sábado, 17 de janeiro de 2015

Crítica à concepção positivista de Eli Vieira

Os positivistas têm uma solução simples: o mundo deve ser dividido entre o que nós podemos dizer claramente e o resto, sobre o qual é melhor que nós permaneçamos em silêncio. Mas pode alguém conceber uma filosofia mais inútil, uma vez que o que nós dizemos claramente se reduz a quase nada? Se nós omitíssemos tudo o que é obscuro, o que restaria para nós seriam tautologias triviais e desinteressantes.

É preciso desmascarar o positivismo. Não posso deixar de comentar os absurdos ditos por Eli Vieira ao tentar desqualificar Djamila Ribeiro.

Eli começa dizendo o seguinte: 
1) Não sabe responder ao argumento de alguém nem conhece o suficiente para dar uma resposta? Diga "não concordo com seus pressupostos teóricos e bases epistemológicas". Aí você defende seus dogmas e a palavra sagrada de suas altas autoridades sem precisar dar nem um mísero argumento.
Mais abaixo, ele faz outra afirmação: 
2) Aliás, lembro que "pressuposto" não testado, ou que já nasce oco por causa de outros conhecimentos, mais merece o nome "dogma".

Acontece que a afirmação (2) é uma forma de desqualificar qualquer argumentação que não se baseie em pressupostos testáveis. Mas (2) é uma afirmação epistemológica. Ou seja: Eli Vieira critica Djamila Ribeiro por que ela não concorda com a epistemologia utilizada por ele, mas, ao mesmo tempo, ele não concorda com a epistemologia utilizada por ela e, pior, taxa-a de "dogma" sem dar qualquer justificativa senão o fato que a epistemologia de Djamila não é baseada na "testabilidade".

Em (2), Eli Vieira diz, em particular, que "um pressuposto que não é testado é um dogma". Mas isso também é um pressuposto! E o que faremos com este pressuposto, ou seja, o pressuposto dado pela afirmação (2)? Devemos testá-lo ou chamá-lo de dogma? Se tentarmos testar este pressuposto para concluir que ele é verdadeiro, estaremos cometendo a falácia do argumento circular. Se não o testarmos, não podemos concluir que ele é verdadeiro a não ser que o admitamos como um dogma.

Ironia das ironias, tudo é ironia! Eli utiliza pressupostos não-testáveis para criticar a argumentação de Djamila porque ela utiliza pressupostos não-testáveis!

O pressuposto (2) de Eli é uma versão distorcida do critério de falseabilidade de Karl Popper. Popper quis separar o que é e o que não é científico demarcando as proposições que são falseáveis (científicas) e as que não são falseáveis (não científicas, ou "dogmas"). Entretanto, apesar de reconhecer que o critério de Popper é insuficiente, Eli simplesmente muda "falseável" para "testável" e acha que, assim, o problema está resolvido!

Uma observação sobre Karl Popper: ao formular seu critério de falseabilidade, ele usa implicitamente, como pressuposto, a lógica clássica aristotélica, mais explicitamente, as "Leis Clássicas do Pensamento".

Entre essas leis, encontram-se o Princípio da Não-Contradição, que afirma que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, e também o Princípio do Terceiro Excluído, que afirma que uma proposição, ou é verdadeira, ou é falsa. Em outras palavras, as Leis Clássicas do Pensamento são uma forma extremamente binária de se conceber a verdade e a falsidade.

Entretanto, a partir de métodos empíricos e de proposições falseáveis, a Física chegou às leis da Mecânica Quântica. Tais leis, paradoxalmente, mostram que proposições sobre o estado de partículas subatômicas não seguem esses princípios.

Ironia das ironias, tudo é ironia! O critério de falseabilidade de Popper foi falseado!

Eli Vieira também mostra como está preso aos velhos princípios aristotélicos ao citar um trecho de Susan Haack:
"Descrevemos o mundo às vezes de forma verdadeira, às vezes de forma falsa. Se uma descrição sintética é verdadeira ou falsa depende do que ela diz (o que diz respeito à convenção humana) e de como as coisas no mundo descritas por ela são."
Se há uma coisa universal sobre o conhecimento humano é que ele foi historicamente produzido por seres humanos. Isso não quer dizer que o conhecimento foi retirado pelos seres humanos unicamente a partir de seus próprios cérebros, a partir de suas subjetividades, como quem cria ideias a partir das ideias. Não sou pós-moderna. Mas também não quer dizer que a "Ciência" tenha sido retirada da natureza da mesma forma que se tira uma foto de uma paisagem estática, de forma que todas as fotos tiradas mostram essencialmente a mesma imagem.

