segunda-feira, 27 de abril de 2015

Somos todas Verônica

Verônica Bolina: travesti, negra e pobre. Presa sob a acusação de agredir uma vizinha durante uma briga, ela estava sendo tratada todo o tempo como se fosse homem. No dia 12 de abril, durante uma transferência de cela, houve uma briga entre Verônica e o carcereiro. Por arrancar a orelha do carcereiro com os dentes, uma série de fotos do episódio foram divulgadas. Nelas, se vê que os policiais espancaram-na, despiram-na e rasparam o seu cabelo. As imagens imagens mostram que Verônica está sem camisa e com o rosto desfigurado. Um verdadeiro retrato de uma polícia que criminaliza as travestis que vivem na periferia e o povo negro.

Texto publicado em http://www.pstu.org.br/node/21397

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Transgeneridade na ponta do lápis (crítica às teses "científicas")

Não temos muitos dados precisos sobre a população trans no Brasil. Infelizmente, o IBGE não perguntou, em seu último censo, a identidade de gênero nem o nome social das pessoas entrevistadas. Enquanto o governo do PT continua fingindo que a gente não existe, com políticas LGBTs que definham por falta de financiamento, o Congresso ataca diretamente os nossos direitos e estimula cada vez mais o ódio contra nós. Não há nenhum censo sobre a nossa realidade nesse país - e, diga-se de passagem, o mesmo pode ser dito para quase todos os países do mundo. As estimativas que encontrei, que são defendidas por diversas ONGs e instituições do país, não parecem muito confiáveis.

Felizmente, é possível encontrar algumas pesquisas e estimativas mais precisas vindas de outros países. Vamos aos números!

Estimativas da população trans

Ano passado, a Índia incluiu três opções no campo gênero: "masculino", "feminino" e "terceiro gênero". Isso foi resultado de uma decisão da Suprema Corte em reconhecimento da existência daquelas popularmente conhecidas como hijras, que são socialmente semelhantes às travestis latino-americanas. No censo, 488 mil pessoas se identificaram como pertencendo ao terceiro gênero. Isso significa que existe, no mínimo, 1 pessoa transgênera para cada 2480 pessoas na Índia (abreviadamente: 1:2480). Se a proporção de travestis no Brasil fosse a mesma, teríamos 82 mil travestis no país!

Hijras são admitidas pela primeira vez na História
no programa de pós-graduação através de um
sistema de cotas na Universidade de Nova Delhi, Índia
Entretanto, existem vários problemas nessa proporção. Primeiro, é que não são podem ser contabilizadas as pessoas que vão um dia se identificar como trans (embora seja possível calcular estimativas delas). Segundo é que a população trans é, em média, muito jovem. Além disso, acredita-se que existem pessoas transgêneras que não se identificaram no censo. Além das hijras, existem outras pessoas transgêneras na Índia que não são socialmente reconhecidas.

Uma crítica às estimativas "oficiais" se encontra no belo artigo acadêmico de Lynn Conway, que é cientista da computação e engenheira elétrica, e Femke Olyslager, também engenheira elétrica, ambas mulheres trans. Elas apontaram diversos erros cometidos pelas estimativas anteriores, porque partiam de pressupostos absurdos: por exemplo, que todas as pessoas transexuais realizam a chamada CRS (cirurgia de redesignação "sexual"). Também ignoraram que essas realizam a CRS com, em média, 40 a 45 anos, o que significa que a contagem ignora, no mínimo, metade das pessoas transexuais adultas (ou seja, aquelas que ainda irão realizar a CRS).

A partir de entrevistas feitas com cirurgiões (no ano de 2001) que realizam a CRS, elas calcularam que, entre as pessoas designadas ao sexo masculino, no mínimo 1 a cada 1300 realizaram ou vão realizar a CRS nos EUA. Isso não é um ponto fora da curva: o mesmo cálculo com dados de um estudo em Singapura (no ano de  leva à proporção de 1 mulher trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 2000 pessoas designadas ao sexo masculino, e 1 homem trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 5600 designadas ao sexo feminino. No Reino Unido, a proporção de mulheres trans que fizeram ou farão a CRS é 1:1900.

Aviso: Na minha opinião, não há razão para calcular a proporção de mulheres trans entre pessoas designadas ao sexo masculino. Conway e Olyslager fazem esta estimativa porque partem da concepção que a causa da transexualidade é biológica.

Transgeneridade e contexto socioeconômico


Travestis na América Latina e Hijras na Índia:
subemprego, marginalização, ausência de
emprego formal e de direitos humanos.
Quando as hijras foram questionadas a qual gênero elas pertenciam, 5% responderam "transgênero", 36% responderam "feminino" (ou seja, como mulher) e 59% responderam simplesmente "hijra". Este perfil identitário se assemelha muito ao das travestis latino-americanas. Tanto "hijra" quanto "travesti" são identidades de gênero femininas, que se apresentam através de nomes e pronomes femininos. Embora não haja estatísticas, é bastante conhecido que uma parte das travestis se identifica como mulher e outra parte se identifica simplesmente como travesti, assim como ocorre com as hijras.

