A autora da série de livros ‘Harry Potter’, Joanne K. Rowling, escreveu um texto em seu blog [1] tentando justificar uma série de comentários que desautorizam a identidade de gênero das pessoas trans, particularmente das mulheres. O texto revela que Joanne não apenas se opõe a que nós sejamos consideradas mulheres do ponto de vista social e legal, mas também a uma série de direitos fundamentais que nós conquistamos com muita luta. Em última instância, o que ela quer é que nós, pessoas trans, abramos mãos de nossos direitos. Vamos a seus argumentos.
Antes de iniciar o debate, quer deixar bem explícito que sou crítica aos xingamentos misóginos e às ameaças recebidas pela autora. Posiciono-me absolutamente contra todo tipo de violência, inclusive a verbal. Esse tipo de comportamento é condenável e inaceitável em qualquer tipo de debate, por mais absurdas que sejam os argumentos sendo utilizados.
Comecemos pelo tweet sarcástico de J. K. Rowling:
“‘Pessoas que menstruam.’ Tenho certeza que havia uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude. Wumben? Wimpund? Woomud? [Em referência a palavra ‘women’, mulheres em inglês.”
“‘People who menstruate.’ I’m sure there used to be a word for those people. Someone help me out. Wumben? Wimpund? Woomud?”[2]
Devo lembrar a Rowling que nem todas as mulheres menstruam – e não estou falando apenas das pessoas trans. Esse comentário sarcástico acaba desautorizando a identidade de gênero de mulheres cis que estão na menopausa, que usam anticoncepcionais ou que, por qualquer condição biológica, não menstruam. Bem, ao menos com essa afirmação, os homens trans que se hormonizam seriam reconhecidos como homens!
Brincadeiras à parte, não importa qual característica biológica Rowling queira utilizar para definir o que é ser mulher, ela inevitavelmente vai acabar excluindo uma parte das mulheres, inclusive de mulheres cis. Mas não são características biológicas que definem o que é ser mulher. O gênero, como explicou Simone de Beauvoir, é social.
Se Joanne cita Beauvoir no seu texto, por que não a ouve?
Como é muito comum, J. K. Rowling faz relatos pessoais sobre como ela via seu gênero e fazendo suposições acerca de como seria se ela tivesse tido acesso ao debate sobre identidade de gênero em sua adolescência. Não vou responder a tais relatos porque, primeiro, são pessoais e, segundo, são irrelevantes. Afinal, não se pode defender a retirada de direitos conquistados por pessoas trans com base em problemas que pessoas cis enfrentaram ao longo de sua vida em relação ao seu próprio gênero.
O texto de Joanne Rowling revela, pela primeira vez, seu passado como vítima de violência sexual, quando a autora tinha cerca de 20 anos. Eu me solidarizo com a autora e sinceramente gostaria que seu ex-marido respondesse judicialmente pelos crimes que cometeu. Entretanto, devo dizer, obviamente, que nós, mulheres trans, não temos nada a ver com tal crime e nem podemos pagar o preço por ele.
Joanne diz reconhecer que as mulheres trans também são vítimas de violência. O que ela parece não reconhecer é que nós somos vítimas da violência machista. Se ela reconhecesse tal fato, teria de concordar que nós somos mulheres ou que, no mínimo, também precisamos de espaços que nos protejam minimamente dessa violência tanto quanto as mulheres.
Existe uma evidente contradição na sociedade: enquanto a sociedade se nega a reconhecer que nós, mulheres trans, somos mulheres, ela nos trata com a mesma violência da qual são comumente vítimas as mulheres. Um exemplo nítido dessa contradição foi a detenção da travesti Indianare Siqueira por andar sem camisa com os “peitos de fora” [3] – exatamente como qualquer mulher seria. No tribunal, a defesa de Indianare argumentou que, se o tribunal a condenasse, estaria reconhecendo que seus documentos estavam errados, uma vez que legalmente ela era homem.
