sexta-feira, 3 de julho de 2015

A violência policial e a criminalização das travestis

Daniele, travesti encarcerada no Presídio do Róger
Após um golpe de Eduardo Cunha, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar, em primeiro turno, a redução da maioridade para 16 anos para vários crimes. Acontece que a lei não funciona da mesma forma para todo mundo. Vivemos numa sociedade racista, em que as pessoas negras são tratadas como criminosas; vivemos numa sociedade machista, que culpabiliza as mulheres pela violência que sofrem; vivemos numa sociedade LGBTfóbica, em que os crimes de ódio contra LGBTs são naturalizados; vivemos numa sociedade travestifóbica, em que as travestis são criminalizadas por suas condições de vida.

Sem família, sem escola, sem emprego

Foi feita uma pesquisa com 498 pessoas trans de diversas regiões da Argentina [1]. O estudo revela dados de antes e depois da aprovação da Lei de Identidade de Gênero. Os dados apresentados se referem a antes da aprovação, uma vez que no Brasil essa lei (a Lei João Nery) não foi aprovada. Além disso, vou seguir a convenção de que travestis também são mulheres trans, como está na pesquisa.

O estudo afirma (p. 10):
São vários os relatos de situações de discriminação no âmbito familiar que desde a tenra idade tem levado à expulsão de suas casas ou migração a outras cidades. Em particular, as dificuldades com a família começam no momento em que as pessoas trans decidem viver conforme sua identidade de gênero. "A maioria de nós fomos expulsas de nossas casas ou fugimos com 11 ou 12 anos porque não aceitavam que nos vestíssemos de mulher."
Como consequência, 42% das mulheres trans (incluindo as travestis) e 43% dos homens trans foram isolados de familiares e amigos devido à sua identidade.
Foram mencionadas várias situações de exclusão e discriminação no âmbito educacional. As ridicularizações, o maltrato, o desamparo e a burocracia administrativa vinham tanto dos colegas quando do pessoal docente e diretores. [...] "Uma professora me deu um tapa porque queria que eu fosse jogar bola". Assim, são vários os testemunhos que relatam situações de abuso sexual e agressão física nos banheiros e da falta de ação por parte do pessoal docente para impedir essa situação. Essas experiências tiveram como consequência o abandono do sistema escolar majoritariamente no momento em que as pessoas trans começam o processo de construção de sua identidade. [...]

"Se você era mariquita, os colegas roubavam suas coisas, rasgavam suas roupas, lhe pegavam no recreio... Mijavam em cima de você... E nos banheiros... Os colegas lhe obrigavam a ter relações com eles e você fazia isso por medo".
Discriminação contra as meninas trans na escola (p. 28)
Discriminação contra os meninos trans na escola (p. 47)

21% das mulheres trans (p. 29) e 38% dos homens trans (p. 48) afirmaram que foram ridicularizados ou agredidos pelos professores. 21% das mulheres e 25% dos homens trans foram proibidos de usaram o banheiro. 34% das mulheres e 26% dos homens não tiveram seu nome social respeitado.

Como consequência de toda essa discriminação, 49% das mulheres e 47% dos homens abandonaram o sistema educacional. Entre as mulheres trans menores de 18 anos, metade delas não estava estudando.

O acesso ao mercado de trabalho formal também é bastante precário. Existem inúmeras barreiras para o acesso ao mercado de trabalho formal, sendo que este fica restrito a subempregos (como empregos terceirizados ou em empresas de telemarketing). 55% das mulheres (p. 32) e 52% dos homens trans (p. 51) afirmaram que tiveram um emprego negado. 25% das mulheres e 41% dos homens tiveram que deixar um emprego.

Discriminação contra os homens trans no trabalho (p.50)

Isso tudo faz com que a maioria das mulheres trans (incluindo as travestis) seja empurrada para a prostituição.

Pesquisa sobre quantas mulheres trans vivem ou já viveram em situação de prostituição (p. 31)

Mesmo após a aprovação da Lei de Identidade de Gênero, 61% das mulheres trans argentinas ainda estão em situação de prostituição.

A criminalização das travestis na prostituição


Segundo a pesquisa (p. 36):
A maioria das mulheres trans entrevistadas (79,5%) já foram detidas pelas forças de segurança em algum momento de suas vidas. Destas (n=355), 8 em cada 10 detenções foram por estar exercendo trabalho sexual e 6 em cada 10 por averiguação de antecedentes.
O quadro abaixo mostra as discriminações sofridas por essas mulheres por parte das forças de segurança enquanto estavam detidas.

