quarta-feira, 1 de julho de 2015

Ele ou ela? As gallae na Antiga Roma (texto do séc. I a.C.)

Estátua de Átis, em uma dança
num ritual de adoração
O poema abaixo, de Cattulus, século I a.C., é uma estória mitológica que envolve uma tradição sacerdotal na Frígia, no território romano. O poema mostra que tanto o gênero quanto a transgeneridade variam ao longo da história e mudam, em especial conforme as condições socioeconômicas da época, mas também de acordo com a ideologia dominante.

O texto foi traduzido de duas fontes (1, 2), com algumas diferenças que serão aqui ignoradas (considero que a 2 seja mais precisa, mas também mais confusa).

[Veja também o texto "Não fale de mim como se eu fosse uma mulher!, sobre um homem trans no século II].

Cattulus, Poema 63

Trazido em sua barca ágil através de oceanos profundos
Átis, quando ansiosamente alcançou o bosque da Frígia com seus pés ligeiros
e entrou nas moradas da deusa, sombrias, coroadas pela floresta;
lá, aguilhoado por uma furiosa loucura, desnorteado na mente,
ele arrancou de si com uma afiada pedra sílex a carga de seu membro.
Então, quando ela sentiu que os membros dela perderam sua masculinidade,
ainda com sangue fresco umedecendo a face da terra,
rapidamente ela pegou o leve tamboril com mãos brancas,
seu timbre, Cibele, seus mistérios, Mãe,
e agitando com os dedos moles o couro de boi oco
assim começou ela a cantar para suas companheiras, trêmula:
Estátua de uma galla
ou um gallus
"Venham vocês, gallae, vão para as florestas da montanha de Cibele juntas,
vão juntas, rebanho peregrino da senhora de Díndimo
que rapidamente buscam casas alheias como exiladas,
seguidas por minhas regras conforme eu as guio em meu trem,
suportaram a salmoura que flui rápido e os mares selvagens,
e descarregaram de seus corpos a aversão absoluta ao amor,
alegrem o coração de sua Senhora com rápida peregrinação.
Deixem o atraso enfadonho afastado de suas mentes; andem juntas, sigam
para a casa frígia de Cibele, para as florestas frígias da deusa,
onde o barulho dos címbalos soarem, onde os tamboris reecoarem,
onde o flautista frígio sopra uma nota profunda em seu caniço curvo,
onde as ménades com suas coroas de hera atiram suas cabeças violentamente,
onde com gritos estridentes elas chacoalham emblemas sagrados,
onde aquela comitiva peregrina da deusa está afeita a vaguear,
até onde é justo para nós acelerar com danças vivas."

Tão logo Átis, mulher, mas não de verdade, cantou assim para suas companheiras,
os foliões, de repente, com línguas tremulantes, gritaram alto,
os tamboris leves soam novamente, os címbalos ocos se colidem novamente,
rapidamente o tumulto, com seus pés apressados, vai ao verde Ida.
Então também Átis, frenética, ofegante, incerta, arfante,
sua líder, acompanhada pelos tamboris, peregrina pelas florestas escuras,
assim como uma novilha indomada correndo à parte do jugo de seu próprio fardo.
Rapidamente as gallae seguem sua líder com seus pés ligeiros.
Então, quando elas ganharam a case de Cibele, fatigadas e exaustas,
depois de muito trabalho elas descansam sem pão;
o sono pesado cobre seus olhos com o cansaço que as abate,
a loucura delirante de suas mentes se partem em sono leve.
Mas quando o sol com seus olhos radiantes de sua face dourada
iluminaram o céu límpido, das terras firmes, o mar selvagem,
e afugentou as sombras da noite com corcéis impacientes renovados, cavalgando,
então o Sono fugiu de Átis despertado e rapidamente se foi;
a deusa Pasitea recebeu ele (sic) em seu seio tremulante.
Então, depois do sono leve, livre da loucura violenta,
assem que o próprio Átis reviu em seu coração seu próprio dever,
e viu com a menta clara que mentira havia perdido e onde ele estava,
com a mente afluindo novamente ele se acelerou de volta para as ondas.
Ali, olhando sobre os mares vazios,
e então dirigiu-se com lamentos o país dela com voz chorosa:

