoginia: no ato de vestir-se ou no ato de ridicularizar-se? E se é possível vestir-se sem ridicularizar-se, o ato de vestir-se por si só é transfóbico? Existe algum mal por trás do fato das travestis não serem tão facilmente distinguíveis em época de carnaval como são ao longo do resto do ano? Vamos limpar o terreno!

Travestilidade e fantasia na antiguidade

Vejo muitos textos por aí que dizem que é equivocado afirmar que existiam travestis desde a antiguidade porque os gêneros trans da antiguidade eram diferentes dos gêneros trans da atualidade. Esses mesmos textos, entretanto, admitem que haviam mulheres na antiguidade e as chamam assim, mulheres. Também admitem que haviam homens e os chamam de homens. Não são as mulheres e os homens da antiguidade diferentes das atuais? Não sigo essa ideologia que prega que os gêneros cis são eternos e os gêneros trans são episódicos.

"Afrodito"
Na Grécia Antiga, pelo menos desde o século V a.C., existiam estátuas de Afrodite em que ela levanta o vestido para mostrar um falo. Essa versão de Afrodite era também chamada de Afrodito. Acreditava-se que o ato da Afrodite levantar o vestido tinha o poder mágico de espantar os demônios e conferir boa sorte. Os festivais de culto a essa Afrodite eram caracterizados com rituais de travestilidade. Esse tipo de ritual existia e continua existindo em diversas sociedades, o que mostra que provavelmente têm uma raiz em comum há milhares ou dezenas de milhares de anos atrás. Afrodite, entretanto, virou Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, já que uma deusa importante como Afrodite não poderia ser travesti numa sociedade travestifóbica.

Em Roma, na Gália, existia uma linhagem sacerdotal em que a travestilidade não era momentânea, mas sim permanente. Elas chamavam a si mesmas de gallae, mas eram e são chamadas de galli, masculino de gallae. Sua tradição consistia na castração (momento no qual passava a ter uma identidade feminina reconhecida), além do uso de nomes e roupas femininas. Uma galla era vista como uma "falsa mulher" e sua identidade feminina era ora encarada como uma escolha, ora como uma obrigação religiosa. As gallae eram vistas como a afronta máxima aos ideais romanos de virilidade. As gallae foram perseguidas e criminalizadas pelo Império Romano e sua tradição chegou ao fim. Afinal, a deusa mãe Cibele era importante demais para ser cultuada por travestis.

Vemos, aqui, que a travestilidade momentânea, ao longo do tempo, se transformou (e continua se transformando) em travestilidade permanente. Na verdade, não é necessário recorrer à antiguidade para mostrar isso: até hoje, muitas pessoas que hoje são travestis, na adolescência ou na infância eram "meninos" que gostavam de usar saia. É como se o processo individual de transformação para o gênero travesti imitasse, em essência, o processo histórico e social que criou o próprio gênero travesti.

Félix e a borboleta no casulo

Ao longo de 2013 e no começo de 2014, o nosso país assistiu, pela primeira vez, um romance gay numa novela da Globo em horário nobre. Foi um marco na história LGBT. A maioria de nós vibrou quando Félix e Niko, no capítulo final da novela Amor à Vida, se beijaram. Finalmente! Depois de tanto tempo de luta, a Rede Globo foi forçada pela pressão popular a admitir que existem homossexuais e que eles também amam. Apesar de todas as contradições da novela, essa visibilidade foi uma vitória para as LGBTs.

Gostaria de trazer de volta um capítulo desta novela. Quem quiser, pode assistir aqui, pretendo discutir as cenas 5 e 6.

Na cena 5, Edith, que está para se divorciar de Félix, se reúne com a família dele para conseguir um bom contrato de divórcio. Para isso, ela ameaça "fazer um escândalo", ou seja, revelar publicamente que Félix é gay. Félix, então, comenta:

- Se quer fazer um escândalo, Edith, faça, eu não me importo! [...] Eu estou como uma borboleta pronta pra sair do casulo.
- Entre nesse casulo. Agora! - ordena seu pai. Félix se silencia.

Na cena seguinte, mais uma vez Edith ameaça:

- Eu vou te dar alguns dias pra você me oferecer um bom acordo ou senão sua vida íntima vai se tornar pública.
- Melhor assim! - responde Félix - Daqui pra frente se eu sair no carnaval com esplendor de plumas e purpurina, ninguém vai se surpreender!
- Félix, cale-se! - ordena seu pai mais uma vez.

O machismo nesse episódio é evidente. Edith é o estereótipo de mulher louca, chantagista, que quer arrancar posses do seu marido e que não pensa em nada além do dinheiro. Ela, inclusive, quer se aproveitar da homofobia para esse fim e não demonstra ter nenhum peso na consciência por isso.

Mas... e quanto a essa tal borboleta que César, o pai de Félix, tem tanto medo que saia do casulo? Em quê consiste esse tal "esplendor de plumas e purpurina"? Estamos falando de homossexualidade? Isso foge ao espectro da sexualidade. Este capítulo faz uma alusão à travestilidade momentânea. Félix não queria expressar apenas sua sexualidade, mas também o seu lado que estava preso dentro do casulo. César, um "respeitável burguês", não quer ter a vergonha de que saibam que seu filho tem um lado "feminino", muito menos que ele se permita ter qualquer semelhança às pessoas consideradas mais abjetas pela sociedade. Ele é tão travestifóbico quanto o seu xará da antiguidade.