No estudo feito na Argentina, 67% das pessoas trans entrevistadas eram travestis. Apenas 5,3% das pessoas não se identificava nem como travesti, nem como mulher ou homem trans (ou transexual).

Identidades das pessoas trans
entrevistadas em La Matanza, Argentina

No estudo feito nos EUA, as identidades são bem distintas. Lá são encontradas identidades de gênero não-binárias, ou seja, que não são nem exclusivamente masculinas nem exclusivamente femininas. É o caso do gênero queer e "dois-espíritos". Esta última identidade não-binária é presente em diversas tribos indígenas norte-americanas. Esse nome foi escolhido porque várias delas acreditam que a pessoa dois-espíritos carrega um espírito feminino e outro masculino. Conforme a pesquisa indica, muitas pessoas não-indígenas se identificam com o termo.

O estudo permitiu que as pessoas se identificassem com diversas identidades, mas colocou as pessoas em categorias analíticas para prosseguir no estudo.

Classificação analítica das pessoas trans entrevistadas nos EUA

De acordo com o relatório, "transgender MTF" e "transgender FTM" são sinônimos de mulher transgênera e homem transgênero, respectivamente. "Gender non-conforming" é o nome dado às pessoas que não se encaixavam nas outras duas categorias (o que inclui gêneros não-binários).

Aviso: os termos MTF e FTM são inadequados.

A institucionalidade expressa nas leis e nos livros de psiquiatria afirmam que o que diferencia a mulher transexual e a travesti é que a primeira tem repulsa por sua genitália por motivos biológicos e deseja, portanto, realizar uma vaginoplastia, enquanto a travesti não tem repulsa pela genitália. Entretanto, na pesquisa argentina, 67% das pessoas trans são travestis, enquanto, na pesquisa estadunidense, apenas 14% das mulheres transgêneras não realizaram nem desejam realizar a vaginoplastia.

Se esses gêneros ocorressem por razões biológicas, haveria alguma correspondência às travestis (tanto em subjetividade quanto em identidade) nos EUA e que ocorre com mais ou menos a mesma proporção que ocorre na Argentina e na Índia. Além disso, a presença de 13% de pessoas com identidade de gênero não-binária não encontra correspondência na Argentina. A tese de que a disforia genital tem razão biológica não se sustenta diante desses números.

A transgeneridade é, de fato, um fenômeno universal (ou praticamente universal) nas sociedades em que existe o gênero. Entretanto, a forma como ela se expressa depende das relações socioeconômicas (leia-se: sociais e econômicas) de cada sociedade. Muito provavelmente, as mulheres trans buscam uma adequação melhor do corpo porque nos EUA a inserção de pessoas trans no mercado de trabalho é maior. A busca pela cirurgia diminui a rejeição, aumenta a possibilidade de encontrar e manter um emprego, alterar os documentos, etc. Isso, evidentemente, também tem um reflexo subjetivo. No Brasil, por outro lado, o acesso à CRS é muito mais precário e burocratizado, de forma que não é costume das travestis buscarem-na. Isso também tem seu reflexo subjetivo na construção da identidade de gênero.

Utilizando os dados de Conway e Olyslager (1 a cada 2500 pessoas designadas ao sexo masculino já realizaram a CRS) com o estudo da National Task Force nos EUA (23% das mulheres transgêneras já realizaram a CRS), calculamos que, nos EUA, a proporção de mulheres trans é cerca de 1 a cada 580 mulheres, a proporção de homens trans é de 1 a cada 970 homens, a proporção de pessoas com identidade de gênero trans (ou seja, mulheres e homens trans e gêneros não-binários) é de 1 a cada 620 pessoas!

Outro estudo no Reino Unido afirmou que nesse país o número de pessoas que busca um tratamento para a "disforia de gênero" (sic) está aumentando em cerca de 15% a cada ano (que é a mesma taxa na Europa). Isso significa que a cada 5 anos, a população trans que busca tratamento na Europa dobra!

A estimativa pode ser imprecisa, mas não resta dúvida que a quantidade de pessoas trans nos EUA é proporcionalmente muito maior do que a na Índia. Todos esses dados nos levam a concluir que a existência de pessoas trans numa sociedade depende muito mais dos fatores socioeconômicos do que dos fatores religiosos e culturais. Ora, os EUA é um país majoritariamente cristão e nele os pastores fundamentalistas alimentam a aversão e o ódio às pessoas trans. A sanha transfóbica dos fundamentalistas alimenta a violência e os crimes de ódio como também a depressão e as taxas de suicídio. Os dados parecem indicar que isso leva as pessoas trans a buscarem ainda mais os tratamentos e as cirurgias para conseguir se encaixar na sociedade e evitar a violência.

