domingo, 27 de dezembro de 2020

As gallae, sacerdotisas transgênero, e a opressão do Império Romano

 

Levado em uma barca veloz, sobre águas profundas,
Attis, com passos ansiosos e rápidos,
Ele alcançou as florestas da Frígia
E entrou onde a deusa estava,
Sombria, esta: uma floresta –
Estava lá, impelido pela loucura, pela raiva,
Sua mente confusa,
Com uma pedra afiada,
Ele fez cair de si o fardo de sua masculinidade.
Então, quando ela sentiu
Que a estrutura de seu corpo
Não tinha mais masculinidade –
Mesmo quando o sangue fresco umidecia a superfície do chão –
Com suas mãos brancas e limpas
Ela pegou o tamborim,
O tamborim que é seu, Cibele,

Seu mistério, como mãe das coisas.
E fazendo o couro de boi vazio tremer com seus dedos macios,
Ela começou a cantar, com um pouco de medo,
Assim, para suas companheiras:

Vós, gallae, vamos, vamos para a floresta da montanha de Cibele […]’”

Catullus, Poema 63

http://aestheticrealism.net/poems/the-poem-of-catullus-about-attis/

As gallae (plural de galla) eram sacerdotisas da antiguidade que adoravam a deusa Cibele, a mãe de todos os deuses, ou outras deusas a ela associadas (Atargatis/Rhea e Agdistis). Elas se expalharam por várias nações, desde a Frígia (parte asiática da atual Turquia) até a Britânia (atual Reino Unido). A forma como eram retratadas pelos romanos se parece com o estereótipo de travesti: ‘louca’, ‘barulhenta’ e ‘hipersexualizada’. Apesar de toda a perseguição, elas existiram em Roma por mais de 500 anos, até que foram criminalizadas. Utilizo o termo gallae em vez do ‘amplamente aceito’ galli (plural de gallus, masculino de galla), o que é um exemplo da masculinização e cisgenerificação da História.

Neste texto, a principal referência é a tese de bacharelado de Lucker, de 2005 (a página 1 é o início da Introdução, terceira página do arquivo PDF).

Uso o conceito transgênero com o sentido de variância de gênero, não de uma identidade psicológica de gênero. Por exemplo, muitas travestis e hijras (na Índia) não afirmam que são mulheres (ver INDEC, p. 5-6; Chettiar, 2015, p. 754-5).

Para uma datação laica, utilizo AEC (Antes da Era Comum) e EC (Era Comum) em vez de AC (Antes de Cristo) e DC (Depois de Cristo).


Quem eram as gallae?

Na Frígia, no século VII AEC, as sacerdotisas gallae serviam a deusa Matar (ou Matar Kubeleya, que pode ser traduzido como ‘Mãe da Montanha’ [isto é, que vive na Montanha] – Lucker, 2005, p. 10). Nas cidades gregas, o nome da deusa se tornou Meter Kybele e, quando seu culto foi oficializado no início do século V AEC, transformou-se em Kybele (p. 15). O culto a Kybele/Cibele foi oficializado em Roma em 204 AEC (p. 25-6) e chegou até a Inglaterra no século IV EC (p. 50).

As gala na Mesopotâmia eram prováveis ancestrais das gallae (p. 22-4). Se essa tese for verdadeira, as gala/gallae se espalharam, de leste para oeste, por todo o Império Romano em sua maior extensão territorial, no século II EC (com exceção, talvez, das regiões do norte africano).


A castração

O ritual mais importante era o Dies Sanguini (Dia de Sangue), quando as aspirantes se castravam (com remoção dos testículos ou de toda a genitália) para se tornarem gallae – a tradição dizia ser uma imitação de Attis.

Na tradição gallae da Frígia, Attis teria sido a primeira galla, ensinando às demais como deveriam servir Cibele. Na Grécia, Attis se transformou em um consorte semidivino de Cibele e as novas histórias foram removendo o significado de gênero da castração de Attis, transformando-o num ato de raiva, angústia ou loucura (p. 27-9).

