Desde o século XVI, colonizadores, particularmente padres jesuítas, perceberam que os papéis de gênero nos povos nativos americanos não correspondiam à concepção europeia. Escandalizados, escreveram sobre “homens” nativos que tinham papel social feminino ou misto e os apelidaram de berdaches, um termo pejoratido. Contrário a isso, o antropólogo doutor Wesley Thomas, membro do povo Navajo, cunhou o termo guarda-chuva ‘dois-espíritos’, que passou a ser reivindicado pelos movimentos indígenas LGBTQIA+ da América do Norte a partir de 1990. As produções antropológicas passaram a adotar esse termo.
A concepção binária de gênero foi fabricada e imposta, pela colonização, a quase todo o mundo. Criou-se a ideologia de que isso é natural e que sempre foi assim.
O que é berdache?
A adoção deste termo diz muito mais sobre a sociedade europeia do que sobre as sociedades indígenas americanas.
A palavra vem do francês, berdache, que pode significar ‘homossexual passivo’, ‘pederasta’ ou ‘garoto prostituto’. Esta, por sua vez, deria do termo persa barda, que significa ‘cativo’, ‘prisioneiro de guerra’ ou ‘escravo’.
Portanto, o conceito berdache diz muito sobre como a sociedade europeia ocidental enxergava pessoas do ‘sexo masculino’ que desempenhavam papéis femininos ou mistos. Fica evidente, aliás, que esse termo não tem relação nenhuma com quem são as pessoas ‘dois-espíritos’, nem com como são tratadas por suas comunidades.
Por exemplo, Will Roscoe afirmou em seu livro sobre We’wha, em 1991:
“Hoje, os antropólogos se estabeleceram no termo berdache, uma versão de bardaje usada pelos exploradores franceses. […] O Oxford English Dictionary define ‘bardash’ como ‘um menino mantido para propósitos não naturais’. Embora tal prática tenha muito pouco a ver com o papel do berdache norte-americano, os europeus não tinham um termo mais adequado para tal status. […]
“Berdaches do sexo masculino e feminino [sic] (isto é, mulheres que assumiram papéis masculinos como guerreiros e chefes ou engajados em trabalhos ou ocupações masculinas) [sic] foram documentados em mais de 130 tribos norte-americanas, em todas as regiões do continente, entre todos os tipos de cultura nativa, dos pequenos bandos de caçadores do Alasca às populosas e hierárquicas cidades-estado da Flórida. Entre os indígenas Pueblo do Arizona e Novo México, berdaches masculinos foram registrados em Acoma, Hopi, Isleta, Laguna, Santa Ana, Santo Domingo, San Felipe, San Juan, Tesuque e Zuni. Nas várias línguas faladas nesses pueblos, eles eram chamados de kokwimu (Keres), hova (Hopi), lhunide (Tiwa), kwidó (Tewa) e lhamana (Zuni).
“Nas sociedades nativas tradicionais, os berdaches não eram anômalos. Eles eram membros integrais, produtivos e valiosos de suas comunidades. Mas a cultura europeia transplantada para a América carecia de quaisquer papéis comparáveis, e os europeus que viram berdaches foram incapazes de descrevê-los com precisão ou compreender seu lugar nas sociedades indígenas. De fato, ao longo de um longo período de história, as instituições sociais europeias buscaram suprimir os próprios comportamentos econômicos, sociais e sexuais típicos dos berdaches. Poucos aspectos das culturas dos indígenas europeus e americanos conflitavam tanto quanto neste.”
(1991, p. 5, tradução nossa)
Mas por que ‘dois-espíritos’?
Quero explicitar que as culturas e tradições dos povos nativos são bastante diversas. O conceito ‘dois-espíritos’ é um guarda-chuva e, dentro dele, se abrigam identidades de diversos povos, com significados diferentes. Mary Annette Pember, uma jornalista ojíbua, explica que esse termo é útil para substituir o anterior e como ferramenta de organização inter-povos, mas que não existe “nenhuma cultura ou espiritualidade universal na América nativa” (Pember, 2016, tradução nossa).