"Ó, meu país que me deu vida! Ó, meu país que me gerou!
A quem deixo, toda desgraçada! Como servas fugitivas deixam seus mestres,
eu trouxe meu pé para as florestas de Ida,
para viver entre as neves e as tocas congeladas das feras selvagens,
e visitar no meu frenesi todas as tocas de espreita,
- Onde então ou em que região eu penso ser teu lugar, ó meu país?
Meus olhos há muito perdidos contemplam a ti
enquanto por um curto espaço minha mente fica livre da frenesi selvagem.
Eu, devo eu ser levada para longe de minha própria casa, para dentro dessas florestas?
Do meu país, dos meus bens, meus amigos, meu país, devo eu ficar longe?
Ausente do mercado, dos campos de batalha, do hipódromo, do campo de jogos?
Infeliz, de coração todo infeliz, de novo, de novo tu deves reclamar.
Pois que tipo de figura humana existe e que eu não poderia ser?
Eu, para ser uma mulher -- eu que era um rapaz, um jovem, um menino,
eu era a flor do campo de jogos, eu era uma vez a glória do palestra;
eram minhas as portas lotadas, meus eram os calorosos limiares,
minhas as guirlandas floridas que enfeitavam minha casa,
quando eu estava para deixar meu aposento ao raiar do dia.
Eu, como devo eu ser chamada agora? Uma serva dos deuses, uma ministra de Cibele?
Devo ser uma ménade, parte de mim, um homem estéril devo eu ser?
Eu, devo eu habitar em regiões cobertas de neve do verdejante Ida?
Passar a minha vida sob os altos cumes da Frígia,
com a corça que assombra a floresta, com o javali que percorre a floresta?
Agora, agora eu lamento meu dever, agora, agora eu gostaria que isso fosse desfeito."

Assim que estas palavras foram emitidas dos lábios rosados,
trazendo uma nova mensagem para as orelhas dos deuses,
então Cibele, afrouxando o laço apertado de seu leão,
aguilhoando aquele indivíduo do rebanho que ia para a esquerda, fala deste modo:
"Vem agora", diz ela, "venha, vai ferozmente, deixe a loucura caçá-lo
manda-o, portanto, pelo golpe da loucura, apressar-se para as florestas de novo
aquele que seria livre demais e fugiria da minha soberania.
Vem, chicoteia para trás com tua cauda, suporta tua própria flagelação,
faz tudo ao seu redor ressoar com um rugido retumbante,
sacode ferozmente sua juba avermelhada com seu musculoso pescoço."
Assim diz a furiosa Cibele, e com sua mão desprende o laço.
O monstro atiça sua coragem e desperta a fúria de seu coração;
ele acelera, ele ruge, com passos largos ele quebra o matagal.
Mas quando ele veio às águas estendidas da costa branca reluzente,
e viu o gentil Átis pelos terrenos planos do mar,
ele corre na direção dele - Átis se voa loucamente para a floresta selvagem
lá para todo o resto de sua vida ele foi uma serva.
Deusa, grande deusa, Cibele, senhora de Díndimo,
esteja toda tua fúria longe de minha casa, ó minha rainha
que outros conduzam a ti em frenesi, outros levem tu à loucura.

Quem eram as gallae?