Muitos classificam as gallae como ‘sacerdotes eunucos’. É uma distorção da História. A castração de um eunuco tinha o propósito de retirar-lhe a sexualidade, enquanto uma galla era vista como hipersexualizada. Os eunucos tinham altos salários e muito prestígio, desempenhavam várias funções para o imperador ou um patrocinador (patronus). Ao contrário, as gallae viviam de esmolas ou da venda do ato sexual e eram bastante marginalizadas.


Barulhentas’

Os rituais das gallae tinham caráter extático e envolviam cantos, gritos, tamborins, flautas, címbalos e outros instrumentos (p. 7, 17, 39, 40). Isso era apontado pelos romanos como sendo estrangeiro e não-romano. O exemplo mais nítido está no livro IV de Fasti, escrito por Ovid, que retrata a própria aparecendo para ele carregada por gallae junto a uma fanfarra de instrumentos estrangeiros. Apesar de ansioso para conversar com a divindade, o barulho o intimida e ele pede para poder falar a sós com uma das musas. A primeira pergunta era porque a deusa é honrada por um estrondo estrangeiro, o que parecia estranho para o senso de decoro romano (p. 37).


Hipersexualizadas’

As gallae eram retratadas como sexualmente perversas ou promíscuas (p. 74), o que seria uma característica estrangeira e não-romana (p. 54). Lucker argumenta:

Os romanos introduziram várias novas linhagens no culto de Cibele. Anteriormente, a adoração de Cibele, apesar de ser chamada de deusa-mãe, não estava relacionada com a fertilidade. As estátuas dela com crianças são raras. Em Roma, no entanto, ela foi associada à fertilidade, abundância e sexualidade de uma forma até então desconhecida por seu culto. Iconografia de órgãos sexuais humanos, bem como cestas de frutas, amantes abraçados e Attises retratados com mantos puxados para revelar as genitálias são comuns no culto romano, mas não eram associados à adoração de Cibele em outros lugares.

(p. 26)

Hoje em dia, o discurso de que “a homossexualidade veio de fora” está na boca dos fundamentalistas de muitos países.

Há outra razão para a visão das gallae como hipersexualizadas em Roma: o fato que elas sobreviviam de esmolas e venda do sexo. Isso porque, na Frígia, as gallae eram mais bem vistas e prestigiadas (p. 31, 53-4). Na Grécia, a condição das gallae tornou-se marginal (eram vistas como não-gregas, p. 63) e tudo indica que essa marginalidade se acentuou em Roma.


Loucas’

Os textos sobre as gallae frequentemente as retratam como loucas, o que seria a causa de seus rituais, em particular o de castração (p. 4, 29). Na visão da época, essa loucura era infligida pela própria Cibele, para que homens se tornassem gallae para servir a ela. Alguns textos retratavam que espectadores do ritual Dies Sanguini eram acometidos por essa loucura e se castravam para se tornar gallae (p. 33-5, 38).

Isso era uma visão distorcida, um exemplo de como a ‘loucura galla’ era vista como contagiosa – de fato, havia um longo processo para que uma pessoa pudesse se tornar uma galla, como era comum em qualquer papel religioso (p. 55-6).

Outra evidência de que elas eram vistas como loucas era a necessidade que elas fossem vigiadas. Esse era o papel do arquigallus:

“Outra adição ao culto de Mater [Cibele] foi a do archigallus. O archigallus era uma figura de culto com uma quantidade significativa de poder que tinha uma posição de autoridade sobre os gallae. Não parece ter sido uma necessidade para o arquigalo que ele fosse castrado; de fato, esculturas de archigalli enfatizam certas características faciais masculinas que teriam sido suavizadas pela castração. Depois da época de Claudian, o arquigallus era um cidadão com alguma influência na sociedade romana e não teria permissão para ser ‘gallicizado’. No final do Império Romano, o arquigalo parece representar alguém de fora cuja tarefa era supervisionar as atividades de um grupo do qual ele não fazia parte.”