Violência policial contra as mulheres trans detidas (p. 37)


O estudo define como "abuso sexual" como uma relação sexual feita por um policial contra a vontade da vítima. Ou seja, é sinônimo de estupro. Isso significa que 43% das mulheres trans que foram detidas foram estupradas por um policial (antes da aprovação da lei). Ou seja, pelo menos 34% das mulheres trans já foram estupradas pela polícia. Isso nos leva a suspeitar que um motivo comum para os policiais deterem as travestis é para que eles possam abusar sexualmente delas. De fato, alguns relatos mostram isso: algumas travestis relatam que não reagiram ao estupro por medo de serem presas, outras são abusadas dentro das prisões pelos policiais ou pelos outros presos.

Violência policial contra os homens trans detidos (p. 55)

Para suportar o sofrimento, em especial na prostituição, muitas travestis recorrem ao uso de drogas. Em um estudo feito em Uberlândia, MG [2] 85,5% das travestis em situação de prostituição afirmaram usar álcool e 72,7% afirmaram usar outros tipos de drogas, sendo cigarro comum, cocaína e maconha as mais frequentes. Quando questionadas se elas são ou não dependentes, a maioria delas afirma que, se um dia saírem da “batalha” (isto é, do trabalho sexual) deixariam de usar drogas. Também existem muitas travestis que vendem drogas como uma alternativa de renda. O uso frequente de drogas e também a venda por parte das travestis criam mais uma forma de chantagem por parte da polícia e também as leva a serem criminalizadas.

Como consequência disso, a concentração de travestis nas prisões é maior do que na sociedade. Estima-se que na sociedade brasileira existe cerca de uma pessoa trans a cada 2500 habitantes, a grande maioria delas travestis [3]. Entretanto, no Presídio do Róger, existe uma travesti para cada 128 presos. No  Presídio Central de Porto Alegre, existem 32 travestis e 4 mil presos no total, ou seja, uma travesti para cada 125 presos. É raro encontrar uma travesti numa universidade, mas é muito comum encontrar mais de uma travesti numa penitenciária.

Como a mídia distorce os fatos


Valéria, travesti da Zorra Total, retratada como
promíscua e histérica, o estereótipo de uma travesti
Em um bairro ou uma rua onde existem muitas travestis prostitutas, é muito comum aparecer algum homem de carro para ridicularizar, xingar, brigar ou agredir as travestis. Nestes casos, as travestis reagem: xingam, brigam, agridem de volta. É assim que elas se defendem. Afinal, elas precisam se defender, caso contrário não vão conseguir atender os clientes. Frequentemente atiram pedras nas travestis.


A mídia, entretanto, sempre mostra as travestis como se fossem barraqueiras e encrenqueiras sem motivo nenhum. Como se nós, travestis, fôssemos "naturalmente" promíscuas, violentas, loucas, histéricas, criminosas. Em outros casos, a mídia nos mostra como se fôssemos piada. Isso acontece no Zorra Total e na Praça é Nossa, mas também aparece em muitas notícias. Por mais absurdo que isso seja, muitas travestis que foram vítimas de clientes que não quiseram pagar ou então vítimas de estupro são mostradas nas notícias como se o caso fosse uma piada!

É verdade que as travestis, muitas vezes, abusam da violência e reproduzem o preconceito, mas a mídia quase sempre distorce a realidade e mostra as travestis como sendo única e exclusivamente como piadas ou como criminosas, raramente são retratadas como vítimas.

Como o governo trata as travestis?

Como o orçamento do governo federal é gasto
Diante de toda essa realidade, o governo federal fez vários ataques aos direitos das pessoas trans. A começar pelas MPs 664 e 665 da Dilma, que atacam os direitos trabalhistas das pessoas que têm mais dificuldade de acesso ao emprego e menor estabilidade. Esse é o caso das pessoas trans, que estão nos postos mais precarizados, quando não estão fora do mercado de trabalho formal. Outro ataque é o PL 4330, que visa expandir a terceirização, o que significa uma precarização ainda maior do emprego. Além disso, ainda foram realizados vários cortes na educação e na saúde. Isso tudo é o chamado "ajuste fiscal".