Relevo funerário de um archigallus
As gallae eram sacerdotisas que adoravam a deusa Cibele, conhecida como "Mãe dos Deuses", deusa da natureza, e Átis, seu/sua cônjuge. Uma sacerdotisa era chamada de galla (feminino) em vez de gallus (masculino) para denotar que a castração já foi realizada. O poema mostra como a galla era destinada ao papel de sacerdotisa, como uma "falsa mulher", para o resto de sua vida. Elas usavam vestes femininas, cabelos longos e eram castradas [Antologia Grega, 219, 220, 234], além de usarem pingentes, brincos e maquiagem pesada [fonte]. Átis é sempre retratado como uma divindade inferior a Cibele, como no poema, em que Átis é sacerdote ou sacerdotisa de Cibele. A mitologia sobre a castração de Átis era usada como justificativa para a castração no ritual de adoração de Cibele e Átis.

Cibele era uma divindade oficial do Império Romano que era bastante adorada, mas apenas os "galli" eram celebrantes oficiais, reconhecidas e financiadas pelo império desde 204 a.C. Apesar disso, os cidadãos romanos eram proibidos de se tornarem gallae, uma vez que elas eram vistas como "homens" que deliberadamente abriam mão de sua fertilidade e de sua masculinidade. O Império as via como maus exemplos para os cidadãos. As gallae eram frequentemente chamadas de pathicus (lascivo), mollis (mole, delicado) ou cinaedus (termo usado para homens adultos com comportamento afeminado ou que gostavam de ser penetrados). Apenas estrangeiros (que eram vistos como inferiores aos romanos) poderiam exercer este papel.

No final do século I, a castração foi proibida pelo império. Mais tarde, o cristianismo se utilizou dos galli para demonizar a religião pagã pela prostituição feminina e pela "sodomia" (sexo anal), como parte da campanha ideológica para a criminalização da "sodomia" (tornou-se crime um homem ser penetrado por outro no século IV, no século VI um homem que penetrasse outro homem também passou a ser considerado criminoso).

O jurista romano Ulpiano descreveu 5 tipos de vestes romanas:
  1. Vestimenta virilia, a roupa do paterfamilias, do pai e chefe da família;
  2. Muliebria, a roupa da materfamilias, a mãe da família;
  3. Puerilia, a roupa das crianças, dos e das menores de idade;
  4. Communia, as vestes comuns usadas tanto por cidadãos como por cidadãs;
  5. Familiarica, a roupa da familia, ou seja, de servas, servos, escravas e escravos.
Um plebeu, uma mulher romana e um senador [fonte]
Ulpiano não distingue o nome dado às roupas das crianças e das servas ou servos por gênero. Apenas da mãe e do pai. Segundo Ulpiano, um homem que usa roupas femininas seria objeto de escárnio. Entre as mulheres, apenas as prostitutas usavam roupas masculinas.

Sendo assim, as vestes estavam ligadas diretamente ao papel das pessoas dentro da família e também sua classe social: o pai, chefe da família, que administrava a propriedade privada; a mãe, cujo papel era reproduzir e gerar herdeiros para as propriedades; as crianças, que eram herdeiras das propriedades (sejam meninos ou meninas); e as pessoas das outras classes (não-cidadãs), que não tinham ou que eram propriedade privada.

Qual é, portanto, o "escárnio" para um homem? Vestir uma roupa da mulher cidadã, quem não era chefe da família, que não tinha direito a administrar nem mesmo a sua própria propriedade privada (a não ser que não tivesse pai ou marido). Vestir a roupa de quem exercia o papel reprodutivo, limitada à esfera privada.

É por isso que as gallae não se viam nem eram vistas como mulheres, no máximo eram vistas como "falsas mulheres". Por mais que quisessem, por mais que tentassem, não conseguiriram exercer o papel social de uma mulher cidadã. Uma galla poderia se tornar sacerdotisa ou prostituta, mas não poderia ser uma materfamilias. Por causa disso, eu acredito que não existiam condições socioeconômicas para que a identidade transgênera pudesse existir socialmente.

[Observação: Pode ser que tenha sido possível a existência de uma identidade transgênera masculina, como a de Megillus, em cidades gregas onde a mulher poderia se tornar a chefe da família, mas acredito que, mesmo assim, eram casos isolados. Vale notar que mesmo a identidade masculina de Megillus na estória era privada, não social.]

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