A transfobia nos mata todos os dias, mas não faz com que deixemos de ser trans.

Transfobia: de norte a sul, de leste a oeste...

Em La Matanza, [2] 51% das travestis e mulheres trans responderam que sua principal atividade remunerada é a prostituição, que, na prática, é criminalizada. 85% delas afirmaram que estão ou já estiveram em situação de prostituição. Na índia, 32% das hijras afirmaram que sua principal atividade remunerada é a esmola, enquanto 21% afirmaram que é a prostituição, sendo que ambas atividades são criminalizadas. Outras 32% trabalham em uma ONG voltada para hijras ou prevenção de AIDS.

Conseguir um emprego formal é um desafio. Na argentina, [2] 44% das pessoas entrevistadas realizaram um curso de capacitação profissional, mas, dentre estas, 52% responderam que isso não as ajudou a encontrar um emprego. 72% das pessoas disseram estar procurando outra fonte de renda e, destas, 82% responderam que esta busca é dificultada por sua identidade trans.

Nos EUA, [3] a exclusão das pessoas trans do mercado de trabalho formal é menor, mas ainda assim o acesso e as condições de emprego são bastante precárias. Enquanto 7% da população está desempregada, 14% das pessoas trans também estão. Enquanto 7% da população estadunidense recebe menos que $10 mil por ano, na população trans essa proporção sobre para 15%, sobe para 28% considerando as pessoas trans latinas e para 35% entre as pessoas trans negras. 97% afirmaram terem sido maltratadas no trabalho, incluindo perseguição por parte de colegas (50%), uso repetido e proposital do pronome de gênero errado (45%), acesso negado ao banheiro correto (22%), violência física (7%) e assédio sexual (6%). 26% delas perderam o emprego por serem transgêneras e 44% não conseguiram algum emprego por serem transgêneras.

Somos todas Verônica
As chances de sofrer algum tipo de violência são grandes. Em La Matanza, Argentina, [2] 50% afirmaram terem sofrido discriminação por parte da própria família, 41% por parte de amigos, 63% dos vizinhos, 85% de pessoas estranhas na rua, 58% por parte de colegas da escola e 77% da polícia. Entre os problemas causados pela polícia, 33% afirmaram terem sofrido extorsão, ameaça, maltrato ou humilhação, 20% foram detidas arbitrariamente, 15% sofreram violência verbal, 14%, violência física, outros 14%, abuso sexual ou estupro e ainda 3% afirmaram terem sido vítimas de tortura.

O outro estudo [4] também realizado na Argentina envolvendo mais regiões diverge um pouco com respeito aos números, mas mostra a mesma realidade de marginalização, exclusão e violência.

87% das hijras [1] também afirmaram que tiveram problemas causados pela polícia. Não há dados estatísticos sobre quais problemas elas enfrentaram, mas os relatos também mostram abuso sexual e estupro. Anitha Chettiar afirma:
Dentre aquelas que eram perseguidas frequentemente [pela polícia], duas das hijras disseram que foram espancadas pela polícia e advertidas que elas não podiam pedir esmola. Uma das que foram perturbadas por causa do trabalho sexual, disse: "Eu não sou permitida de solicitar clientes para sexo. Mas muitos policiais fizeram sexo comigo", e outra acrescentou, "Os policiais não me deixam trabalhar com sexo, mas exigem sexo gratuito."
Anitha inclui outros relatos de violência policial que indicam que na Índia, a violência policial tem a mesma natureza que na Argentina.

No mundo todo, de norte a sul, de leste a oeste, impera a transfobia. E esse império vai cair.


[1] Estudo de Anitha Chettiar, publicado na International Journal of Social Science and Humanity, Vol. 5, No. 9, que foi baseado em entrevistas feitas com 63 hijras.
[2] Teste piloto realizado pelo governo argentino sobre 209 pessoas trans (principalmente travestis, mulheres e homens trans) da cidade de La Matanza.
[3] Estudo do National Center for Transgender Equality e do National Gay and Lesbian Task Force, que entrevistou 6450 pessoas trans (incluindo crossdressers e drag queens/kings) espalhadas por todo o território dos EUA. Outros arquivos sobre esse mesmo estudo podem ser encontrados aqui.
[4] Estudo sobre o impacto da Lei de Identidade de Gênero na Argentina realizado pela Asociación de Travestis, Transexuales y Transgéneros de la Argentina (ATTTA).

segunda-feira, 13 de abril de 2015

A matemática e a lógica formal no capitalismo

[Texto originalmente publicado em http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=3064]

Para se desenvolver, o sistema capitalista precisou criar transformações cada vez mais profundas sobre a matéria. A criação de máquinas cada vez mais complexas, capazes de realizar tarefas cada vez mais precisas, requer, por sua vez, um avançado conhecimento em física. Esta, para se desenvolver, apoiou-se na matemática, uma ciência que sempre se desenvolveu a partir do raciocínio lógico. Entretanto, até o final do século XIX, a lógica formal padrão era a aristotélica, um sistema lógico incapaz de desenvolver o raciocínio matemático em todo seu potencial.

