segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Não cortem as nossas "picas"! (Transfobia nos banheiros da Unicamp)

A transfobia, uma ideologia arcaica e estúpida, continua a se manifestar com muita força na nossa sociedade e são reproduzidas pelo Estado, pela Ciência e pelos movimentos que lutam contra as opressões, sejam feministas, LGBTs ou negros. Por conta disso, não somos bem-vindas em quase nenhum lugar da sociedade. Inclusive nos banheiros femininos da Unicamp.

Quem fizer uma visita a um dos banheiros femininos do PB ou do IFCH pode acabar se deparando com as pichações dessas imagens que estão espalhadas pelo texto. Dentre as prováveis milhares de mulheres que usam esses banheiros todos os dias, o fato de haverem 4 mulheres trans que os utilizam (entre mulheres transexuais e travestis) ocasionalmente incomodou a tal ponto de aparecerem 5 pichações retratando-nos como "machos" e fazendo apologia à violência.

A travestifobia no Diário Oficial da União

Vamos analisar uma nota publicada no Diário Oficial da União no dia 17 de abril deste ano. Nele, se encontram as seguintes definições:
IV - Travestis: pessoas que pertencem ao sexo masculino na dimensão fisiológica, mas que socialmente se apresentam no gênero feminino, sem rejeitar o sexo biológico; e

V - Transexuais: pessoas que são psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro, rejeitando o próprio órgão sexual biológico.
Essa diferença entre a travesti, aquela que (teoricamente) "não rejeita o órgão sexual", e a mulher transexual, que (teoricamente) "rejeita o órgão sexual", é utilizada para manter uma desigualdade social entre travestis e transexuais nos parágrafos seguintes:
Art. 3º Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos.

[...]

Art. 4º As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.

Parágrafo único. Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade.
Na prática, nas prisões masculinas, são criadas alas exclusivas para LGBTs que são ocupadas na grande maioria por travestis.

Por que essa diferença de tratamento entre as mulheres transexuais e as travestis? Por que isolar e segregar as travestis a tal ponto? Qual é o crime que nós cometemos? Querem que nossa "pica" seja cortada!

Essa medida do D.O.U. foi uma síntese de diversas medidas feitas em diversos presídios ao redor do país após várias reivindicações dos movimentos LGBTs diante vários casos de agressão de travestis e transexuais nas prisões masculinas (imagine uma travesti sendo estuprada por 20 homens).

É preciso observar que há muitas travestis nas prisões. Na Unicamp existem cerca de 40 mil estudantes e 7 pessoas trans. No Presídio Central de Porto Alegre, existem cerca de 4 mil presos. Na ala exclusiva para LGBTs, existem 36 pessoas, 32 das quais são travestis! Uma travesti para cada 125 presos! Se a proporção de pessoas trans estudando na Unicamp fosse a mesma, seríamos 320 trans! E se centenas de travestis estivessem estudando na Unicamp, o que aconteceria com elas? Teriam suas "picas" cortadas à força? Seriam expulsas dos banheiros femininos para serem vítimas de assédio e possivelmente estupros nos banheiros masculinos? Seriam excluídas e marginalizadas em um "banheiro unissex", de maneira similar à medida travestifóbica no D.O.U.?

O que diz a "objetividade científica" sobre o "transexualismo" e o "travestismo"

O documentário Meu Eu Secreto apresenta a história de 4 crianças trans. Ele é bastante instrutivo por dois motivos: primeiro, porque escancara a transfobia da sociedade e, segundo, porque também escancara a estupidez de seus próprios idealizadores.

Uma das meninas dizia insistentemente para sua mãe e para seu pai: "Eu sou uma menina", ao que elas respondiam: "Não, você é um menino, veja, você tem pipi". A insistência delas é tanta que essa menina eventualmente é encontrada com uma tesoura na mão, com a qual ela tentava remover seu próprio pênis. Diante disso, elas afirmam: "Há alguma coisa errada com essa criança". Depois, chegam à conclusão que o problema é que a criança "padece" de "distúrbio de identidade de gênero".

De onde vem essa "brilhante" conclusão? De um livro de piadas? Não, de um livro de psiquiatria! E a mesma merda está escrita no site do Drauzio Varella!