A bancada fundamentalista, que também defende o "ajuste fiscal" quer transformar as LGBTs no bode expiatório para todos esses ataques. É por isso que o Feliciano criou um projeto de lei que visa revogar uma portaria lançada recentemente defendendo os direitos básicos das pessoas trans na educação: o direito ao nome social, uso dos uniformes e dos banheiros conforme a identidade de gênero. É por isso que a bancada fundamentalista alterou a lei que criminaliza o feminicídio para que as mulheres trans não fossem contempladas por essa lei. É por isso que estão retirando e até proibindo os debates sobre gênero, identidade de gênero e orientação sexual nas escolas. Para ganhar o apoio do povo, os fundamentalistas estão fazendo uma campanha de difamação contra as travestis, como a Verônica, a Viviany, entre outros, tudo isso em nome do combate a uma suposta "ideologia de gênero".

O projeto de redução da maioridade penal também tem esse objetivo. É evidente que o plano de ajuste fiscal vai causar muitas revoltas na população. Sendo assim, seja com a redução da maioridade penal, proposta pelos fundamentalistas, seja aumentando o tempo de reclusão dos jovens na Fundação Casa, proposta do PSDB e defendida pelo PT, tudo isso tem um único objetivo: garantir que o plano de ajuste fiscal seja aplicado e que todo o caos social gerado por ele seja "contido" não com mais investimento nas áreas sociais, mas sim com o encarceramento da juventude.

- Aprovação da Lei João Nery já!
- Não à redução da maioridade penal!
- Fora Eduardo Cunha!

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Ele ou ela? As gallae na Antiga Roma (texto do séc. I a.C.)

Estátua de Átis, em uma dança
num ritual de adoração
O poema abaixo, de Cattulus, século I a.C., é uma estória mitológica que envolve uma tradição sacerdotal na Frígia, no território romano. O poema mostra que tanto o gênero quanto a transgeneridade variam ao longo da história e mudam, em especial conforme as condições socioeconômicas da época, mas também de acordo com a ideologia dominante.

O texto foi traduzido de duas fontes (1, 2), com algumas diferenças que serão aqui ignoradas (considero que a 2 seja mais precisa, mas também mais confusa).

[Veja também o texto "Não fale de mim como se eu fosse uma mulher!, sobre um homem trans no século II].

Cattulus, Poema 63

Trazido em sua barca ágil através de oceanos profundos
Átis, quando ansiosamente alcançou o bosque da Frígia com seus pés ligeiros
e entrou nas moradas da deusa, sombrias, coroadas pela floresta;
lá, aguilhoado por uma furiosa loucura, desnorteado na mente,
ele arrancou de si com uma afiada pedra sílex a carga de seu membro.
Então, quando ela sentiu que os membros dela perderam sua masculinidade,
ainda com sangue fresco umedecendo a face da terra,
rapidamente ela pegou o leve tamboril com mãos brancas,
seu timbre, Cibele, seus mistérios, Mãe,
e agitando com os dedos moles o couro de boi oco
assim começou ela a cantar para suas companheiras, trêmula:
Estátua de uma galla
ou um gallus
"Venham vocês, gallae, vão para as florestas da montanha de Cibele juntas,
vão juntas, rebanho peregrino da senhora de Díndimo
que rapidamente buscam casas alheias como exiladas,
seguidas por minhas regras conforme eu as guio em meu trem,
suportaram a salmoura que flui rápido e os mares selvagens,
e descarregaram de seus corpos a aversão absoluta ao amor,
alegrem o coração de sua Senhora com rápida peregrinação.
Deixem o atraso enfadonho afastado de suas mentes; andem juntas, sigam
para a casa frígia de Cibele, para as florestas frígias da deusa,
onde o barulho dos címbalos soarem, onde os tamboris reecoarem,
onde o flautista frígio sopra uma nota profunda em seu caniço curvo,
onde as ménades com suas coroas de hera atiram suas cabeças violentamente,
onde com gritos estridentes elas chacoalham emblemas sagrados,
onde aquela comitiva peregrina da deusa está afeita a vaguear,
até onde é justo para nós acelerar com danças vivas."

