“A natureza é ilimitada em suas criações. Entre todos os opostos existem transições, e isso também é verdade sobre os sexos. Portanto, além do homem e da mulher, existem também homens com traços físicos e psicológicos femininos, assim como mulheres com todo tipo de características masculinas.”
Magnus Hirschfeld no filme ‘Diferente dos Outros’ (Anders als die Andern), 1919.
De volta a 2012, o tema LGBT fervilhava na Argentina, onde a Parada LGBT crescia ano a ano e conquistou leis como a de casamento igualitário (em 2010) e a de identidade de gênero (em 2012). Os fundamentalistas do Brasil estavam de cabelo em pé. Feliciano lançou um projeto de lei de ‘cura gay’, mas o tiro saiu pela culatra. Até a Globo foi obrigada a se posicionar indiretamente – e assim nasceu Félix e o primeiro beijo gay numa novela da emissora. Em 2014, os fundamentalistas adotaram o conceito de ‘ideologia de gênero’, apoiando-se nos preconceitos populares contra as travestis e obtiveram grande sucesso em sua empreitada maliciosa. Eles mudaram o chip, mas a esquerda não. Por quê?
Permitam-me digressar um pouco e voltar ao começo do século XX, quando o tema da homossexualidade (na época ‘homossexualismo’) fervilhava na Alemanha e dali começou a fervilhar em diversos países da Europa. Magnus Hirschfeld, médico e homossexual não-assumido, começou a estudar e elaborar sobre o tema. Magnus fundou o Instituto Científico-Humanitário, que se tornou o maior movimento da época pelas liberdades sexuais não somente de homens e mulheres homossexuais, como também das mulheres em geral.
A teoria de Hirschfeld não estudou somente a atração sexual, como também uma série de características do comportamento humano, a maneira de ser, o uso de roupas, a identidade de gênero, etc. O sexólogo já havia percebido que esses comportamentos não estavam necessariamente vinculados à orientação sexual. Como resultado, ele teorizou que essas várias formas de existir eram gêneros intermediários. Ele categorização 64 tipos de gênero intermediário.
E hoje há quem reclame pelo ‘excesso de letras’ em nossa sigla. Ora, se dependesse de Hirschfeld, teríamos de emprestar letras do alfabeto grego e do cirílico!
Sim, estou sendo intencionalmente anacrônica aqui, pois o conceito de gênero só viria a ser concebido nas teorias feministas décadas depois de Hirschfeld. Em vez de gênero, este falava em sexo. Entretanto, atualizando a sua teoria para conhecimentos mais atuais, concluímos que o que define a existência LGBTQIA+ é a variação do comportamento humano em relação às normas de gênero. Resumindo em um conceito, diversidade de gênero.
Essa perspectiva, infelizmente, não se desenvolveu devido, por um lado, ao nazismo na Alemanha e, por outro, ao stalinismo na União Soviética. Ambos movimentos políticos tinham profunda aversão à diversidade de gênero. Enquanto os nazistas acusavam os comunistas de serem todos homossexuais, os stalinistas repetiam o lema “extermine os homossexuais e o fascismo desaparecerá”. Prenderam e assassinaram ativistas, queimaram livros, o Instituto fundado por Hirschfeld foi reduzido ao pó das cinzas. Até mesmo os países supostamente democráticos intensificaram a perseguição à comunidade LGBTQIA+ nas décadas seguintes.
O movimento LGBTQIA+ voltou a revigorar a partir da Revolta de Stonewall, em 1969, que foi protagonizada principalmente por pessoas negras e latinas das periferias, grande parte delas pessoas trans (ou ‘drag kings e drag queens’) profissionais do sexo ou de shows (muito mal pagos). O movimento que dali surgiu, a GLF (Gay Liberation Front – Frente de Liberação Gay), refletia essas características. Entretanto, a GLF de Nova Iorque implodiu logo ao fim de 1970 e deu lugar a GAA (Gay Activists Aliance – Aliança de Ativistas Gays), que tinha caráter muito mais reformista e ‘apolítico’.
Ao buscar visibilidade e ‘diálogo’ com a mídia e os políticos, a GAA foi cada vez mais protagonizada por homens gays brancos e cisgêneros, o que provocou rupturas, por exemplo, com a formação da LLF (Lesbian Liberation Front – Frente de Liberação Lésbica) em 1972 e da QLF (Queen Liberation Front – Frente de Liberação Queen) em 1973.
O protagonismo dos homens gays brancos e cisgêneros refletiu-se nas pautas, cada vez mais voltadas à orientação sexual, e no discurso de que o tema que unía todo o movimento LGBTQIA+ era a sexualidade.
Heteronormatividade ou normas de gênero?