O conhecimento humano foi produzido no meio do processo vivo em que a própria sociedade trabalhava a natureza ao seu redor para retirar dela seu sustento e aquilo que lhe era útil, transformando a natureza e a própria sociedade, descobrindo a natureza e a si mesma, abstraindo cada vez mais seu próprio conhecimento e até mesmo sobre seu próprio modo de pensar. Tal conhecimento nunca foi livre de imprecisões, polêmicas, inconsistências, contradições, etc. Muito pelo contrário: o conhecimento humano se desenvolveu e se aperfeiçoou ao longo do tempo por causa de suas contradições internas e também de suas contradições com o mundo concreto, com a sociedade humana, etc.

Nem tudo no conhecimento humano tem caráter puramente subjetivo. Algumas partes desse conhecimento (como a Física) adquiriram um caráter bastante objetivo e conseguem hoje se desenvolver de forma independente das subjetividades (ao menos na aparência - voltarei a esse assunto em outro momento). Entretanto, não podemos negar, por exemplo, o papel central e decisivo que as subjetividades têm no desenvolvimento da nossa compreensão sobre as opressões, sua natureza e sua essência.

Essa concepção positivista que pretende criar critérios práticos, mecânicos e absolutos para separar a "Ciência" e a "Não-Ciência" como alguém que separa frutos bons e ruins num supermercado, não serve para o desenvolvimento nem do conhecimento humano nem da própria Ciência. Mas serve para Eli Vieira desqualificar toda a argumentação de Djamila Ribeiro baseando-se apenas em algumas questões superficiais e pontuais desta argumentação. Isso não se chama objetividade científica, pelo contrário, é mais um reflexo de uma subjetividade machista e racista que é típica da arrogância elitista academicista.

Thomas Kuhn, um semi-marxista da Filosofia da Ciência

Eli Vieira escreveu um texto mostrando algumas limitações do critério de Karl Popper. Ele afirma:
O desenvolvimento posterior da filosofia da ciência é onde eu buscaria respostas mais sofisticadas para um critério de demarcação entre ciência e não-ciência. Uma conciliação entre o pensamento de Thomas Kuhn (particularmente o pensamento de Kuhn reformado após as críticas ao "Estrutura das Revoluções Científicas", como pode ser visto no posfácio à segunda edição deste livro) e a teoria da ciência de Imre Lakatos é um ponto de partida.
Se tudo é ironia, aqui vai mais uma. Eli Vieira, que demoniza o marxismo como anticientífico neste mesmo texto, acaba sugerindo superar as limitações de Popper com a epistemologia de Kuhn. Entretanto, para desenvolver uma epistemologia da Ciência, Thomas Kuhn começa fazendo o mesmo que qualquer marxista faria: pesquisar nos livros de história para compreender o processo de mudança, de evolução pelo qual passou a própria ciência, ou as ciências. Kuhn redescobre, em parte, o método dialético empregado por Hegel e depois por Marx.

Kuhn afirma que toda ciência contém contradições que vão se acumulando e se desenvolvendo ao longo do tempo, até o ponto em que ocorre uma crise, o que faz com que a ciência entre em uma revolução, onde são construindo novos paradigmas científicos que substituirão os velhos paradigmas, e a ciência volta à estabilidade. Parece até uma paródia da descrição das revoluções que está no Manifesto Comunista!

Infelizmente, Thomas Kuhn não utiliza o método marxista em todo seu potencial. Ele não parece ter estudado como as instituições estatais e a classe dominante interferem na própria evolução da ciência, inclusive interferindo fisicamente para impedir que certas revoluções ocorram, por exemplo como aconteceu com Giordano Bruno e Galileu Galilei quando propuseram a teoria heliocêntrica: Giordano foi condenado à morte, Galileu teve que se retratar e recusar sua teoria para não ser condenado à morte.

A própria teoria de Kuhn também é um exemplo disso: a demonização do marxismo financiada pelo imperialismo ao longo do século XX (cujos interesses eram puramente os da classe dominante, ou seja, da classe burguesa, em especial da burguesia imperialista) fez com que Kuhn não tivesse acesso ao método dialético marxista para desenvolver sua teoria em todo seu potencial. A falta de compreensão do marxismo faz também com que muita gente rejeite a teoria de Kuhn com base em interpretações errôneas ou mesmo por terem sua consciência limitada pela lógica aristotélica. E é por isso que positivistas vivem descaracterizando Kuhn.