(p. 27)


A aparência feminina

Alguns textos antigos sobre as gallae eram mais favoráveis a elas, outros contrários, mas praticamente todos eles evidenciam aspectos que eram considerados símbolos femininos na época, ou que os próprios textos afirmavam ser femininos. Por exemplo: roupas (p. 1, 10, 32), maneira de dançar, penteado, registro vocal, perfumes (p. 1), “pescoços femininos” (p. 37), o corpo, os membros (Poema 63 de Catullus), roupas brilhantes, maquiagem pesada, joalheria, cabelos descoloridos e encaracolados (Hales, 2002, p. 91), etc.


O papel feminino

Catullus, em seu poema, indica que o papel de uma galla era feminino, uma exigência de Cibele. Isso corresponde a uma expectativa da época: por via de regra, as deusas eram servidas por funções religiosas femininas, enquanto os deuses, por funções masculinas.

Um epigrama de Marcial (3.81) deixa bastante nítido que o papel sexual de uma galla deveria ser feminino (caso contrário, ela deveria ser decapitada):

“What is a female slit to you, Baeticus Gallus?
This tongue is supposed to lick male crotches.
Why was your dick cut off with a Samian shard,
if the pussy was so satisfying to you, Baeticus?
Your head should be castrated: for though you are admitted
because you have the groin of one of her priests [gallus],
nonetheless you betray the rites of Cybele:
in the mouth you are a male [vir].”
(Martial Epigrams 3.81 Translation: Faris Malik)
“O que é uma fenda feminina para você, Baeticus Gallus?
Essa língua deveria lamber as virilhas masculinas [inglês: male crotches].
Por que seu pau foi cortado com uma lâmina sâmia,
se a buceta lhe agradava tanto, Baeticus?
Sua cabeça deve ser castrada: embora você seja admitido
porque você tem a virilha de um dos sacerdotes [gallus] dela,
no entanto, você trai os ritos de Cibele:
na boca, você é um macho [vir].”

(p. 47)


Nem homens, nem mulheres’ ou ‘falsas mulheres’

Havia, entretanto, um duplo critério em relação a como as gallae eram tratadas. A expectativa ou exigência de que elas cumprissem um papel feminino não significava considerá-las mulheres – elas seriam falsas mulheres (p. 35), ou “nem homens nem mulheres”. Por exemplo, do ponto de vista jurídico, estabeleceu-se (em 77 AEC) que elas não tinham direito à herança, pois apenas homens e mulheres poderiam tê-los (p. 26, 62).

Ao longo de séculos, o Senado aprovou várias leis contra as gallae (p. 49), por exemplo proibindo que qualquer cidadão romano se tornasse galla (p. 67) e qualquer galla retornasse ao papel masculino (p. 61 – essa é uma diferença significativa com os eunucos).


A criminalização das gallae (e de qualquer identidade social semelhante)

O Código Teodosiano (uma compilação de leis de 291 a 437 EC publicada em 438 EC) contém um artigo que, segundo muitos historiadores, é obscuro e pode ser interpretado de várias maneiras. Obscuro só para quem usa óculos cisgênero.

O que há de confuso numa lei que diz que uma pessoa que condena seu corpo de homem para agir como uma mulher e se parecer com uma mulher deve expiar seu crime nas chamas da vingança à vista do povo?

Mas, para não deixar dúvidas, deixo isso para outro texto, onde vou apontar as semelhanças dessa lei com outros textos de cristãos da mesma época – que falam sobre as gallae e outros papeis religiosos em outras partes do mundo.


Referências

[1] Lucker, K. A, 2005. The Gallae: Transgender Priests Of Ancient Greece, Rome, And The Near East. Bacharel Thesis. Sarasota: New College of Florida. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://s3.amazonaws.com/arena-attachments/539632/d6348aa09f4510eb5704b6da501f9e7d.pdf

[2] INDEC, 2012. Primera Encuesta sobre Población Trans 2012: Travestis, Transexuales, Transgéneros y Hombres Trans. Informe técnico de la Prueba Piloto Municipio de La Matanza 18 al 29 de junio 2012. Buenos Aires. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://www.indec.gob.ar/micro_sitios/WebEncuestaTrans/pp_encuesta_trans_set2012.pdf

[3] Chettiar, Anitha, 2015. Problems Faced by Hijras (Male to Female Transgenders) in Mumbai with Reference to Their Health and Harassment by the Police. International Journal of Social Science and Humanity, 5(9), pp. 752–759. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: http://www.ijssh.org/papers/551-W10007.pdf

[4] Hales, Shelley, 2002. Looking for eunuchs: The galli and Attis in Roman art. In Tougher, Shaun (ed.). Eunuchs in Antiquity and Beyond. The Classical Press of Wales and Duckworth.