Esse nome foi criado devido à crença religiosa de alguns desses povos que consideram que algumas pessoas nascem com dois espíritos, um masculino e um feminino. Esta crença seria uma justificativa religiosa de que tais pessoas são especiais, são xamãs, têm poder de cura ou de dar boa sorte, são capazes de desempenhar com destreza tarefas consideradas femininas e masculinas, etc.
We’wha, a ‘Princesa Zuni’
We’wha (lê-se uei-ua, mas há variações) foi uma indígena do povo Zuni que viveu na segunda metade do século XIX e que se tornou relativamente famosa, saindo em jornais de Washington com títulos de Princesa Zuni, Madame Zuni e Sacerdotisa Zuni, entre outros. Apesar do seu tipo físico (alta e musculosa) e sua aparência (distante do padrão para uma mulher cis), ela era reconhecida como mulher, até que descobriram que ela tinha “sexo biológico masculino” (na concepção da medicina).
O povo Zuni considerava We’wha como uma lhamana, e justamente por isso lhe foi designado o papel de embaixadora cultural de seu povo. Pois as lhamanas, de qualquer sexo biológico, tinham um status especial no povo Zuni.
Como explica Will Roscoe, o povo Zuni é matrilinear (ou seja, a linhagem familiar é determinada pela mãe, não pelo pai).
“A solução Zuni [para o bem-estar das crianças] não dependia da instituição do casamento. Casadas, divorciadas ou solteiras, as mulheres sempre tiveram um lar. E em um sistema matrilinear, não havia filhos ilegítimos. As crianças só precisavam que as mães pudessem ser filiadas a uma família e a um clã. Assim, as mulheres Zuni eram livres para escolher parceiros sexuais sem compulsão econômica ou moral, para praticar o controle da natalidade (incluindo o aborto e anticoncepcionais naturais), em suma, para controlar seus próprios corpos. ‘Encontros amorosos são um costume Zuni aceito e culturalmente se espera que haja uma relação sexual pré-marital’, concluiu um estudo. O namoro é freqüentemente iniciado pela garota e os casos pré-maritais acontecem em sua casa. […]
“Uma medida reveladora do status das mulheres Zuni foi a resposta das crianças a uma pesquisa feita na década de 1950. Quando os meninos Zuni foram questionados sobre quem eles gostariam de ser se pudessem se transformar em outra pessoa, 10% quiseram ser suas irmãs ou mães. Uma porcentagem tão alta não pode ser explicada como uma epidemia de disforia de gênero, (sic) mas simplesmente como um reflexo do prestígio dos papéis femininos.”
(1991, p. 20-1, tradução nossa)
Grande parte do material publicado sobre We’wha tem como fonte os escritos de Mathilda Coxe Stevenson, antropóloga que se tornou amiga pessoal de We’wha. Em um relatório ao Biro de Etnologia Americana [Bureau of American Ethnology], Stevenson descreve We’wha:
“Esta pessoa era um homem (sic) que usava roupas femininas, e seu sexo era tão cuidadosamente oculto que a escritora acreditava que ele era uma mulher (sic). Alguns declararam que ele era um hermafrodita (sic), mas a escritora não deu crédito a esse relato e continuou tratando We’wha como uma mulher, e como ele era sempre referido pela tribo como ‘ela’ – sendo seu costume tratar homens que usam roupas femininas como se eles fossem mulher (sic) – e a escritora não poderia jamais imaginar de sua amiga fiel e devota de qualquer outra maneira, ela continuará a usar o gênero feminino ao se referir a We’wha”
(Bost, 2003, p. 137, tradução nossa, grifo nosso)
O relato de Stevenson demonstra um conflito entre a visão que o povo Zuni tinha de We’wha (sempre a tratando no feminino) com a visão de origem europeia. Percebe-se que a própria Stevenson se vê constrangida de tratar We’wha com pronomes femininos ante a sociedade capitalista estadunidense, ao ponto de ter de explicar por que a tratava assim – era uma questão de respeito a ela e a seu povo. Stevenson teve também de explicar por que não sabia (e aliás, nem queria saber) qual era exatamente o ‘sexo biológico’ de We’wha.
