terça-feira, 20 de outubro de 2015

Manifesto sobre o crescimento do feminismo radical

As opressões dividem o movimento. Um exemplo explícito disso é a tese, defendida de forma velada ou aberta, que existe um antagonismo entre a luta das pessoas trans e a luta das mulheres. O que mais me assusta é que o feminismo radical está crescendo justamente a partir dessa tese.

Transfobia, uma ideologia a serviço da classe dominante

Eu tenho acordo com várias das teses feministas radicais, aliás, mais acordo do que tenho com a teoria queer. Por exemplo, explicando de forma bem rasa, é óbvio que o machismo estrutural (ou o patriarcado) surgiu na sociedade para que os homens (“cis”) pudessem controlar a reprodução e até a própria vida das mulheres (“cis”). Entretanto, cabe aqui dizer que, desde o surgimento da propriedade privada, ela foi proibida para pessoas “trans” (ou seja, que assumiam papel de gênero oposto ao sexo biológico, inclusive no próprio nome). Estas ficaram restritas aos espaços religiosos (em especial as mulheres trans, que normalmente eram sacerdotisas que cultuavam as deusas). Mais tarde elas também foram expulsas destes para ficarem restritas à prostituição.

É neste ponto que fica evidente o caráter reacionário da transfobia enquanto ideologia da classe social dominante. As pessoas trans são vítimas do mesmo machismo que atinge as mulheres em geral, mesmo que de forma distinta. Os homens trans são frequentemente vítimas de estupros corretivos dentro da própria família. Para terem sua identidade reconhecida, são obrigados pela sociedade, principalmente pela medicina, a terem uma postura vista como de “macho”, o que significa reproduzir o machismo ou mesmo “brigar como homem” (o que os expõe à violência). As mulheres trans e as travestis, por sua vez, são constantes vítimas de objetificação sexual, fetichização, exotificação, assédios e estupros.

A restrição dos direitos mais básicos das pessoas trans (direito à educação, ao emprego, ao uso dos banheiros públicos, ao próprio nome, à vida) servem à manutenção do sistema. Ela serve muito à medicina, que pode vender o acesso a esses direitos através de uma valiosíssima mercadoria: o processo de transição. Esse processo, que deveria ser um direito, tem o mesmo preço de uma casa própria. Também aos fundamentalistas religiosos, que ganham muito poder político e econômico a partir da LGBTfobia. E, evidentemente, também é necessária para a manutenção do machismo.

Quem defende a "reforma" dos gêneros?

Este cartaz, criado por feministas radicais, mostra a
visão que os direitos das mulheres (cis) são "coletivos",
"materialistas" e "revolucionários" enquanto
os direitos das pessoas trans são "individualistas",
"idealistas" e "reformistas".
O feminismo radical afirma lutar pelo fim dos gêneros. Por conta disso, muitas feministas radicais afirmam que defender o direito à identidade de gênero tem um caráter reacionário porque supostamente se opõe ao fim dos gêneros, propondo apenas uma "reforma".

Não devemos ter fetiche pelo gênero. O marxismo revolucionário sempre defendeu a necessidade de destruir todas as instituições que servem à manutenção do status quo e de construir uma nova sociedade que não tenha nenhum espaço pra qualquer tipo de opressão e exploração. Por outro lado, é um tremendo equívoco tentar defender que a revolução é antagônica à luta por reformas. Se somos pelo fim da exploração e do trabalho assalariado, isso nos impede de lutar por melhores salários? Ora, a história demonstra o contrário: revoluções não acontecem porque as trabalhadoras e trabalhadores querem o fim dos salários, mas sim porque querem melhores salários, porque querem pão, paz e terra.

Não é absurdo que uma pessoa de esquerda defenda que não devemos lutar pelos direitos nem por melhores salários, mas por conselhos populares e pelo poder? Não é absurdo que essa pessoa diga que lutar por melhores salários é reacionária porque ajuda a manter o trabalho assalariado? Ora, é igualmente absurdo que alguém defenda que não devemos lutar pelo direito ao nome social e à identidade de gênero, mas sim pelo fim do gênero.

Entretanto, o movimento feminista (inclusive a vertente radical) luta e sempre lutou por reformas como direito ao aborto, que o trabalho doméstico não seja restrito às mulheres, por medidas de punição à violência machista e proteção às vítimas (no sentido da lei Maria da Penha). Não há absolutamente nenhuma diferença de caráter entre essas medidas e as medidas defendidas pelo movimento trans: todas elas denunciam as diferenças de gênero na nossa sociedade e propõem medidas concretas para combatê-las.

Ainda mais absurda é a tese que as demandas do movimento trans são individualistas. Se o direito ao aborto é social, por que o direito ao próprio nome seria individual?

Teoria queer versus movimento trans 

Pichação de uma feminista radical transfóbica num
banheiro feminino da Unicamp.
Contra o que (ou quem) elas estão lutando?
Muitas feministas radicais afirmam que o movimento trans é pós-moderno e que lutam contra isso. Tal afirmação é absurda. Ora, foram os movimentos de travestis e transexuais na América Latina que lutaram e conquistaram a aprovação de leis de identidade de gênero no Uruguai e na Argentina, leis estas que, na prática, defendem a desmercantilização do direito à identidade de gênero, tornando-a pública, gratuita e por autodeclaração. A partir dessa lei, o direito à mudança do nome e do sexo no registro civil e o acesso ao processo de transição não depende de aprovação médica. Enquanto isso, a Judith Butler, teórica queer mais conhecida, sugere que as pessoas tenham uma performatividade de gênero que rompa com os padrões em vez de lutar por reformas.