[5] Martin, Dale B., 2009. The Greco-Roman World [vídeo]. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ecpn3bkVvv0&list=PL279CFA55C51E75E0&index=3

'Dois-espíritos' e a diversidade de gênero nos povos nativos da América do Norte

Desde o século XVI, colonizadores, particularmente padres jesuítas, perceberam que os papéis de gênero nos povos nativos americanos não correspondiam à concepção europeia. Escandalizados, escreveram sobre “homens” nativos que tinham papel social feminino ou misto e os apelidaram de berdaches, um termo pejoratido. Contrário a isso, o antropólogo doutor Wesley Thomas, membro do povo Navajo, cunhou o termo guarda-chuva ‘dois-espíritos’, que passou a ser reivindicado pelos movimentos indígenas LGBTQIA+ da América do Norte a partir de 1990. As produções antropológicas passaram a adotar esse termo.

A concepção binária de gênero foi fabricada e imposta, pela colonização, a quase todo o mundo. Criou-se a ideologia de que isso é natural e que sempre foi assim.


O que é berdache?

A adoção deste termo diz muito mais sobre a sociedade europeia do que sobre as sociedades indígenas americanas.

A palavra vem do francês, berdache, que pode significar ‘homossexual passivo’, ‘pederasta’ ou ‘garoto prostituto’. Esta, por sua vez, deria do termo persa barda, que significa ‘cativo’, ‘prisioneiro de guerra’ ou ‘escravo’.

Portanto, o conceito berdache diz muito sobre como a sociedade europeia ocidental enxergava pessoas do ‘sexo masculino’ que desempenhavam papéis femininos ou mistos. Fica evidente, aliás, que esse termo não tem relação nenhuma com quem são as pessoas ‘dois-espíritos’, nem com como são tratadas por suas comunidades.

Por exemplo, Will Roscoe afirmou em seu livro sobre We’wha, em 1991:

“Hoje, os antropólogos se estabeleceram no termo berdache, uma versão de bardaje usada pelos exploradores franceses. […] O Oxford English Dictionary define ‘bardash’ como ‘um menino mantido para propósitos não naturais. Embora tal prática tenha muito pouco a ver com o papel do berdache norte-americano, os europeus não tinham um termo mais adequado para tal status. […]
Berdaches do sexo masculino e feminino [sic] (isto é, mulheres que assumiram papéis masculinos como guerreiros e chefes ou engajados em trabalhos ou ocupações masculinas) [sic] foram documentados em mais de 130 tribos norte-americanas, em todas as regiões do continente, entre todos os tipos de cultura nativa, dos pequenos bandos de caçadores do Alasca às populosas e hierárquicas cidades-estado da Flórida. Entre os indígenas Pueblo do Arizona e Novo México, berdaches masculinos foram registrados em Acoma, Hopi, Isleta, Laguna, Santa Ana, Santo Domingo, San Felipe, San Juan, Tesuque e Zuni. Nas várias línguas faladas nesses pueblos, eles eram chamados de kokwimu (Keres), hova (Hopi), lhunide (Tiwa), kwidó (Tewa) e lhamana (Zuni).
“Nas sociedades nativas tradicionais, os berdaches não eram anômalos. Eles eram membros integrais, produtivos e valiosos de suas comunidades. Mas a cultura europeia transplantada para a América carecia de quaisquer papéis comparáveis, e os europeus que viram berdaches foram incapazes de descrevê-los com precisão ou compreender seu lugar nas sociedades indígenas. De fato, ao longo de um longo período de história, as instituições sociais europeias buscaram suprimir os próprios comportamentos econômicos, sociais e sexuais típicos dos berdaches. Poucos aspectos das culturas dos indígenas europeus e americanos conflitavam tanto quanto neste.”
(1991, p. 5, tradução nossa)


Mas por que ‘dois-espíritos’?