Tanto Hegel quanto Marx fizeram duras críticas à lógica formal aristotélica. Entretanto, as pressões sociais causaram uma revolução nas bases da matemática e da lógica formal que começou pouco antes da morte de Marx e se estendeu ao longo de várias décadas. A maior revolução da lógica formal até hoje, assim como a da matemática, foi a formalização da matemática. Vamos discutir como se deu esse processo 

O sistema euclidiano

Se tivéssemos uma máquina do tempo e voltássemos à Grécia Antiga, encontraríamos uma matemática totalmente diferente da que vemos hoje. Não havia fórmulas, símbolos estranhos, equações e nem números. Os gregos não inventaram a matemática, nem foram os primeiros a descobrirem como realizar operações aritméticas, mas foi na Grécia que nasceu o primeiro método axiomático, introduzido por Euclides em Elementos.

A palavra grega axioma significa “aquilo que se apresenta como evidente”. Euclides formulou um conjunto de axiomas a partir dos quais seria possível demonstrar os resultados em geometria que eram conhecidos na época utilizando apenas passos lógicos bem definidos. Esses resultados são chamados de teoremas.

Os três primeiros postulados (axiomas) de Euclides afirmam, respectivamente, que é possível ligar quaisquer dois pontos por uma reta, estender indefinidamente uma reta e construir um círculo com qualquer ponto como centro e com qualquer raio. Ou seja, esses postulados são apenas descrições abstratas sobre o que é possível realizar com uma régua (sem escala) e um compasso. Assim, a geometria euclidiana não era um estudo completo sobre o plano, mas apenas sobre o que é possível construir com régua e compasso neste plano. Por exemplo, não é possível construir uma elipse nem uma parábola diretamente com régua e compasso.

Aqui é preciso notar que esses axiomas não são “evidentes por si mesmos”, mas são evidentes para quem tem familiaridade com uma régua e um compasso. Já o quinto postulado, por não ser elementar nem evidente, foi alvo de polêmica na Grécia antiga. Muitos acreditavam que, por não ser óbvio, deveria ser possível demonstrá-lo a partir dos demais postulados. Hoje, sabemos que isso não é verdade, pois conhecemos a existência da geometria hiperbólica, que satisfaz os quatro primeiros postulados mas não satisfaz o quinto. Se houvesse uma demonstração lógica do quinto postulado a partir dos quatro primeiros, essa mesma demonstração valeria para a geometria hiperbólica, mostrando que o quinto postulado seria satisfeito também nessa geometria, o que não é verdade.
Além dos cinco postulados, Euclides também enunciou algumas “noções comuns” (que dizem respeito à noção de igualdade) e que hoje também são classificadas como axiomas.

O sistema axiomático construído por Euclides demonstra que é possível sistematizar o estudo da geometria (e também da aritmética) de forma separada da atividade humana concreta. O sistema de Euclides corresponde à atividade humana e ao mesmo tempo é independente dela.

Na Grécia Antiga, a matemática se desenvolveu tendo o trabalho de Euclides como base. Nesse trabalho, até mesmo a aritmética era vista sob a ótica da construção com régua e compasso. Entretanto, existem números que não podem ser construídos com régua e compasso, como, por exemplo, o número pi e a raiz cúbica de 2. Esta era a maior contradição da matemática grega: ela pressupunha implicitamente que todos os números são construtíveis, o que não é verdade. Isso deu origem aos três problemas clássicos gregos que (embora não soubessem na época) não podem ser resolvidos a partir da matemática grega. Essa contradição gerou a necessidade de um novo sistema axiomático para os números reais. Foi só no século XIX que foi a compreensão da matemática se aprofundou ao ponto de demonstrar que nem todos os números são construtíveis. A contradição da matemática grega foi resolvida. 

