“Destruir
e construir,
levantar e abaixar,
são seus,
Inanna.
Transformar um homem em uma mulher,
uma mulher em
um homem,
são seus, Inanna.”
Enheduana, séc. 23 AEC
Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online.
“Eles dizem que não são homens, e não são. Querem que se acredite que são mulheres, mas um certo aspecto de seu corpo atesta o contrário”. Isso está no capítulo 4 do livro ‘O Erro das Religiões Profanas’ (entre 343 e 350 EC), onde Júlio Fírmico Materno descreve uma crença na Assíria e em parte da África (sic). Há uma hipótese plausível que ele confundiu Assíria com Síria, e que, portanto, trata-se de uma descrição das gallae que adoravam Atargatis e Átis na Síria. Penso que, pelo contrário, são as gala da Mesopotâmia que adoravam Inanna.
Utilizo as traduções de Richard Oster Jr. (1971) e Clarence Forbes (1970), bem como a edição de Matthias Flacius Illyricus (Firmici Materni, 1952), que é a mais antiga.
Sobre as gallae, ver meu artigo anterior. https://esquerdaonline.com.br/2020/12/24/as-gallae-sacerdotisas-transgenero-e-a-opressao-do-imperio-romano/
Capítulo 4
“[A1] Os assírios e parte dos africanos desejam que o ar tenha a liderança dos elementos e veneram ele com uma representação alegórica imaginária. [A2] Pois eles consagraram essa mesma coisa – isto é, o ar – com o nome de Juno ou a Virgem Vênus, supondo que em algum momento a virgindade era satisfatória para Vênus. [A3] Naturalmente, eles transformaram Juno (para que nem mesmo aqui falte incesto) de irmã de Júpiter em sua esposa. [A4] Na verdade, eles afeminaram esse elemento, tendo sido influenciados por uma devoção que eu desconheço.
“[B1] Porque o ar é colocado entre os mares e o céu, eles se dirigem a ele com vozes afeminadas dos sacerdotes. [B3] Conte-me! É uma divindade que busca o feminino no masculino? [B4] É uma divindade a quem o coro de seus próprios sacerdotes não pode servi-la, a não ser que façam seu rosto parecer o de uma mulher, polindo sua pele e envergonhando o sexo masculino com ornamentos femininos? [B5] Pode-se ver zombarias miseráveis, com lamentação pública, nesses mesmos templos. [B6] Os homens toleram coisas femininas e revelam essa mácula de um corpo impuro e impudico com uma exibição orgulhosa. [B7] Eles tornam públicas suas próprias más ações e confessam com a máxima mácula de deleite o crime de seu corpo contaminado.
“[C1] Eles arrumam o cabelo bem cuidado como o de uma mulher e, tendo-se vestido com mantos delicados, é com dificuldade, com o pescoço cansado, que erguem a cabeça. [C2] E então, quando eles se tornaram totalmente diferentes dos homens, tendo sido inspirados por uma canção das flautas, eles chamam a sua própria deusa para que, tendo sido preenchidos com um espírito hediondo, predizem o futuro, por assim dizer, para os homens crédulos. [C3] O que é esse monstro ou o que é essa besta? [C4] Eles negam que são homens, e não são. [C5] Eles desejam que se acredite que são mulheres, mas um certo aspecto do corpo atesta o contrário. [C6] Deve-se considerar também que tipo de divindade é aquela que se encanta pela associação de um corpo impuro, que segue os membros impudicos e que se agrada da contaminação poluída do corpo.
“[D1] Envergonhem-se perante o Maior, ó miseráveis! [D2] Deus os fez diferentes disso. [D3] Quando o seu grupo se aproxima do tribunal do Deus examinador, vocês não trarão nada que o Deus que os criou possa reconhecer. [D4] Abandone o erro de tal calamidade e abandone de uma vez por todas a inclinação de uma mente ímpia! [D5] Não condene o corpo, que Deus fez, com a lei profana do diabo! [D6] Venha em auxílio do seu desastre enquanto o tempo ainda permite! [D7] Deus perdoa gratuitamente e sua misericórdia é rica.
“[E1] Depois de deixar as noventa e nove ovelhas, ele procura a que está perdida. [E2] Quando o filho pródigo retorna, o pai dá roupas e prepara o jantar. [E3] Não quero que o grande número de crimes faça vocês se desesperarem. [E4] O Deus Maior, por meio de seu próprio Filho Jesus Cristo nosso Senhor, absolve os que o desejam e perdoa gratuitamente os que se arrependem. [E5] Ele não exige muito para perdoar. [E6] Com apenas fé e arrependimento você poderão redimir tudo o que vocês destruíram por causa da perversa persuasão do diabo.”