Quero explicitar que as culturas e tradições dos povos nativos são bastante diversas. O conceito ‘dois-espíritos’ é um guarda-chuva e, dentro dele, se abrigam identidades de diversos povos, com significados diferentes. Mary Annette Pember, uma jornalista ojíbua, explica que esse termo é útil para substituir o anterior e como ferramenta de organização inter-povos, mas que não existe “nenhuma cultura ou espiritualidade universal na América nativa” (Pember, 2016, tradução nossa).

Esse nome foi criado devido à crença religiosa de alguns desses povos que consideram que algumas pessoas nascem com dois espíritos, um masculino e um feminino. Esta crença seria uma justificativa religiosa de que tais pessoas são especiais, são xamãs, têm poder de cura ou de dar boa sorte, são capazes de desempenhar com destreza tarefas consideradas femininas e masculinas, etc.


We’wha, a ‘Princesa Zuni’

We’wha (lê-se uei-ua, mas há variações) foi uma indígena do povo Zuni que viveu na segunda metade do século XIX e que se tornou relativamente famosa, saindo em jornais de Washington com títulos de Princesa Zuni, Madame Zuni e Sacerdotisa Zuni, entre outros. Apesar do seu tipo físico (alta e musculosa) e sua aparência (distante do padrão para uma mulher cis), ela era reconhecida como mulher, até que descobriram que ela tinha “sexo biológico masculino” (na concepção da medicina).

O povo Zuni considerava We’wha como uma lhamana, e justamente por isso lhe foi designado o papel de embaixadora cultural de seu povo. Pois as lhamanas, de qualquer sexo biológico, tinham um status especial no povo Zuni.

Como explica Will Roscoe, o povo Zuni é matrilinear (ou seja, a linhagem familiar é determinada pela mãe, não pelo pai).

A solução Zuni [para o bem-estar das crianças] não dependia da instituição do casamento. Casadas, divorciadas ou solteiras, as mulheres sempre tiveram um lar. E em um sistema matrilinear, não havia filhos ilegítimos. As crianças só precisavam que as mães pudessem ser filiadas a uma família e a um clã. Assim, as mulheres Zuni eram livres para escolher parceiros sexuais sem compulsão econômica ou moral, para praticar o controle da natalidade (incluindo o aborto e anticoncepcionais naturais), em suma, para controlar seus próprios corpos. ‘Encontros amorosos são um costume Zuni aceito e culturalmente se espera que haja uma relação sexual pré-marital’, concluiu um estudo. O namoro é freqüentemente iniciado pela garota e os casos pré-maritais acontecem em sua casa. […]
Uma medida reveladora do status das mulheres Zuni foi a resposta das crianças a uma pesquisa feita na década de 1950. Quando os meninos Zuni foram questionados sobre quem eles gostariam de ser se pudessem se transformar em outra pessoa, 10% quiseram ser suas irmãs ou mães. Uma porcentagem tão alta não pode ser explicada como uma epidemia de disforia de gênero, (sic) mas simplesmente como um reflexo do prestígio dos papéis femininos.”
(1991, p. 20-1, tradução nossa)

Grande parte do material publicado sobre We’wha tem como fonte os escritos de Mathilda Coxe Stevenson, antropóloga que se tornou amiga pessoal de We’wha. Em um relatório ao Biro de Etnologia Americana [Bureau of American Ethnology], Stevenson descreve We’wha:


Esta pessoa era um homem (sic) que usava roupas femininas, e seu sexo era tão cuidadosamente oculto que a escritora acreditava que ele era uma mulher (sic). Alguns declararam que ele era um hermafrodita (sic), mas a escritora não deu crédito a esse relato e continuou tratando We’wha como uma mulher, e como ele era sempre referido pela tribo como ‘ela’ – sendo seu costume tratar homens que usam roupas femininas como se eles fossem mulher (sic) – e a escritora não poderia jamais imaginar de sua amiga fiel e devota de qualquer outra maneira, ela continuará a usar o gênero feminino ao se referir a We’wha”
(Bost, 2003, p. 137, tradução nossa, grifo nosso)