Alguém precisa lembrar a Rowling que mulheres trans também somos vítimas de violência sexual. Numa pesquisa feita com 498 pessoas trans pela Fundación Huésped na Argentina [4], cerca de 80% das 452 mulheres trans (travestis e mulheres transexuais) relataram que já haviam sido detidas pela polícia. Entre estas, 62% relataram ter sofrido violência psicológica, 48%, violência física e 43%, abuso sexual dos agentes de segurança.
Resumindo, cerca de 34% das mulheres trans nessa pesquisa já haviam sido detidas e foram vítimas de violência sexual, ou seja, violência machista da polícia. O estudo, infelizmente, não inclui outras formas de violência sexual comumente relatadas por mulheres trans. Uma delas é a violência por outros detentos nas prisões masculinas. É por isso, por exemplo, que foi determinado, no Brasil, o direito das mulheres transexuais (e também homens transexuais) detidas de cumprirem sua pena em detenções femininas, bem como o de travestis permanecerem em uma cela separada [5]. Essa diferenciação entre mulheres transexuais e travestis foi contestada em um processo, onde o juiz determinou o direito de uma travesti de permanecer na ala feminina [6].
Esse direito (o de nós permanecermos nos espaços femininos) não é apenas para o reconhecimento de nossa identidade, como também uma questão de segurança. Não são raros, por exemplo, os relatos de assédio sexual sofrido por mulheres trans quando somos forçadas a ir ao banheiro masculino. Afinal, é o que aconteceria com qualquer mulher que frequentasse esse banheiro.
É por isso que nós, mulheres trans, insistimos em dizer à sociedade: se vocês nos violentam como mulheres, ao menos tenham a decência de reconhecer que nós somos mulheres.
Embora não seja essa sua intenção, os argumentos de Rowling se alinham com o estereótipo de que nós, travestis, somos pessoas desequilibradas, barraqueiras, criminosas. Esse estereótipo tem uma razão de existir. Uma vez que as pessoas trans são violentadas e expulsas de suas casas, das escolas e dificilmente conseguem inserção no mercado de trabalho, é muito comum que travestis acabem recorrendo ao trabalho sexual para se sustentar. É o mesmo que acontece com uma boa parte das mulheres cis negras.
Na mesma pesquisa feita pela Fundación Huésped, por exemplo, 61% das mulheres trans relataram que exerciam trabalho sexual e 23% relataram que já tinham exercido esse tipo de trabalho. Por não ser reconhecida legalmente, essa é uma atividade altamente criminalizada. Não é curioso, Rowling, que a maioria das mulheres trans sejam empurradas pela sociedade à prostituição da mesma forma que muitas mulheres cis? Não é curioso que a mesma sociedade que nos empurra para essa atividade acabe por criminalizar aquelas que a exercem?
Devido a esse estereótipo, as pessoas em geral – e as mulheres cis em particular – são levadas a acreditar que é inseguro dividir o mesmo espaço que nós. O banheiro feminino, por exemplo. J. K. Rowling se apoia nessa insegurança para determinar que o ativismo trans é inseguro às mulheres. Por exemplo, em um momento, Rowling diz que nós, pessoas trans, não somos um perigo:
“Eu acredito que a maioria das pessoas que se identificam como trans (sic) não só não representam nenhum perigo às demais, como são vulneráveis por todas as razões que eu explicitei. As pessoas trans precisam de e merecem proteção.”
“I believe the majority of trans-identified people not only pose zero threat to others, but are vulnerable for all the reasons I’ve outlined. Trans people need and deserve protection.”
Curioso é que, ao mesmo tempo em que ela afirma, da boca pra fora que nós precisamos de proteção, ela se opõe a todas as políticas que nós conquistamos, com muita luta, e que servem para a nossa proteção. Ao mesmo tempo, em outro ponto do texto, ela afirma que nós não somos mais inofensivas, pelo contrário, representamos um perigo às mulheres cis:
“Um grande número de mulheres estão aterrorizadas, e com razão, por ativistas trans; eu sei disso porque muitas delas entraram em contato comigo para compartilhar suas histórias. Elas estão com medo de ‘doxxing’ [7], de perder seus trabalhos ou suas moradias, e de violência.”
“Huge numbers of women are justifiably terrified by the trans activists; I know this because so many have got in touch with me to tell their stories. They’re afraid of doxxing, of losing their jobs or their livelihoods, and of violence.”