A lógica aristotélica

A lógica formal é uma ciência que estuda as regras que permitem alguém chegar a uma conclusão a partir de um conjunto fixo de premissas (hoje também chamadas de axiomas) e uma sequência de passos lógicos. A lógica formal não pode estipular quais premissas devem ser aceitas, mas apenas avaliar se a conexão entre essas premissas e a conclusão seguem as regras da lógica. O trabalho de Aristóteles em Metafísicas serviu como base para a lógica clássica que até hoje é a lógica padrão. Apesar de existirem outros sistemas lógicos formais, é a partir dessa lógica que as pessoas são ensinadas a pensar ao longo do sistema de ensino, principalmente nas disciplinas de exatas.

Na lógica aristotélica, uma proposição assume um e apenas um entre dois valores de verdade: verdadeiro ou falso. É isso que, essencialmente, está por trás dos três princípios aristotélicos (princípio da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído). Por causa disso, a lógica formal aristotélica é incapaz de lidar com algumas sentenças matemáticas. Nem mesmo alguns resultados mais complexos que Euclides obteve poderiam ser formalizados na lógica aristotélica. Como seria possível estudar proposições sobre objetos desconhecidos (ou seja, variáveis) se o próprio valor de verdade dessas proposições não são variáveis? Para poder resolver essa contradição, a lógica formal também precisou aprofundar sua compreensão sobre proposições e o pensamento lógico. 

O programa de Hilbert e a matemática do século XX

No início do século XX, havia uma crise na matemática: faltava-lhe um fundamento. As teorias matemáticas estavam dispersas, cada uma era desenvolvida a partir de suas próprias regras. Hilbert lançou um programa para resolver essa crise: criar um fundamento para toda a matemática. Isso significaria criar um sistema axiomático a partir dos quais seria possível construir e demonstrar logicamente toda a matemática que existia até então.

Isso, evidentemente, era muito mais difícil do que na época de Euclides, mas as ferramentas necessárias para concretizar essa tarefa já haviam sido criadas.

Gottlob Frege desenvolveu em 1879 a lógica de predicados. Frege foi responsável por criar técnicas dentro da lógica formal que fossem capazes de lidar com variáveis, em especial pela criação do conceito de quantificador. É com esse conceito que a lógica de Frege foi finalmente capaz de formalizar um velho teorema de Euclides: “existem infinitos números primos”.

Vale aqui uma observação: Frege não estendeu a lógica aristotélica, mas a negou. Para Aristóteles, uma proposição só pode ser verdadeira ou falsa, nada mais. Cada predicado, pelo contrário, ora assume um valor verdadeiro, ora assume um valor falso, dependendo de qual é o valor de cada variável nele contido. Ao contrário das proposições de Aristóteles, o predicado “x é branco” encerra em si as duas possibilidades, verdadeiro e falso, ou seja, sua veracidade é relativa ao valor de “x”. Frege incorporou na lógica formal um conceito matemático e, sem perceber, deu um salto em direção à dialética. Essa é uma verdade que os matemáticos de hoje não admitem. A lógica fregeana desenvolveu e negou a lógica aristotélica da mesma forma que a atual estrutura dos números reais de hoje desenvolveu e negou os números construtíveis da matemática grega.

O trabalho de Frege ficou desconhecido internacionalmente por várias décadas. Em 1893, Frege lançou a primeira edição do livro “Leis Básicas da Aritmética”, criando, a partir de sua lógica, um sistema axiomático para a aritmética. Em 1903, quando a segunda edição do seu livro estava para ser impressa, Bertrand Russel mostrou que era possível chegar a um paradoxo a partir de seu sistema axiomático, o conhecido Paradoxo de Russel.

Na década de 1910, Bertrand Russel e Alfred Whitehead lançaram três volumes de Principia Mathematica, que continham um extenso trabalho (mais de 1900 páginas!) para construir toda a matemática conhecida até então a partir de algumas dezenas de axiomas. Este trabalho foi baseado na obra de inúmeros matemáticos. Seu sistema lógico era fregeano. Os objetos matemáticos eram construídos a partir da teoria de conjuntos que Georg Cantor desenvolvera no século anterior utilizando a teoria dos números reais. Após mais de dois mil anos, o trabalho de Aristóteles e o de Euclides finalmente encontraram uma síntese.

O programa de Hilbert buscava outros resultados. Algumas décadas depois, Kurt Gödel e Alan Turing demonstraram que era impossível alcançar a maioria dos objetivos que o programa buscava. 

A matemática e a lógica formal na atualidade

A matemática de uma época é a matemática da classe dominante. Na Grécia Antiga, a matemática era uma ferramenta utilizada, por exemplo, para administrar a propriedade privada, estudar a música e as obras de arte. O que as escravas e os escravos ganhavam com a matemática? Nada. Pelo contrário: a classe dominante, que detinha a propriedade privada, encontraria na matemática uma forma de quantificar e administrar seus escravos, pois eles eram propriedades.