Apesar de ser óbvio que a criança passou a rejeitar a genitália após ter sido incessantemente dito para ela que ela era menino "porque tinha um pipi" e apesar da nossa sociedade ensinar para absolutamente todas as crianças que o gênero é definido pela genitália, a nossa "ciência" continua a produzir infindáveis e "rigorosos" artigos científicos baseados na ideologia arcaica que reduz o gênero a uma concepção binária definida pela genitália! Esta concepção continua a ser afirmada e reafirmada com base em "evidências" encontradas em diversos países... todos capitalistas.

Entretanto, duas coisas essa "ciência" é incapaz de responder: por que existem tantas sociedades não-capitalistas (por exemplo, indígenas, africanas, aborígenes) que aceitam a existência de mais de dois gêneros, respeitam a identidade de gênero, e em algumas delas inclusive não existe nenhum tipo de mutilação genital ou castração? E com qual critério objetivo se define que identidade de gênero seja um distúrbio?

O que nos mostram as sociedades "primitivas"?

Existem centenas (talvez milhares) de sociedades que admitem social e culturalmente a existência de um terceiro gênero, talvez até quarto ou quinto. Para o horror da "ciência" e daquelas que fizeram essas pichações, tais sociedades estão espalhadas pelo mundo todo! Para muitas delas, identidade de gênero não é distúrbio nem doença, mas pura e simplesmente uma característica humana.

Na verdade, onde existe o (cis)gênero, também existe o transgênero, mesmo que as sociedades em que ele existe não admitam este fato.

Apresento como exemplo a tribo norte-americana Zuni, uma tribo matrilinear, ou seja, onde as mulheres encabeçam as famílias. Em um estudo feito na década de 1950, por exemplo, quando aos garotos era perguntado quem eles gostariam de ser se eles pudessem se transformar em outras pessoas, um a cada 10 respondeu que deseja ser como a mãe ou uma irmã (não era observado o fenômeno inverso entre as meninas). Ou seja, as mulheres zunis têm bastante prestígio.

O caso de Nancy, da tribo Zuni, é resumido neste texto, do qual reproduzirei alguns trechos (com grifos meus):
Nancy, que nasceu no sexo feminino [female] (sic) mas que se comportava à maneira dos homens, é brevemente mencionado pelo antropólogo Elsie Clews Parsons em sua pesquisa de campo conduzida na década de 1910. Pouco é conhecido sobre Nancy a não ser sua preferência a uma identidade mais masculina e a aceitação que Nancy recebeu de sua comunidade. Nancy era um(a) lhamana zuni [...] que era, por brincadeira, chamada de katsotsi, uma mulher masculina, variação de otsotsi ou "masculino".

Lhamana pode performar uma combinação de traços de gênero em vez de aderir a um ou outro. Em termos de lhamanas do sexo masculino [male lhamana], o indivíduo será frequentemente citado em terceira pessoa como uma mulher, mas ainda assim reconhecido como do sexo masculino, como era o caso de We'wha. Por outro lado, Nancy aparentemente era citada como "ela" e "dela", mas ainda assim vista como uma katsotsi.
Mais abaixo encontra-se a história da indígena We'Wha.
We’wha nascem em 1849 na povoado Zuni, Novo México. [...] Como era o costume, a preferência de um menino [sic] pelas coisas definidas pelos zunis como femininas colocava a criança no status de lhamana, e esse muito provavelmente era o caso de We'wha.

Tendo construído seu nome como ceramista, tecelã e líder da comunidade, We'wha ganhou a atenção da antropóloga Matilda Cox Stevenson, que tinha ido a Zuni para conduzir uma pesquisa de camp. We'wha acompanhou Stevenson para sua casa perto de Dupont Circle em Washington, DC, onde We'wha foi aclamada a "Princesa Zuni" (alternativamente, "Sacerdotisa Zuni", "Madame Zuni" e "Garota Zuni"), tornou-se uma celebridade entre a elite de Washington e permaneceu alguns dias na Casa Branca como hóspede do presidente Grover Cleveland.

[...]
We'wha ganhou a atenção da mídia nacional devido à ignorância americano europeia das identidades de gênero e hierarquias políticas do povo Zuni. A revelação do sexo biológico masculino [male biological sex] dela foi um escândalo para estes europeus americanos que pensavam que We'wha era do sexo feminino [female], uma vez que We'wha teve acesso garantido aos cômodos privados das mulheres onde quer que ela fosse. Para o povo Zuni, entretanto, não havia escândalo algum.

