quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Morte e Vida Travesti

[Baseado na obra prima de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina]

A AUTORA EXPLICA À LEITORA QUEM É E A QUE ESCREVE


— O meu nome é feminino,
mas eu tenho outro de pia.
Como há muitos femininos
que o registro repudia,
permita me apresentar:
eu sou Jéssica, amiga.
Como há muitas travestis,
(mas não no seu dia a dia)
fico sendo a que mora
nesta terra de Campinas.

Mas isso ainda diz pouco:
há muitas na freguesia
que se encontram no Sucão
ou então lá no Itatinga
que é bairro conhecido
de esquina e periferia.
Como então dizer quem fala
ora a Vossa Senhoria?
Vejamos: é a travesti
a Jéssica de Campinas
mas que vive em Barão
e não na periferia.

Mas isso ainda diz pouc...
Ai... Droga...
Que me perdoe o João,
arruinei sua poesia!
Ao contrário de outras tantas
travestis nas avenidas,
eu não estou na prisão
e nem na periferia,
nem na esquina, nem no palco,
estou viva quase aos trinta!

Somos muitas travestis
iguais em muito na vida,
no mesmo corpo mal visto,
na aparência feminina,
nos olhares que encaram
nossos corpos, noite e dia,
nos machões que nos maltratam:
"É minha carne, uma vadia!"
Na mídia, somos piada
e pra polícia, bandidas.

E se somos travestis,
iguais em tudo na vida,
morremos da mesma morte,
a invisível transfobia:
que é a morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
de crime de ódio até os vinte,
de tristeza um pouco ao dia,
(da piada à agressão
toda essa transfobia
ataca em qualquer idade,
até gente não nascida).

Somos todas travestis
iguais em tudo e na sina:
de viver fora da rua,
fábricas e sesmarias,
de viver sem nossa mãe
quando esta ainda está viva,

de um dia ir parar
viva ou morta numa esquina,
e de enfim se questionar
sempre alguma vez na vida:
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida
do que viver travesti,
nunca ser reconhecida.

A RAZÃO ENSINA A TRAVESTI AFLITA, QUE AINDA NÃO FEZ PARTE DA HISTÓRIA


— Travesti, a blogueirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta tão aflita:
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida
do que todo dia morrer
nessa vida travestina
pois sei ver, não sei sentir,
pro sofrer não há medida;
mas posso a razão dizer:
não é eterna esta sina:
o que nasce um dia morre
e assim é a transfobia.

Há milênios que nos caçam,
nos perseguem todo dia
com suas leis, sua repressão,
e aqui estamos, de pé, vivas!
Não puderam extinguir
essa chama, a poesia,
que é a vida travesti
travestindo a própria vida.
E se riem nossos corpos
a ousada transfobia
dirijamos nossos risos
a todos esses machistas
e à bancada piadista:
se milhões não nos venceram,
hoje, quem nos venceria?

Eles não podem vencer
mas nós venceremos
um dia...