Hoje em dia, as universidades, as revistas acadêmicas e as pesquisas científicas estão cada vez mais sob o controle das empresas e dos bancos, direta ou indiretamente. As áreas que servem diretamente ao lucro das empresas (como as engenharias) recebem volumes consideráveis de dinheiro para que possam desenvolver suas pesquisas. Cada vez mais laboratórios são comprados e controlados diretamente pelas empresas. Áreas que não servem para o lucro da burguesia ainda são financiadas pelo Estado, seja por tradição ou por serem necessárias ao desenvolvimento geral da universidade, mas recebem financiamentos e incentivos bem menores e às vezes entram em crise.

Esta lógica fez com que a matemática da atualidade se dividisse em duas partes. Uma parte, conhecida como matemática aplicada, diz respeito às pesquisas que estudam a matemática ligada à atividade humana e que, por isso, podem ser apropriadas e direcionadas pelas empresas. A matemática aplicada é utilizada, por exemplo, para estudar e otimizar o processo de produção e de transporte das mercadorias, evitando desperdício e economizando tempo de trabalho. A outra parte, a matemática pura, diz respeito ao estudo da matemática em sua abstração, incluindo axiomas e teoremas, mas que não busca e nem sequer conhece sua aplicação prática.

A academia ensina que a matemática só pode ser desenvolvida a partir de axiomas, cuja veracidade é tomada como pressuposto e como fundamento para o raciocínio lógico. Esses axiomas geralmente incluem uma concepção fregeana da lógica. Isso tudo cria a ilusão de que a matemática se desenvolve a partir do “pensamento puro”, desvencilhado da materialidade, que independe de qualquer subjetividade ou contexto histórico no qual o ser humano que a estuda está inserido.

A História, entretanto, mostra que a matemática, na verdade, se desenvolveu historicamente a partir da abstração da atividade humana concreta sobre a natureza e que sempre esteve ligada ao seu contexto histórico e social. A lógica também se desenvolveu historicamente a partir do conhecimento humano sobre a própria natureza. Descobertas recentes na Física, por exemplo, levaram à criação de outros sistemas lógicos formais, como a lógica quântica e a lógica fuzzy, que desobedecem às regras da lógica aristotélica.

Enquanto o fundamento para a matemática grega eram os postulados de Euclides, o fundamento para a matemática de hoje é o sistema axiomático de Zermelo-Fraenkel. Esse sistema não tem como base a atividade humana nem características da natureza, seus axiomas não podem ser verificados empiricamente e não são nem um pouco evidentes.

Muitas pessoas julgam que eles são intuitivos. Essas pessoas passaram a infância brincando com bolinhas, aprendendo a contar maçãs e laranjas, a desenhar círculos ao redor delas para representar conjuntos, estudaram matemática durante os ensinos fundamental, médio e superior e só então puderam estudar e entender o significado de cada um dos axiomas. Outras pessoas defendem que a matemática é uma invenção humana, que o universo matemático é uma abstração humana que não existe. Entretanto, não só a matemática é produto da abstração humana do mundo real, como também, através do trabalho humano, se mostra capaz de entender, prever e modificar o mundo ao nosso redor.

Alan Turing desafiou essa lógica. Turing cresceu em um mundo onde as máquinas se desenvolviam e adquiriam cada vez mais importância. Isso o inspirou a conceber teoricamente uma máquina capaz de executar qualquer algoritmo. A partir de sua teoria matemática, não só ele demonstrou que alguns dos objetivos do Programa de Hilbert não poderiam ser atingidos quanto também foi capaz de criar sua máquina, a máquina de Turing, hoje conhecida como computador. Turing mostrou que é possível desenvolver a matemática não em sua pura abstração, nem em sua aplicação empirista, mas sim relacionando a teoria e a prática, o abstrato e o concreto.

Na verdade, a separação da matemática entre pura e aplicada serve apenas para que as empresas consigam melhor se apropriar de sua aplicação e manter a matemática pura sob controle, longe do mundo real. A matemática, ao contrário do que a lógica formal prega, não é um conjunto de resultados lógicos obtidos de axiomas que foram entregues aos seres humanos pelos Céus. A compartimentação do conhecimento impede o desenvolvimento da matemática porque seu fundamento não está nos axiomas, mas sim no seu desenvolvimento histórico que teve como base o desenvolvimento da sociedade e de suas relações socioeconômicas, assim como o desenvolvimento da lógica e de todo o conhecimento humano. Apenas o materialismo histórico-dialético pode fazer com que a matemática supere os limites da lógica formal.