Tão logo Átis, mulher, mas não de verdade, cantou assim para suas companheiras,
os foliões, de repente, com línguas tremulantes, gritaram alto,
os tamboris leves soam novamente, os címbalos ocos se colidem novamente,
rapidamente o tumulto, com seus pés apressados, vai ao verde Ida.
Então também Átis, frenética, ofegante, incerta, arfante,
sua líder, acompanhada pelos tamboris, peregrina pelas florestas escuras,
assim como uma novilha indomada correndo à parte do jugo de seu próprio fardo.
Rapidamente as gallae seguem sua líder com seus pés ligeiros.
Então, quando elas ganharam a case de Cibele, fatigadas e exaustas,
depois de muito trabalho elas descansam sem pão;
o sono pesado cobre seus olhos com o cansaço que as abate,
a loucura delirante de suas mentes se partem em sono leve.
Mas quando o sol com seus olhos radiantes de sua face dourada
iluminaram o céu límpido, das terras firmes, o mar selvagem,
e afugentou as sombras da noite com corcéis impacientes renovados, cavalgando,
então o Sono fugiu de Átis despertado e rapidamente se foi;
a deusa Pasitea recebeu ele (sic) em seu seio tremulante.
Então, depois do sono leve, livre da loucura violenta,
assem que o próprio Átis reviu em seu coração seu próprio dever,
e viu com a menta clara que mentira havia perdido e onde ele estava,
com a mente afluindo novamente ele se acelerou de volta para as ondas.
Ali, olhando sobre os mares vazios,
e então dirigiu-se com lamentos o país dela com voz chorosa:

"Ó, meu país que me deu vida! Ó, meu país que me gerou!
A quem deixo, toda desgraçada! Como servas fugitivas deixam seus mestres,
eu trouxe meu pé para as florestas de Ida,
para viver entre as neves e as tocas congeladas das feras selvagens,
e visitar no meu frenesi todas as tocas de espreita,
- Onde então ou em que região eu penso ser teu lugar, ó meu país?
Meus olhos há muito perdidos contemplam a ti
enquanto por um curto espaço minha mente fica livre da frenesi selvagem.
Eu, devo eu ser levada para longe de minha própria casa, para dentro dessas florestas?
Do meu país, dos meus bens, meus amigos, meu país, devo eu ficar longe?
Ausente do mercado, dos campos de batalha, do hipódromo, do campo de jogos?
Infeliz, de coração todo infeliz, de novo, de novo tu deves reclamar.
Pois que tipo de figura humana existe e que eu não poderia ser?
Eu, para ser uma mulher -- eu que era um rapaz, um jovem, um menino,
eu era a flor do campo de jogos, eu era uma vez a glória do palestra;
eram minhas as portas lotadas, meus eram os calorosos limiares,
minhas as guirlandas floridas que enfeitavam minha casa,
quando eu estava para deixar meu aposento ao raiar do dia.
Eu, como devo eu ser chamada agora? Uma serva dos deuses, uma ministra de Cibele?
Devo ser uma ménade, parte de mim, um homem estéril devo eu ser?
Eu, devo eu habitar em regiões cobertas de neve do verdejante Ida?
Passar a minha vida sob os altos cumes da Frígia,
com a corça que assombra a floresta, com o javali que percorre a floresta?
Agora, agora eu lamento meu dever, agora, agora eu gostaria que isso fosse desfeito."

Assim que estas palavras foram emitidas dos lábios rosados,
trazendo uma nova mensagem para as orelhas dos deuses,
então Cibele, afrouxando o laço apertado de seu leão,
aguilhoando aquele indivíduo do rebanho que ia para a esquerda, fala deste modo:
"Vem agora", diz ela, "venha, vai ferozmente, deixe a loucura caçá-lo
manda-o, portanto, pelo golpe da loucura, apressar-se para as florestas de novo
aquele que seria livre demais e fugiria da minha soberania.
Vem, chicoteia para trás com tua cauda, suporta tua própria flagelação,
faz tudo ao seu redor ressoar com um rugido retumbante,
sacode ferozmente sua juba avermelhada com seu musculoso pescoço."
Assim diz a furiosa Cibele, e com sua mão desprende o laço.
O monstro atiça sua coragem e desperta a fúria de seu coração;
ele acelera, ele ruge, com passos largos ele quebra o matagal.
Mas quando ele veio às águas estendidas da costa branca reluzente,
e viu o gentil Átis pelos terrenos planos do mar,
ele corre na direção dele - Átis se voa loucamente para a floresta selvagem
lá para todo o resto de sua vida ele foi uma serva.
Deusa, grande deusa, Cibele, senhora de Díndimo,
esteja toda tua fúria longe de minha casa, ó minha rainha
que outros conduzam a ti em frenesi, outros levem tu à loucura.