[...]

Se We'wha tivesse sido apresentada aos americanos europeus como uma mulher Zuni do sexo masculino [male Zuni woman] desde o começo, entretanto, nunca teria sido permitido que ela fizesse as coisas que ela fez em Washington. Ela não teria sido aclamada como uma "Princesa Zuni" pela imprensa, e certamente não teria sido hóspede que ficou dias na Casa Branca. Seja por acidente ou intencionalmente por sua patrocinadora, Matilda Stevenson, a classificação incondicional de We'wha como uma mulher Zuni abriu portas para ela e deu a ela a exposição nacional que seria difícil para um homem Zuni.

Que escândalo é esse?

O que escandalizou a nossa sociedade arcaica é um fato bastante simples: We'wha ocupava os espaços femininos. O que escandalizaria a tribo Zuni, pelo contrário, seria entrar no banheiro feminino e encontrar essas pichações transfóbicas feitas por feministas intituladas "radicais" que querem "combater o patriarcado", uma estrutura de opressão que a tribo Zuni simplesmente desconhece. Talvez o que mais incomoda a toda transfobia na universidade é que os coletivos estudantis daqui que lutam contra qualquer tipo de opressão escolheram não excluir mulheres por causa de pessoas transfóbicas.

9 comentários:

  1. Certo concordo entretanto... as transexuais que querem e necessitam da mudança de sexo não deve ser excluídas das discussões quando se fala que muitas não querem, entretanto, existem muitas que querem e necessitam as vezes alguns textos nos dão impressão que isso é uma fantasia criada pela "medicalização" entretanto ela é uma realidade que deve ser vista e respeitada!

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    1. De fato, deixei margem pra essa interpretação, preciso tomar mais cuidado com isso.

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  2. Feminismo é sobre mulheres. Acho que vocês, travestis e trans, deveriam procurar seus próprios movimentos, etc. Não é preconceito, é coerência.

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    1. Esse texto é sobre pichações transfóbicas no banheiro feminino e sobre o caráter delas. Já existe um movimento próprio de trans, é o transfeminismo, que representa inclusive os homens trans, que não podem ser representados por um movimento que reproduz a transfobia. E é preciso acrescentar: a separação das bandeiras de luta contra as opressões só nos prejudica, porque a transfobia nasceu na mesma época que o machismo pela mesma razão: o fato de que homens cisgêneros foram os primeiros a acumular propriedades (gado, escravos, armas) e restringiram a liberdade das demais pessoas.

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  3. Sou feminista, marxista, estudo serviço social na UFPE e acho que as trans/gay/trava deveriam sim procurar seu próprio caminho, sem se escorar no feminismo. Vocês tiram o foco da luta feminista e emancipatória da mulher. Vocês não são mulheres, não é só a genitália ou achismo mental, ser mulher é biológico, físico, social, comportamental, etc.Feminismo é sobre mulheres, só sobre mulheres. Todo o meu respeito à luta de vocês, amigos trans, gays e travas.

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    1. Estudo ciência sociais na UFPE e concordo com você, amiga. Já passou da hora de grupos parasitários do feminismo procurarem o próprio caminho. Feminismo é sobre mulheres, e não sobre homens afeminados. Trans, trava e gays são homens. A única intersecção entre feminismo e homofobia é em questões relacionadas a lesbofobia. Mulheres (L)

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    2. Estudo Seso na UFPE também, sou gay, sempre estive nas lutas com as feministas e me entristece ver comentários como o de vocês. Homofobia no feminismo. Gente, estou arrasado. Simplesmente arrasado. São nessas horas que a lágrima cai e você não sabe se terá forças para continuar na luta. Arrasado.

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    3. você é que é transfóbico, pois colocou as trans como vítimas de homofobia.

      você também as vê como homens gays.

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    4. O que eu acho engraçado são várias pessoas polemizando com algo que eu nem disse no texto rsrsrs

      De qualquer forma, separar a luta contra todas as opressões da luta contra o capitalismo é antimarxista, o que significa que a luta contra as opressões é conjunta. Aliás, o raciocínio materialista mecanicista que muitas correntes usam (inclusive feministas, mas também de esquerda) para justificar que homens trans não são homens (quando lembram deles!) e que mulheres trans não são mulheres também é anti-dialético.

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