domingo, 5 de abril de 2015

Inclusão social: Os dados estatísticos da Unicamp


Gostaria, aqui, de resgatar um texto que escrevi em 2012 para combater os argumentos mais frequentes da época às cotas raciais, em particular ao mito de quem acredita que as cotas sociais podem substituir as cotas raciais.
Costuma-se afirmar que um programa de cotas sociais podem substituir um programa de cotas raciais e sociais. Entretanto, uma pesquisa feita na Unicamp sobre acesso à educação revela que a desigualdade racial existente no Brasil não se trata meramente de desigualdade social, mas existe mesmo quando se compara indígenas, negros, amarelos e brancos de uma mesma faixa de renda, desigualdade que existe em todas as faixas de renda, embora seja mais acentuada nas faixas de menor renda, conforme mostra a tabela a seguir. [fonte]



Texto publicado em http://ogritocoletivo.blogspot.com.br/2012/09/inclusao-social-os-dados-estatisticos.html.

sábado, 4 de abril de 2015

Travestis e Transexuais contra o Machismo

[Texto originalmente publicado em http://mulheresemluta.blogspot.com.br/2015/03/movimento-mulheres-em-luta-travestis-e.html]

Nós, do MML, reconhecemos a identidade de gênero. Isso significa não apenas reconhecer que as pessoas pertencem ao gênero com o qual se identificam, mas também reconhecer que as pessoas trans são vítimas do mesmo machismo que atinge a todas as mulheres, ainda que de formas distintas. Infelizmente, como nossa sociedade ainda não aceita a existência das pessoas trans, ainda existe muita confusão com respeito a esse tema. Para podermos avançar na luta contra o machismo, essa confusão precisa ser desfeita.

O desafio de ser uma travesti ou uma pessoa transexual começa desde a adolescência. Em suas escolas e também em suas próprias famílias, as pessoas trans não são aceitas e são frequentemente ridicularizadas e agredidas. É muito comum os pais quererem “curar” sua filha ou seu filho, seja impondo um castigo, dando uma “surra” na criança, levando-a para algum “profissional” que promete curá-la, entre outros. Mas a identidade de gênero não é uma doença, não pode ser “curada”. Trata-se simplesmente do que a pessoa é.

Na maioria das vezes, isso faz com que a vida da criança se torne insuportável. Estima-se que 40% das pessoas trans já tentaram cometer suicídio. Muitas delas acabam fugindo ou mesmo sendo expulsas de suas casas. Entretanto, para uma travesti, por exemplo, é muito difícil conseguir um emprego, ainda mais sem ter completado seus estudos. Na maioria das vezes, a única forma de sobrevivência é a prostituição. Cerca de 90% das travestis e das mulheres transexuais se envolve com o mercado sexual e muitas delas são menores de idade. Nas periferias, elas são alvo de violência da população, dos seus clientes e também da polícia. São vítimas de assédios, estupros, agressões e assassinatos. Como consequência, a expectativa de vida de uma travesti ou de uma mulher transexual é de cerca de 35 anos.

Para poder suportar toda a violência a que estão sujeitas na prostituição, a maioria das travestis recorrem a algum tipo de droga, seja legal (como álcool e cigarro) ou ilegal (como maconha e cocaína). Numa sociedade que criminaliza o uso de drogas, isso faz com que elas estejam ainda mais sujeitas à violência policial, inclusive chantagens e assédios. Não é à toa que existem muitas travestis nas prisões.

Muita gente acredita que a maioria das travestis são prostitutas porque são “naturalmente” promíscuas, mas isso acontece porque nossa sociedade não oferece praticamente nenhuma outra opção para elas. Na maioria das vezes, a zona de prostituição é o único lugar em que elas conseguem permanecer e encontrar um grupo de pessoas que as aceitam. Nosso dever é oferecer a nossa solidariedade às travestis assim como a todas as mulheres em situação de prostituição na luta contra toda a violência e a discriminação que sofrem. Por isso, somos a favor de todas as medidas que dão a elas a oportunidade de serem reinseridas na sociedade e no mercado de trabalho formal, inclusive as bolsas de estudos.

Nós também não podemos nos esquecer dos homens transexuais. Os homens transexuais, em especial quando são adolescentes, são vítimas do estupro corretivo, que é um crime cometido com a intenção de “curar” a transexualidade, ou seja, de fazer ele “voltar” a ser mulher. O estupro causa trauma, medo e fragilidade, mas não faz com que um homem transexual deixe de ser um homem.

As pessoas trans são nossas aliadas na luta contra o machismo e a exploração que atinge a nossa classe. 

Nenhum direito a menos, as pessoas trans da classe trabalhadora não vão pagar pela crise!

Mal começou o segundo mandato de Dilma e já foram realizados ataques aos direitos trabalhistas, cortes de verbas para a educação,etc. O governo do PT quer colocar a crise econômica nas costas das trabalhadoras e dos trabalhadores enquanto continua entregando o dinheiro para as empresas e os bancos na forma de “incentivos fiscais” e de pagamento da “dívida pública”.
 