A Rede Globo não quis mostrar, em momento algum, a borboleta saindo do seu casulo. Félix, sendo uma caracterização positiva da homossexualidade, foi embranquecido e higienizado de qualquer característica "feminina", por mais passageira que fosse.

O pessoal é político?

Nós, LGBTs, em especial as pessoas trans, sabemos que, para existir, precisamos travar uma batalha política constante pelo nosso direito à existência e pelo reconhecimento da nossa identidade. Caso contrário, a tendência é que as pessoas nos isolem e nos marginalizem e que nossa vida se torne insuportável. Até mesmo os setores mais progressistas da sociedade acabam fazendo isso.

Pai veste saia para apoiar filho que gosta de vestidos.
A criança precisa identificar-se como trans para ter
direito a usar vestidos?
Muitas pessoas, às vezes baseadas na tese subjetivista  de que "o pessoal é político", acabam acreditando que o problema não está na opressão que nós sofremos, mas sim na subjetividade alheia. Por exemplo, é muito comum dizerem que os homofóbicos são homossexuais enrustidos. Ou seja, "xingam" os homofóbicos dizendo que são gays. Isso é reproduzir a homofobia. Até Jean Willys embarcou nesta onda. Durante a Parada LGBT de Campinas, um dos blocos, em vez de criticarem a homofobia de Marina Silva, cantaram uma marchinha dizendo que ela deveria experimentar sexo anal. Ditar regras sobre a vida sexual de uma mulher é machismo.

A opressão LGBTfóbica é objetiva. Sua base de sustentação é a desigualdade social que se manifesta não só nas diferenças de direitos, mas também nas diferenças salariais, na expulsão de espaços públicos, nos assédios que LGBTs sofrem no mercado de trabalho, na patologização da nossa identidade, etc. Não é possível combater essa opressão atacando a subjetividade alheia. Muito pelo contrário, assim acabamos reforçando os estereótipos e reproduzindo as opressões. Não adianta nada "chocar a sociedade" se isso não servir para despertar a consciência de que nós somos oprimidas, que somos vítimas da desigualdade, da violência e da injustiça.

A higienização da sociedade

As sociedades patriarcais, ao longo da História, às vezes incorporaram algum setor LGBT na sociedade, mas de forma limitada. Por exemplo, nos países capitalistas desenvolvidos, em consequência da Revolta de Stonewall em 1969, que deu origem à tradicional Parada LGBT, homens gays e bissexuais foram mais ou menos incorporados na sociedade (mas são levados a formar casais heteronormativos), dependendo da região. As mulheres LGBTs e as travestis continuam à margem da maioria dos espaços sociais. As pessoas trans concentram-se na prostituição em zonas periféricas.

Conforme o movimento avança e obtém conquistas, a burguesia, através de seus instrumentos (Estado, instituições científicas, mídia, sistema educacional) pressiona para que o movimento se divida e retroceda. O movimento LGBT também acaba, por pressão da sociedade, reproduzindo essa mesma lógica. Quando a travesti é usada como um ícone LGBT que é estereotipado e ridicularizado pela mídia e também pela medicina, a população LGBT busca livrar-se deste estigma se diferenciando das travestis e deixando-as à margem.

A medicina denomina a travestilidade momentânea de "travestismo fetichista" e a travestilidade permanente simplesmente de "travestismo" ou de "travestismo bivalente". Ambas as formas são consideradas patologias pela medicina. Enquanto o "travestismo bivalente" é classificado como transtorno de identidade de gênero, o "travestismo fetichista", como transtorno de preferência sexual. Quem não tem problemas em sentir ânsia de vômito pode encontrar uma teoria "científica" sobre "travestismo fetichista" nesta página. Muitas pessoas (inclusive alguns setores da medicina) consideram como patologia apenas o "travestismo fetichista".

Algumas pessoas reproduzem essa mesma lógica e criam uma barreira entre travestilidade momentânea e permanente, como se uma fosse oposta à outra. Assim como a medicina, querem classificar como prejudicial a travestilidade que não é decorrente de uma identidade de gênero. A realidade, entretanto, é que muitas vezes a travestilidade momentânea precede e se transforma em identidade. Conheço muitas travestis com as quais isso ocorreu.

No carnaval ocorrem muitos casos de opressão, como machismo e também travestifobia. É uma época em que mulheres e travestis estão ainda mais sujeitas à violência e à objetificação sexual. Muitos homens se montam e reforçam essas ideologias por sua atitude, que precisa ser constrangida. Mas isso não se resolve acreditando que o problema é das pessoas que se montam. Não devemos restringir o direito das pessoas a experimentarem o gênero, nem isolar ainda mais os costumes culturais das pessoas LGBTs aos guetos que nos são reservado. Também não devemos restringir esse direito apenas para quem tiver registrado a carteirinha oficial de sua identidade de gênero trans, nem mesmo de sua orientação não heterossexual. Não podemos reproduzir a mesma lógica que inferioriza as bichas pintosas, as passivas, as drags, as travestis, que busca separá-las dos homens gays higienizados e empurrá-las de volta à marginalidade.

Eu defendo as borboletas.

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