A teórica tem um mérito: ter elaborado uma teoria feminista (e também LGBT) que defende o direito à identidade de gênero. Suas elaborações, entretanto, não servem à luta política. Butler, assim como Foucault, não só nega a possibilidade de uma revolução social que visa eliminar as estruturas opressoras da sociedade, mas nega inclusive a possibilidade de reformas. A luta pelos direitos das pessoas oprimidas é negligenciada. O único tipo de luta política defendida pelo foucaultianismo são as formas de resistência próprias dos grupos sociais oprimidos (como uma "performatividade de gênero paródica"), sem qualquer tipo de organização coletiva que pense na transformação da sociedade como um todo.

Muito pelo contrário. A própria construção das frases nos livros dessa autora é feita de forma que a leitora não saiba exatamente o que aquela defende. Uma grande proporção das suas frases são perguntas. Entre as demais frases, várias delas começam com "Considere que..." ou "Alguém poderia sugerir que...". Dentro da esquerda, isso tem um nome: centrismo. Aliás, esse é o centrismo do mais absurdo, aquele que embarca na onda pós-moderna que afirmar qualquer coisa é "produzir verdades" e que isso é moralmente ruim. Ora, um movimento não pode sequer existir sem afirmar que existem injustiças no mundo e sem afirmar as medidas concretas que são necessárias para combater as desigualdades.

Não é a teoria queer, nem qualquer teoria pós-moderna que leva o movimento trans a lutar por seus direitos. Pelo contrário, são suas próprias condições de vida. Sendo assim, é o cúmulo da contradição que algumas feministas radicais se oponham politicamente aos direitos das pessoas trans em nome de um suposto combate à teoria queer. Não é contra nenhuma teoria que as feministas radicais transfóbicas estão lutando, mas sim contra nosso direito à existência.

domingo, 18 de outubro de 2015

Por que somos feministas marxistas?

[Texto publicado originalmente em https://feminismosemdemagogia.wordpress.com/2015/10/16/por-que-somos-feministas-marxistas/]


Nós somos feministas marxistas. Para nós, a luta contra todas as opressões precisa estar ligada à luta contra o capitalismo e vice-versa. A exploração e as diversas formas de opressão estão fortemente ligadas entre si. Por isso, não é possível acabar com qualquer forma de opressão nesse sistema que é fundamentado na exploração humana.

No sistema capitalista, não é o quanto você trabalha que determina o quanto você ganha. Isso é fundamentalmente verdade nos sistemas econômicos de muitas das sociedades nativas da América e da África, por exemplo. No nosso sistema econômico, pelo contrário, existe uma minoria que não recebe pelo próprio trabalho, mas sim pelo trabalho alheio.
É um absurdo lógico considerar que o trabalho de pessoas como Eike Batista, por exemplo, valha dezenas de milhares vezes mais que o trabalho de uma faxineira terceirizada. Entretanto, Eike Batista recebe dezenas de milhares vezes mais que ela porque não recebe pelo próprio trabalho e sim pelo trabalho alheio.

As opressões não surgiram no sistema capitalista. Entretanto, os patrões, que têm o interesse de garantir o maior lucro possível, se aproveitam da existência de setores oprimidos para pagar menos. Funciona assim: se o patrão precisa de alguém pra fazer faxina, pra quê ele vai pagar um bom salário e oferecer boas condições de trabalho se tem muitas mulheres na periferia (a maioria negras) que aceitam um salário baixo? Pagando um salário menor e oferecendo condições piores, ele lucra mais e sua empresa tem maior competitividade no mercado.

Existem vários métodos opressores que os patrões utilizam para lucrar mais. Por exemplo, demitindo trabalhadoras que provavelmente vão engravidar e não garantindo creches para as mães. Outro exemplo é o assédio moral, que é muito comum acontecer com todas as pessoas oprimidas (inclusive LGBTs, por exemplo), impondo pra elas um ritmo de trabalho mais acelerado.

No caso das pessoas trans, em especial das travestis, essa realidade se torna muito dramática. Essas são tão repudiadas que dificilmente encontram emprego no mercado formal, e, quando encontram, é nos trabalhos precarizados e são, muitas vezes, vítimas constantes de assédios. A maioria das pessoas não costuma ver travestis no seu dia a dia, mas tem pelo menos quatro lugares onde é possível encontrar muitas travestis: nas empresas de telemarketing (onde a vasta maioria é negra, feminina e LGBT), nos sites pornográficos, nas zonas de prostituição e nas prisões.

Além de tudo isso, no capitalismo, poder econômico também significa poder político. Os políticos que vencem as eleições são aqueles que recebem mais dinheiro para sua campanha política. Quem dá esse dinheiro são as empresas. Não é à toa que os políticos são quase todos homens, heterossexuais, brancos, cisgêneros, conservadores, LGBTfóbicos, machistas e racistas, afinal, eles refletem as características sociais e os interesses daqueles que bancaram financeiramente suas campanhas. Não é de se estranhar que exista uma grande bancada que defende os interesses do agronegócio, dos fundamentalistas religiosos e de diversos outros setores empresariais, sendo que não existe nenhuma bancada de mulheres e de pessoas negras, que são a vasta maioria da população?

Por tudo isso, na nossa opinião, só é possível acabar com as opressões se o sistema capitalista tiver um fim e der lugar para um sistema em que as pessoas mais exploradas e oprimidas tenham voz e poder real de decisão. Só é possível chegar a uma sociedade assim se houver uma revolução realizada pelas trabalhadoras e trabalhadores e que tenha a participação ativa dos diversos setores oprimidos da sociedade, o que só pode acontecer se toda forma de opressão for combatida. É isso que nós consideramos uma sociedade socialista e é por isso que lutamos.