Enquanto isso, o Congresso Nacional está ainda mais reacionário. O Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do PMDB, ressuscitou o projeto de lei que cria o “Dia do Orgulho Hétero”, uma provocação nefasta contra todas as pessoas LGBTs. Eduardo Cunha já mostrou que será uma barreira para a aprovação de leis que garantam os direitos básicos das mulheres e das LGBTs e que será contra as medidas de combate à violência homofóbica e transfóbica.
 
Ainda este ano, o PLC 122, projeto de lei que visa criminalizar a homofobia, foi definitivamente arquivado. Enquanto isso, os assassinatos homofóbicos e transfóbicos continuam acontecendo e são marcados com muita violência, sendo que as travestis são as vítimas mais frequentes desses assassinatos. Dilma, que prometeu criminalizar a homofobia durante sua campanha, não pronunciou uma única palavra sobre o assunto.
 
Em uma época de “ajuste fiscal”, o primeiro gasto que o governo vai querer cortar não será o dinheiro que é destinado às empresas e aos bancos, mas sim as políticas criadas para combater a violência e garantir os direitos das minorias, como a Lei Maria da Penha e a lei que criminaliza o feminicídio. Por isso, será necessária muita luta em defesa dos direitos das mulheres, pessoas negras e LGBTs.
 
No último dia 12, foi publicada no Diário Oficial da União uma série de medidas em defesa dos direitos das pessoas trans nos sistemas e nas instituições de ensino. Isso significa que travestis e transexuais poderão requisitar que sejam tratadas exclusivamente pelo nome social (por exemplo, nas listas de chamada, nos processos seletivos e nas avaliações), utilizar o uniforme escolar e o banheiro conforme sua identidade de gênero. A medida também exige que os boletins de ocorrência policial incluam campos para identificar a orientação sexual, a identidade de gênero e a nome social da pessoa atendida.
 
Muitas pessoas têm manifestado dúvidas, em especial com respeito ao uso do banheiro, dizendo que, com essa medida, “meninos” podem passar a usar o banheiro das meninas nas escolas, e vice-versa. Isso não é verdade. Segundo a medida, os banheiros devem ser usados conforme a identidade de gênero. Não é possível que, por exemplo, um menino (que não é trans) se identifique como menina e se sujeite a toda ridiculização e violência que as meninas trans sofrem cotidianamente apenas para conseguir usar o banheiro feminino.
 
Consideramos que essa medida é um avanço para o reconhecimento dos direitos das pessoas trans e para o combate à transfobia nas escolas e universidades. Entretanto, não devemos nos iludir com essa medida. Em vários estados, já existem medidas que, teoricamente, deveriam garantir o direito ao nome social, mas muitas vezes elas não são efetivadas, ou então são efetivadas de forma insatisfatória, através de muita burocracia. Para que a identidade de gênero seja reconhecida nas instituições, é preciso treinar as professoras e professores, funcionárias e funcionários da instituição. Também teremos que enfrentar muita resistência por parte das instituições, das diretorias e reitorias. Por isso, será ainda necessária muita luta para que essas medidas sejam realmente efetivadas.
 
Além disso, essa medida foi implantada justamente porque gera poucos gastos para o governo. Entretanto, para que a identidade de gênero das pessoas trans seja de fato reconhecida, é necessário que o nome social e o sexo possam ser alterados no registro civil e que os tratamentos que essas pessoas demandam (como terapia hormonal, acompanhamento psicológico e cirurgias) sejam garantidos gratuitamente pelo sistema público de saúde. Ou seja, é necessário aprovar uma Lei de Identidade de Gênero, como a Lei João Nery. Mas a aprovação dessa lei por esse congresso reacionário é improvável, ainda mais em uma época em que o governo está realizando cortes de “gastos”. Isso significa que devemos estar ao lado das pessoas trans na luta pela aprovação desta lei e para que a crise não caia sobre os ombros das travestis da periferia, das pessoas transexuais e de todas as pessoas trans da nossa classe, mas sim que os ricos paguem pela crise.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

29 de janeiro: Dia da Visibilidade Trans

Que opção resta para a grande maioria das pessoas trans? Se elas são expulsas dos espaços públicos, do mercado de trabalho e até de suas casas, onde elas conseguem ficar? É por esse motivo que cerca de 90% das pessoas trans (na grande maioria, travestis) vivem na periferia, sobrevivem a partir da prostituição, na maioria das vezes desde a adolescência. Isso significa que elas, desde cedo, têm que se adequar a condições bastante precárias: realizar vários programas a um baixo custo, entregar uma boa parte à cafetina ou ao cafetão, submeter-se a situações de constrangimento e de agressão, etc. De outra forma, não há como sobreviver.

Texto (de minha autoria) publicado em http://www.pstu.org.br/node/21267