Mas por que isso é constrangedor? O constrangimento não deveria ser de quem queria fiscalizar o que We’wha tinha no meio das pernas? Curioso: quem insistia em tratar We’wha no masculino, em desrespeito a ela e ao povo Zuni, nunca sequer sentiu necessidade de se explicar.
Como relata Suzanne Bost (2003, p. 137), o conflito de Stevenson se reproduz ao longo do relatório e em outros textos, onde ela, ora se refere a We’wha como ‘ela’, ora como ‘ele’.
A morte de We’wha, testemunhada por Stevenson, causou “pesar e angústia universais” para o povo Zuni (Roscoe, 1991, p. 4). Uma reação contrária à tradição europeia ocidental, onde as pessoas dois-espíritos “evocavam desânimo, desgosto, raiva ou, pelo menos, o ridículo”, eram vistas como “anomalias – aberrações da natureza, demônios, desviantes, pervertidos, pecadores, corruptores” pois “cometiam o ‘vício nefasto’, o ‘pecado abominável’” (idem, p. 4).
Note que não há, necessariamente, uma correlação entre sexualidade e as identidades dois-espíritos. A correlação entre a identidade lhamana e a ‘sodomia’ (assim chamado o ‘pecado abominável’ da penetração anal, particularmente entre dois homens) estava na cabeça dos colonizadores.
Uma tradição cada vez mais corroída
Pember relata:
“O legado da dominação ocidental roubou de muitos, incluindo dos nativos americanos, qualquer religião ou cultura que não se encaixasse nas estreitas normas ocidentais.
[…]
“Anos de colonização e apropriação por invasores europeus, bem como a hegemonia religiosa bem-intencionada que demonizou nossa espiritualidade e modo de vida através de internatos e outros meios, tornou a Nação Indígena muito parecida com o resto da América rural em relação a como tratam pessoas LGBTQ. Na verdade, algumas tribos criaram leis proibindo especificamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Indivíduos com variação de gênero enfrentam dificuldades para entrar e sair da Nação Indígena.”
(2016, tradução nossa)
A ideologia colonizadora europeia penetrou em muitos destes povos, principalmente a partir da ‘evangelização’ dos padres jesuítas, que se horrorizavam com a aceitação e naturalização da diversidade nesses povos. Kristopher Kohl Miner, da nação indígena Ho-Chung, relatou para Pember:
“Dois-espíritos é um termo totalmente contemporâneo. Ele foi trazido à mesa porque os antropólogos se referiam a nós como berdache. Pessoas LGBTQ nativas queriam um termo que nos desse a oportunidade de tomar de volta nossas identidades.”
(2016, tradução nossa)
Referências
[1] Roscoe, Will, 1996. The Zuni Man-Woman. Albuquerque, N.M: University of New Mexico Press. (Alguns trechos estão disponíveis em: https://ratical.org/many_worlds/onlyDifferent.html)
[2] Bost, Suzanne, 2003. Mulattas and Mestizas: Representing Mixed Identities in the Americas, 1850-2000. Athens, Georgia: University of Georgia Press.
[3] Pember, Mary Annette, 2016. ‘Two Spirit’ Tradition Far From Ubiquitous Among Tribes. [online] Rewire News Group. Acessado em 05/12/2020. Disponível em: https://rewirenewsgroup.com/article/2016/10/13/two-spirit-tradition-far-ubiquitous-among-tribes/
[4] Treuer, A., 2011. The Assassination Of Hole In The Day. St. Paul, MN: Borealis Books.
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