(Oster, p. 15-8; Forbes, p. 50-1; Firmici Materni, n. 27-8)
O que Fírmico queria?
Júlio Fírmico Materno, um senador cristão, escreveu esse livro entre 343 e 350 EC (Forbes, p. 9), pedindo aos imperadores Constante (em Roma) e Constâncio (em Constantinopla) que exterminassem as ‘religiões profanas’, com foco nas religiões asiáticas e africanas. Ao criticar crenças greco-romanas, jogava a culpa nas “superstições estrangeiras com seus costumes relaxados” que apenas iludiam “os homens velhos e as mulheres inebriadas”, elogiava reis, imperadores e o Senado porque reprimiam com violência os rituais, investigando pela tortura e aplicando uma “punição digna do nome romano” – a pena capital (Oster, p. 29-33).
Resumindo, Fírmico é um dos idealizadores da Santa Inquisição.
As sacerdotisas do capítulo 4 seriam as gallae?
O capítulo 3 do livro (Oster, p. 10-4; Forbes, p. 47-8; Firmici Materni, n. 23-6) critica os “frígios que habitam Pessino às margens do rio Gallus”. Resumindo, a crença que ele critica é uma mistura de uma versão da história de Cibele e Átis (tão distorcida e confusa que parece ser um boato que ele ouviu bêbado) com o Hino Homérico 30, uma homenagem à deusa Terra (ou Gaia), “a mãe de tudo”. Tanto a história que ele conta quanto a associação de Cibele a Gaia são invenções romanas (Lucker, p. 26-8). Isso e um trecho do capítulo 18 (Oster, p. 99; Forbes, p. 81) mostram que Fírmico não conhecia às gallae, provavelmente nem de Roma.
O capítulo 4, pelo contrário, parece o relato de uma testemunha ocular. Não é inventado, pois há características de cultos da época das gallae e das gala: os rituais de lamentação, [B5] o canto [B4] com vozes agudas [B1] e flautas [C2], o uso de roupas femininas [C1], cuidado da pele [B4] e dos cabelos, que eram descoloridos [C1], os romanos não as consideravam homens [C4] nem mulheres [C5], mas tinham papel e aparência feminina [C5].
Considero plausível a tese de que esse capítulo é sobre as gallae que adoravam Atargatis (Forbes, p. 150), mas há detalhes que não se encaixam bem. Atargatis era associada ao mar, não ao ar, e era muito associada a Reia ou Cibele (Lucker, p. 30), o que provavelmente levaria Fírmico associar essas sacerdotisas às gallae. Símbolos muito associados às gallae estão ausentes (Átis, tímpano, leões, natureza, coroa com torres – Lucker, p. 31) e não há menção a frenesi ou barulho.
Clarence Forbes defende também que a deusa associada a Juno era Tanit, uma deusa dos povos púnicos do Norte da África conhecida como Juno Caelestis (p. 150). Tanit era associada a Astarte, a versão grega de Inanna.
As gala de Inanna
Inanna, adorada pelas sacerdotisas gala ou gala-tur, era a principal divindade da Suméria desde pelo menos o quarto milênio AEC, quando ainda era matrilinear. Inanna era conhecida como Rainha do Céu e manteve sua importância mesmo após a transição ao patriarcado (entre 3000 e 2000 AEC, quando, por exemplo, as cidades passaram a ser governadas por reis).
Reproduzo uma tese de Collins (p. 110-1). Os povos semíticos que habitavam a Suméria cultuavam duas divindades: Ishtar (derivado de Attar, nome masculino que designava a Estrela D’Álva), e Ashtart (derivado de Attart, nome feminino que designava a Estrela Vésper). Como ambas estrelas são duas formas do planeta Vênus, as duas divindades eram associadas, causando ambiguidade de gênero. No século 23 AEC, Ishtar e Ashtart foram identificadas com Inanna, tornando-se uma deusa.
As gala de Inanna/Ishtar difundiram-se pela Mesopotâmia (região entre os rios Eufrates e Tigre, onde ficavam Suméria, Assíria, Acádia e Babilônia – os romanos chamavam toda a região de Assíria). Em acadiano, gala (ou gala-tur) era pronunciado como kalu (ou kalaturru) (Lucker, p. 22, 69) e assim eram conhecidas na Assíria (Gabbay, p. 116).
O livro Matheseos de Fírmico Materno é texto mais extenso sobre astrologia romana que se tem conhecimento e é baseado em astrologia egípcia e babilônica. Então é lógico que ele conheceria Ishtar, a principal deusa da Mesopotâmia.