A aberração teórica chamada ‘heteronormatividade’ é um belo exemplo de como essa perspectiva contaminou todo o debate político-teórico. Pelo amor de Inanna, alguém me explique o que a cor do enxoval de um bebê tem a ver com a atração romântica ou sexual que ele vai sentir mais de uma década depois? Nada! É o contrário: tanto a cor do enxoval quanto a atração romântica e sexual são padronizadas para que sejam perpetuadas as normas de gênero. A única definição coerente é considerar como heteronormatividade apenas a norma que estabelece a atração romântica e sexual.
É verdade que a opressão à comunidade LGBTQIA+, no discurso, aparece como opressão ‘aos gays’, mas não podemos confundir aparência e essência. Na vasta maioria das vezes que alguém é ‘xingado’ de viado ou sapatão, não é devido à sua orientação sexual.
Foi fundamentalmente Michel Foucault quem preencheu o grande buraco teórico que havia sido formado pelos genocídios passados. A sua explicação para a opressão ‘homofóbica’, incluída na trilogia História da Sexualidade, não se fundamenta na padronização dos seres humanos em dois gêneros, mas, sim, na criação do regime de heterossexualidade criado no século XVII. No entanto, apenas no século XIX teriam surgido as teorias médicas sobre a ‘homossexualidade’ e daí a opressão ‘homofóbica’.
O conceito de ‘homofobia’ de Foucault é tão limitado que nele nem sequer cabe o extermínio de milhares de ‘sodomitas’ pela Santa Inquisição durante a Idade Média, nem o extermínio das bruxas acusadas de ‘abandonarem as decências de seu sexo’, como o notável exemplo da condenação de Joana D’Arc. Também não cabe nele os discursos dos ‘pais da Igreja Católica’, como os de João Crisóstomo (347 a 407 d.C.), que foi arcebispo de Constantinopla e falou sobre o tema em várias homilias, inclusive defendendo a morte por apedrejamento para um homem que fossepenetrado por outro.
João Crisóstomo, que não tinha receio de atirar a primeira pedra, com certeza era um homem sem pecados! [Aviso de ironia]
A preseguição aos ‘sodomitas’ (termo bastante próximo do conceito atual de ‘homem gay’) remonta aos discursos dos ‘pais da Igreja’ ao fim da Antiguidade, que condenavam “todo casamento ilegal, toda prática indecorosa toda união de mulher com mulher e de homem com homem” (Eusébio de Cesareia, 265 a 339), pagãos que “se poluíam ao se deitarem com outros homens” (Aristides de Atenas, século II), homens que eram “culpados de indecências com outros homens” (Basílio de Cesareia, 329 a 379), homens que “desejavam outros homens” (Gregório de Níssa, 335 a395), etc.
Na verdade, o conceito de ‘homofobia’ de Foucault refere-se apenas a um tipo de opressão à diversidade de gênero que surgiu em um determinado período da história humana. Longe de ser universal, trata-se do específico do específico do específico. Nem sequer engloba as formas anteriores de opressão aos ‘homossexuais’ – apenas porque não eram assim categorizados e denominados. Mais ainda, os inúmeros teóricos que trataram da opressão à comunidade LGBTQIA+ não conseguiram enxergar a totalidade porque se limitaram à opressão da sexualidade, sem compreender que ela é apenas um tipo de opressão à diversidade de gênero.
Somente compreendendo a opressão à diversidade de gênero de uma forma total que é possível enxergar, ao longo da História e das inúmeras sociedades humanas, diversas formas de padronização dos seres humanos em dois gêneros e, consequentemente, várias formas de opressão às pessoas que não se adequavam a ela.
Afinal, antes do patriarcado estabelecer a opressão de gênero, era necessário estabelecer a própria existência de dois gêneros. Se não existirem homens e mulheres, é impossível que exista a opressão machista. Portanto, a opressão à diversidade de gênero não é apenas um produto do patriarcado, é também um pressuposto deste.
Resgatar as cores do movimento!
Ao hegemonizarem o movimento LGBTQIA+, os homens cis brancos e gays impuseram as discussões sobre sexualidade como sendo universais para esse setor da população. Seria uma ofensa para eles que o que lhes perturba é apenas uma pequena parte da normatização do gênero, porque isso faria com que eles deixassem de ser o centro e os ‘legítimos representantes’ do movimento.
A esquerda e o movimento LGBTQIA+ precisam mudar de chip e parar de usar as distintas identidades do movimento apenas como ‘token’, como símbolo usado meramente para mostrar que o movimento é colorido. A preciso alterar as cores por dentro, e não apenas por fora, na aparência. Para isso, é preciso trazer o gênero e o patriarcado de volta ao centro do debate.
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