Sou absolutamente contra a prática de ‘doxxing’ e de violência. Ainda assim, por que essas mulheres estão com medo de perderem o emprego por serem transfóbicas? Ora, e quando uma pessoa perde o trabalho por ter sido racista ou preconceituosa em relação a outros grupos minoritários? Não é justo quando isso acontece? E por que estariam elas com medo de sofrer violência? Não foi a própria Rowling que disse que a maioria de nós, pessoas trans, não somos um perigo? Então por que aqui ela está dizendo o oposto?
A razão para isso é simples. Se ela não se apoiar no senso comum de que nós, pessoas trans, somos violentas, ela não conseguiria se opor às políticas que servem para nos proteger da violência, porque todas elas reconhecem nosso gênero, que é social.
Eu me solidarizo com as mulheres cis que temem perder seus empregos, mas devo lembrar a Rowling que nós, pessoas trans, temos muito mais medo de perdermos os nossos, e com muito maior razão! Até porque, para muitas de nós, perder o emprego muitas vezes significa não ter alternativa senão recorrer à prostituição. Muitas mulheres trans somos aterrorizadas pela ideia de sermos obrigadas a viver do trabalho sexual, como Grabiela Monelli que cometeu suicídio em 2013 justamente por isso.
Uma reclamação constante de Rowling ao longo do texto é que estaria ‘fácil demais’ para uma mulher trans atualmente identificar-se como mulher.
Tomarei como referência a política que existe aqui no Brasil. Segundo decisão do STF de 2018 [8], pessoas transgêneras podem alterar o nome e o sexo no registro civil por autodeclaração diretamente no cartório. Para isso, a pessoa deve levar uma série de documentos e assintar um termo que diz que a alteração não pode ser revertida, a não ser por decisão judicial.
J. K. Rowling afirma que a política de autodeclaração da identidade de gênero permitiria aos homens facilmente identificarem-se como mulheres. Não parece ser o caso. Não ouvi falar de nenhum caso de um homem que tenha usado essa decisão do STF para fins maliciosos. Se um deles fizesse isso, seria obrigado a carregar documentos que dizem que ele é uma mulher para o resto de sua vida, a não ser que se dispusesse a entrar em um tribunal para reverter a decisão. Neste caso, teria de se explicar para o juiz.
Não parece terrível que um homem tenha que explicar para o juiz que ele é mesmo um homem? Sim, isso é terrível. Felizmente, as pessoas trans do Brasil não têm mais de passar por isso. Mesmo assim, para muitas das travestis no Brasil, o processo de alteração de nome e sexo no registro civil ainda é muito difícil.
Já relatei, por exemplo, que a maioria delas exerce trabalho sexual. Outros problemas muito frequentes são o analfabetismo e a falta de acesso à Internet. Ora, para alterar o nome e o sexo no registro civil, é necessário retirar alguns documentos pela Internet que dizem respeito à nossa ficha criminal e a processos judiciais em andamento. Isso significa que, para fazer essa alteração, temos de ter nossa ‘ficha limpa’.
Entretanto, como eu disse, a maioria das travestis têm passagem pela polícia. São criminalizadas por serem prostitutas, por usarem drogas, por se defenderem de uma violência (a polícia nunca acredita que a travesti é a vítima), por crimes de seus companheiros, etc. E veja só, uma vez tendo passagem pela polícia, elas automaticamente perdem o direito de terem sua identidade reconhecida! Não é absurdo?
Ainda mais absurdo que isso é que a maioria delas precisa de ajuda de uma assistente social para conseguir alterar seu registro, mesmo quando não tem uma ficha criminal nem processos judiciais contra ela.
Mas, para J. K. Rowling, isso não é o bastante. Ela defende que nós tenhamos de passar por um longo processo judicial se nós quisermos ter nossas identidades reconhecidas. Se, para mim, que tenho um diploma de pós-graduação, a ideia de ter de passar por um processo judicial é assustadora, imagine para uma travesti analfabeta que frequentemente sofre violência da sociedade e da polícia e que nunca teve acesso a um emprego formal com carteira assinada.
