As opressões dividem o movimento. Um exemplo explícito disso é a tese, defendida de forma velada ou aberta, que existe um antagonismo entre a luta das pessoas trans e a luta das mulheres. O que mais me assusta é que o feminismo radical está crescendo justamente a partir dessa tese.
Transfobia, uma ideologia a serviço da classe dominante
Eu tenho acordo com várias das teses feministas radicais, aliás, mais acordo do que tenho com a teoria queer. Por exemplo, explicando de forma bem rasa, é óbvio que o machismo estrutural (ou o patriarcado) surgiu na sociedade para que os homens (“cis”) pudessem controlar a reprodução e até a própria vida das mulheres (“cis”). Entretanto, cabe aqui dizer que, desde o surgimento da propriedade privada, ela foi proibida para pessoas “trans” (ou seja, que assumiam papel de gênero oposto ao sexo biológico, inclusive no próprio nome). Estas ficaram restritas aos espaços religiosos (em especial as mulheres trans, que normalmente eram sacerdotisas que cultuavam as deusas). Mais tarde elas também foram expulsas destes para ficarem restritas à prostituição.
É neste ponto que fica evidente o caráter reacionário da transfobia enquanto ideologia da classe social dominante. As pessoas trans são vítimas do mesmo machismo que atinge as mulheres em geral, mesmo que de forma distinta. Os homens trans são frequentemente vítimas de estupros corretivos dentro da própria família. Para terem sua identidade reconhecida, são obrigados pela sociedade, principalmente pela medicina, a terem uma postura vista como de “macho”, o que significa reproduzir o machismo ou mesmo “brigar como homem” (o que os expõe à violência). As mulheres trans e as travestis, por sua vez, são constantes vítimas de objetificação sexual, fetichização, exotificação, assédios e estupros.
A restrição dos direitos mais básicos das pessoas trans (direito à educação, ao emprego, ao uso dos banheiros públicos, ao próprio nome, à vida) servem à manutenção do sistema. Ela serve muito à medicina, que pode vender o acesso a esses direitos através de uma valiosíssima mercadoria: o processo de transição. Esse processo, que deveria ser um direito, tem o mesmo preço de uma casa própria. Também aos fundamentalistas religiosos, que ganham muito poder político e econômico a partir da LGBTfobia. E, evidentemente, também é necessária para a manutenção do machismo.
Quem defende a "reforma" dos gêneros?
O feminismo radical afirma lutar pelo fim dos gêneros. Por conta disso, muitas feministas radicais afirmam que defender o direito à identidade de gênero tem um caráter reacionário porque supostamente se opõe ao fim dos gêneros, propondo apenas uma "reforma".
Não devemos ter fetiche pelo gênero. O marxismo revolucionário sempre defendeu a necessidade de destruir todas as instituições que servem à manutenção do status quo e de construir uma nova sociedade que não tenha nenhum espaço pra qualquer tipo de opressão e exploração. Por outro lado, é um tremendo equívoco tentar defender que a revolução é antagônica à luta por reformas. Se somos pelo fim da exploração e do trabalho assalariado, isso nos impede de lutar por melhores salários? Ora, a história demonstra o contrário: revoluções não acontecem porque as trabalhadoras e trabalhadores querem o fim dos salários, mas sim porque querem melhores salários, porque querem pão, paz e terra.
Não é absurdo que uma pessoa de esquerda defenda que não devemos lutar pelos direitos nem por melhores salários, mas por conselhos populares e pelo poder? Não é absurdo que essa pessoa diga que lutar por melhores salários é reacionária porque ajuda a manter o trabalho assalariado? Ora, é igualmente absurdo que alguém defenda que não devemos lutar pelo direito ao nome social e à identidade de gênero, mas sim pelo fim do gênero.
Entretanto, o movimento feminista (inclusive a vertente radical) luta e sempre lutou por reformas como direito ao aborto, que o trabalho doméstico não seja restrito às mulheres, por medidas de punição à violência machista e proteção às vítimas (no sentido da lei Maria da Penha). Não há absolutamente nenhuma diferença de caráter entre essas medidas e as medidas defendidas pelo movimento trans: todas elas denunciam as diferenças de gênero na nossa sociedade e propõem medidas concretas para combatê-las.