Quem eram as gallae?

Relevo funerário de um archigallus
As gallae eram sacerdotisas que adoravam a deusa Cibele, conhecida como "Mãe dos Deuses", deusa da natureza, e Átis, seu/sua cônjuge. Uma sacerdotisa era chamada de galla (feminino) em vez de gallus (masculino) para denotar que a castração já foi realizada. O poema mostra como a galla era destinada ao papel de sacerdotisa, como uma "falsa mulher", para o resto de sua vida. Elas usavam vestes femininas, cabelos longos e eram castradas [Antologia Grega, 219, 220, 234], além de usarem pingentes, brincos e maquiagem pesada [fonte]. Átis é sempre retratado como uma divindade inferior a Cibele, como no poema, em que Átis é sacerdote ou sacerdotisa de Cibele. A mitologia sobre a castração de Átis era usada como justificativa para a castração no ritual de adoração de Cibele e Átis.

Cibele era uma divindade oficial do Império Romano que era bastante adorada, mas apenas os "galli" eram celebrantes oficiais, reconhecidas e financiadas pelo império desde 204 a.C. Apesar disso, os cidadãos romanos eram proibidos de se tornarem gallae, uma vez que elas eram vistas como "homens" que deliberadamente abriam mão de sua fertilidade e de sua masculinidade. O Império as via como maus exemplos para os cidadãos. As gallae eram frequentemente chamadas de pathicus (lascivo), mollis (mole, delicado) ou cinaedus (termo usado para homens adultos com comportamento afeminado ou que gostavam de ser penetrados). Apenas estrangeiros (que eram vistos como inferiores aos romanos) poderiam exercer este papel.

No final do século I, a castração foi proibida pelo império. Mais tarde, o cristianismo se utilizou dos galli para demonizar a religião pagã pela prostituição feminina e pela "sodomia" (sexo anal), como parte da campanha ideológica para a criminalização da "sodomia" (tornou-se crime um homem ser penetrado por outro no século IV, no século VI um homem que penetrasse outro homem também passou a ser considerado criminoso).

O jurista romano Ulpiano descreveu 5 tipos de vestes romanas:
  1. Vestimenta virilia, a roupa do paterfamilias, do pai e chefe da família;
  2. Muliebria, a roupa da materfamilias, a mãe da família;
  3. Puerilia, a roupa das crianças, dos e das menores de idade;
  4. Communia, as vestes comuns usadas tanto por cidadãos como por cidadãs;
  5. Familiarica, a roupa da familia, ou seja, de servas, servos, escravas e escravos.
Um plebeu, uma mulher romana e um senador [fonte]
Ulpiano não distingue o nome dado às roupas das crianças e das servas ou servos por gênero. Apenas da mãe e do pai. Segundo Ulpiano, um homem que usa roupas femininas seria objeto de escárnio. Entre as mulheres, apenas as prostitutas usavam roupas masculinas.

Sendo assim, as vestes estavam ligadas diretamente ao papel das pessoas dentro da família e também sua classe social: o pai, chefe da família, que administrava a propriedade privada; a mãe, cujo papel era reproduzir e gerar herdeiros para as propriedades; as crianças, que eram herdeiras das propriedades (sejam meninos ou meninas); e as pessoas das outras classes (não-cidadãs), que não tinham ou que eram propriedade privada.

Qual é, portanto, o "escárnio" para um homem? Vestir uma roupa da mulher cidadã, quem não era chefe da família, que não tinha direito a administrar nem mesmo a sua própria propriedade privada (a não ser que não tivesse pai ou marido). Vestir a roupa de quem exercia o papel reprodutivo, limitada à esfera privada.

É por isso que as gallae não se viam nem eram vistas como mulheres, no máximo eram vistas como "falsas mulheres". Por mais que quisessem, por mais que tentassem, não conseguiriram exercer o papel social de uma mulher cidadã. Uma galla poderia se tornar sacerdotisa ou prostituta, mas não poderia ser uma materfamilias. Por causa disso, eu acredito que não existiam condições socioeconômicas para que a identidade transgênera pudesse existir socialmente.

[Observação: Pode ser que tenha sido possível a existência de uma identidade transgênera masculina, como a de Megillus, em cidades gregas onde a mulher poderia se tornar a chefe da família, mas acredito que, mesmo assim, eram casos isolados. Vale notar que mesmo a identidade masculina de Megillus na estória era privada, não social.]