Por que Rowling quer tornar a vida delas mais difícil do que já é?
Por um lado, Rowling afirma solidarizar-se com a violência da qual nós, mulheres trans, somos vítimas:
“Assim como em relação a qualquer sobrevivente de abuso doméstico e assédio sexual que eu conheço, eu não sinto nada além de empatia e solidariedade com as mulheres trans que foram abusadas por homens.”
“Like every other domestic abuse and sexual assault survivor I know, I feel nothing but empathy and solidarity with trans women who’ve been abused by men.”
Por outro, Rowling se opõe a todas as políticas públicas que foram conquistadas por décadas de luta pelas pessoas trans, pelo simples fato de que todas elas começam pelo reconhecimento social e legal da nossa identidade de gênero.
Seria muito estranho se Rowling, por exemplo, dissesse que se solidariza com o racismo do qual pessoas negras são vítimas e, ao mesmo tempo, defendesse as leis de apartheid. Ou se dissesse que se solidariza com o preconceito e a dificuldade vividas pelas pessoas com deficiência, mas se opusesse às leis e políticas de acessibilidade. Ora, da mesma forma, vejo a ‘solidariedade’ manifesta pela Joanne Rowling como mera formalidade.
Rowling afirma se sentir ofendida ao ser chamada de TERF – explicarei abaixo o significado do termo.
“Imediatamente, ativistas que claramente acreditam serem boas, gentis e progressistas infestaram minha linha do tempo, assumindo que têm o direito de policiar meu discurso, me acusar de ódio, me chamar com termos misóginos e, acima de tudo – como qualquer mulher envolvida nesses debates saberão – TERF”.
“Immediately, activists who clearly believe themselves to be good, kind and progressive people swarmed back into my timeline, assuming a right to police my speech, accuse me of hatred, call me misogynistic slurs and, above all – as every woman involved in this debate will know – TERF.”
TERF é uma sigla que significa ‘Trans-Exclusionary Radical Feminist’ (Feminista Radical Trans-Excludente). Mas o que há de ofensivo nesse termo, que foi inventado por uma sufragista, uma mulher cis, a Ethel Smyth [9]?
Esse adjetivo diz apenas que a pessoa em questão defende a exclusão de pessoas trans. É exatamente isso que J. K. Rowling faz em quase todo o seu texto – à exceção dos trechos em que ela diz formalmente se solidarizar com as pessoas trans, quase como um alívio de consciência.
O termo TERF surgiu justamente porque, na época, grande parte das feministas radicais não era a favor da exclusão de pessoas trans. A defesa feita por algumas feministas radicais de excluir as mulheres trans dos eventos feministas e até das Paradas do Orgulho Gay dividiu águas dentro do movimento feminista radical e causou até mesmo confrontos físicos [10].
Tenho certeza que pessoas racistas consideram ofensivo quando são chamadas de racistas e que aquelas que têm preconceito contra pessoas com deficiência também se ofendem ao serem caracterizadas como capacitistas. A reclamação de Joanne Rowling de se sentir ‘ofendida’ ao ser chamada de ‘TERF’ não gera em mim nenhuma simpatia. É bizarro ela explicitamente defender a exclusão de pessoas trans e, ao mesmo tempo, criticar que isso seja dito.
Não tenho solidariedade em relação a tal ofensa da mesma forma que, no fundo, Rowling não tem solidariedade com a transfobia da qual nós somos vítimas, uma vez que se opõe aos nossos direitos mais básicos. Se ela acha ofensivo que alguém diga que ela é trans-excludente, isso tem uma solução muito simples: basta que ela deixe de ser… trans-excludente.
[2] https://twitter.com/jk_rowling/status/1269382518362509313
[4] https://www.huesped.org.ar/noticias/informe-situacion-trans/
[7] ‘Doxxing’ é a prática de pesquisar e divulgar informações pessoais.
[8] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386930
[10] Ver, por exemplo, o relato de Robin Morgan: http://transadvocate.com/that-time-terfs-beat-radfems-for-protecting-a-trans-woman-from-assault_n_14382.htm
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