Ainda mais absurda é a tese que as demandas do movimento trans são individualistas. Se o direito ao aborto é social, por que o direito ao próprio nome seria individual?
Teoria queer versus movimento trans
Pichação de uma feminista radical transfóbica num banheiro feminino da Unicamp. Contra o que (ou quem) elas estão lutando? |
Muitas feministas radicais afirmam que o movimento trans é pós-moderno e que lutam contra isso. Tal afirmação é absurda. Ora, foram os movimentos de travestis e transexuais na América Latina que lutaram e conquistaram a aprovação de leis de identidade de gênero no Uruguai e na Argentina, leis estas que, na prática, defendem a desmercantilização do direito à identidade de gênero, tornando-a pública, gratuita e por autodeclaração. A partir dessa lei, o direito à mudança do nome e do sexo no registro civil e o acesso ao processo de transição não depende de aprovação médica. Enquanto isso, a Judith Butler, teórica queer mais conhecida, sugere que as pessoas tenham uma performatividade de gênero que rompa com os padrões em vez de lutar por reformas.
A teórica tem um mérito: ter elaborado uma teoria feminista (e também LGBT) que defende o direito à identidade de gênero. Suas elaborações, entretanto, não servem à luta política. Butler, assim como Foucault, não só nega a possibilidade de uma revolução social que visa eliminar as estruturas opressoras da sociedade, mas nega inclusive a possibilidade de reformas. A luta pelos direitos das pessoas oprimidas é negligenciada. O único tipo de luta política defendida pelo foucaultianismo são as formas de resistência próprias dos grupos sociais oprimidos (como uma "performatividade de gênero paródica"), sem qualquer tipo de organização coletiva que pense na transformação da sociedade como um todo.
Muito pelo contrário. A própria construção das frases nos livros dessa autora é feita de forma que a leitora não saiba exatamente o que aquela defende. Uma grande proporção das suas frases são perguntas. Entre as demais frases, várias delas começam com "Considere que..." ou "Alguém poderia sugerir que...". Dentro da esquerda, isso tem um nome: centrismo. Aliás, esse é o centrismo do mais absurdo, aquele que embarca na onda pós-moderna que afirmar qualquer coisa é "produzir verdades" e que isso é moralmente ruim. Ora, um movimento não pode sequer existir sem afirmar que existem injustiças no mundo e sem afirmar as medidas concretas que são necessárias para combater as desigualdades.
Não é a teoria queer, nem qualquer teoria pós-moderna que leva o movimento trans a lutar por seus direitos. Pelo contrário, são suas próprias condições de vida. Sendo assim, é o cúmulo da contradição que algumas feministas radicais se oponham politicamente aos direitos das pessoas trans em nome de um suposto combate à teoria queer. Não é contra nenhuma teoria que as feministas radicais transfóbicas estão lutando, mas sim contra nosso direito à existência.
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ResponderExcluirTendo em vista aquela cartilha sobre gênero, dize-se que o queer abre espaço para a reforma de gênero e um dos últimos típicos da lista é a sobre quantos gêneros devem existir, e se responde "infinitos". Você crê no não-binarismo, nos gêneros não-binários?
ResponderExcluirSua questão já está respondida no último parágrafo:
Excluir"Não é a teoria queer, nem qualquer teoria pós-moderna que leva o movimento trans a lutar por seus direitos. Pelo contrário, são suas próprias condições de vida. Sendo assim, é o cúmulo da contradição que algumas feministas radicais se oponham politicamente aos direitos das pessoas trans em nome de um suposto combate à teoria queer. Não é contra nenhuma teoria que as feministas radicais transfóbicas estão lutando, mas sim contra nosso direito à existência."
Sobre os gêneros não-binários, não são criação da Teoria Queer. É só considerar, por exemplo, as pessoas dois-espíritos que existem em centenas de sociedades indígenas.
Tendo em vista aquela cartilha sobre gênero, dize-se que o queer abre espaço para a reforma de gênero e um dos últimos típicos da lista é a sobre quantos gêneros devem existir, e se responde "infinitos". Você crê no não-binarismo, nos gêneros não-binários?
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