O relato de Stevenson demonstra um conflito entre a visão que o povo Zuni tinha de We’wha (sempre a tratando no feminino) com a visão de origem europeia. Percebe-se que a própria Stevenson se vê constrangida de tratar We’wha com pronomes femininos ante a sociedade capitalista estadunidense, ao ponto de ter de explicar por que a tratava assim – era uma questão de respeito a ela e a seu povo. Stevenson teve também de explicar por que não sabia (e aliás, nem queria saber) qual era exatamente o ‘sexo biológico’ de We’wha.

Mas por que isso é constrangedor? O constrangimento não deveria ser de quem queria fiscalizar o que We’wha tinha no meio das pernas? Curioso: quem insistia em tratar We’wha no masculino, em desrespeito a ela e ao povo Zuni, nunca sequer sentiu necessidade de se explicar.

Como relata Suzanne Bost (2003, p. 137), o conflito de Stevenson se reproduz ao longo do relatório e em outros textos, onde ela, ora se refere a We’wha como ‘ela’, ora como ‘ele’.

A morte de We’wha, testemunhada por Stevenson, causou “pesar e angústia universais” para o povo Zuni (Roscoe, 1991, p. 4). Uma reação contrária à tradição europeia ocidental, onde as pessoas dois-espíritos “evocavam desânimo, desgosto, raiva ou, pelo menos, o ridículo”, eram vistas como “anomalias – aberrações da natureza, demônios, desviantes, pervertidos, pecadores, corruptores” pois “cometiam o ‘vício nefasto’, o ‘pecado abominável’” (idem, p. 4).

Note que não há, necessariamente, uma correlação entre sexualidade e as identidades dois-espíritos. A correlação entre a identidade lhamana e a ‘sodomia’ (assim chamado o ‘pecado abominável’ da penetração anal, particularmente entre dois homens) estava na cabeça dos colonizadores.


Uma tradição cada vez mais corroída

Pember relata:

O legado da dominação ocidental roubou de muitos, incluindo dos nativos americanos, qualquer religião ou cultura que não se encaixasse nas estreitas normas ocidentais.
[…]
Anos de colonização e apropriação por invasores europeus, bem como a hegemonia religiosa bem-intencionada que demonizou nossa espiritualidade e modo de vida através de internatos e outros meios, tornou a Nação Indígena muito parecida com o resto da América rural em relação a como tratam pessoas LGBTQ. Na verdade, algumas tribos criaram leis proibindo especificamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Indivíduos com variação de gênero enfrentam dificuldades para entrar e sair da Nação Indígena.
(2016, tradução nossa)

A ideologia colonizadora europeia penetrou em muitos destes povos, principalmente a partir da ‘evangelização’ dos padres jesuítas, que se horrorizavam com a aceitação e naturalização da diversidade nesses povos. Kristopher Kohl Miner, da nação indígena Ho-Chung, relatou para Pember:

Dois-espíritos é um termo totalmente contemporâneo. Ele foi trazido à mesa porque os antropólogos se referiam a nós como berdache. Pessoas LGBTQ nativas queriam um termo que nos desse a oportunidade de tomar de volta nossas identidades.”
(2016, tradução nossa)


Referências

[1] Roscoe, Will, 1996. The Zuni Man-Woman. Albuquerque, N.M: University of New Mexico Press. (Alguns trechos estão disponíveis em: https://ratical.org/many_worlds/onlyDifferent.html)

[2] Bost, Suzanne, 2003. Mulattas and Mestizas: Representing Mixed Identities in the Americas, 1850-2000. Athens, Georgia: University of Georgia Press.

[3] Pember, Mary Annette, 2016. ‘Two Spirit’ Tradition Far From Ubiquitous Among Tribes. [online] Rewire News Group. Acessado em 05/12/2020. Disponível em: https://rewirenewsgroup.com/article/2016/10/13/two-spirit-tradition-far-ubiquitous-among-tribes/

[4] Treuer, A., 2011. The Assassination Of Hole In The Day. St. Paul, MN: Borealis Books.