Se a Vênus do capítulo 4 era Ishtar, a ridicularização da “Virgem Vênus” [A2] era uma polêmica com as cristãs que associavam Ishtar com a Virgem Maria e que transformaram os poemas que retratavam a agonia Ishtar pela morte de Tammuz em lamentos da Virgem Maria pela morte de seu filho.
Ao falar em incesto [A3], Fírmico pressupõe que Juno e Júpiter, adoradas por essas sacerdotisas, são as mesmas divindades romanas. As divindades associadas a Juno e Júpiter, na Mesopotâmia, eram Antu e An e, nos povos púnicos, Tanit e Baal-Hamon. Em ambos os casos, eram consortes, não irmã e irmão. Essa confusão era comum devido a séculos de sincretismo religioso romano.
A explicação mais simples
Ishtar era conhecida por ser capaz de transformar homens em mulheres e mulheres em homens (Lucker, p. 52). As crenças religiosas não existem no vácuo, elas são parte da vida social (Lucker, p. 72-3). Há, por exemplo, um texto relatando um ritual de iniciação de um kurgarru (uma mulher que se transforma num homem) e de uma pili-pili (um homem que se transforma numa mulher) (Lucker, p. 20-1).
Se, conforme a crença, Inanna tinha o poder de transformar o gênero das pessoas e isso se expressava em rituais religiosos, é de se esperar que o ritual de iniciação das gala (ou de uma parte delas) as transformasse em mulheres. Elas desempenhavam um papel feminino, uma função religiosa feminina, cantavam lamentos em eme-sal, um dialeto feminino, e uma parte delas adotavam nomes femininos (Lucker, p. 21, 51-2).
Era dissimilar à época um cristão romano afirmar que sacerdotisas transgênero eram não-homens [C3,C4], e que elas “querem que se acredite que são mulheres” [C5]. Fírmico está embaraçado de ter de afirmar isso. Se ele o diz, é porque era necessário polemizar. Seria uma polêmica com ninguém?
Podemos fazer uma interpretação improvável para a estranha escolha de palavras. Assim como é possível dar centenas de explicações distintas a centenas de evidências, o que faríamos desejássemos sustentar o dogma que todas as pessoas da Antiguidade eram cisgênero.
Há uma explicação mais simples e racional. Fírmico está polemizando com crenças populares de sua época (Oster, p. i). Faz sentido que fosse relativamente popular considerar as gala de Inanna (ou uma parte delas) como mulheres. Logicamente, isso significa que elas (ou uma parte delas) se consideravam mulheres. Se o critério de dissimilaridade tem algum valor como argumento histórico, é difícil encontrar melhor exemplo que um cristão ter de admitir, em pleno patriarcado romano, que se acreditava que as sacerdotisas transgênero da Assíria e do norte da África eram mulheres.
E o mais curioso: o livro é escrito num contexto de polêmicas dentro do cristianismo.
Referências
[1] Oster Jr., Richard E, 1971. Julius Firmicus Maternus: De Errore Profanarum Religionum. Introduction, Translation And Commentary. Houston, Texas: Rice University. Acessado em 29/12/2020. Disponível em: https://scholarship.rice.edu/bitstream/handle/1911/89943/RICE0978.pdf
[2] Forbes, Clarence A., 1970. Firmicus Maternus: the error of the pagan religions. New York, NY: Newman Press. Acessado em 29/12/2020. Disponível em: https://archive.org/details/firmicus-maternus/page/49/mode/2up
[3] Firmici Materni V.C., Iulij, 1562. De Errore Profanarum Religionum Ad Constantium & Constantem Augustos Liber: Nunquam Antehac In Lucem Editus. Matthias Flacius Illyricus. Apud Paulum Machaeropoeum: Argentina. Acessado em 31/12/2020. Disponível em: http://access.bl.uk/item/viewer/ark:/81055/vdc_100031064402.0x000001#?c=0&m=0&s=0&cv=26&xywh=-52%2C-1%2C2552%2C1824
[4] Lucker, K. A, 2005. The Gallae: Transgender Priests Of Ancient Greece, Rome, And The Near East. Bacharel Thesis. Sarasota: New College of Florida. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://s3.amazonaws.com/arena-attachments/539632/d6348aa09f4510eb5704b6da501f9e7d.pdf
[5] Martin, Dale B., 2009. The Greco-Roman World [vídeo]. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ecpn3bkVvv0&list=PL279CFA55C51E75E0&index=3
[6] Collins, P., 1994. The Sumerian Goddess Inanna (3400-2200 BC). Papers from the Institute of Archaeology, 5, pp.103–118. Acessado em 31/12/2020. Disponível em: http://doi.org/10.5334/pia.57
[7] https://www.academia.edu/10083707/The_kalu_Priest_and_kalutu_Literature_in_Assyria_Orient_49_2014_
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