sexta-feira, 23 de abril de 2021

Não foram os aliens – um debate sobre o conhecimento de sociedades antigas

 De acordo com o conhecimento atual, há seis regiões consideradas “berços da civilização”: Mesopotâmia (atual Iraque), Egito, China, Mesoamérica (povo maia), Vale do Indo (atual Paquistão e norte da Índia) e Peru (povos andinos) [1]. Isso porque, de maneira mais ou menos independente e em diferentes épocas, povos dessas regiões inventaram a agricultura e a escrita. Alguns “estudiosos” afirmam que o “avançado conhecimento” dessas sociedades (em matemática, astronomia, engenharia, etc) só se explica com a “ajuda dos aliens”. Será que elas não eram “inteligentes o bastante” para desenvolver seu próprio conhecimento?

Este texto não é uma crítica ao estudo da História e da elaboração de interpretações diversas. Minha crítica é à forma como isso é feito e com os pressupostos implícitos nessas teorias que são preconceituosos em relação aos povos não-europeus.

A discussão deste texto é sobre formas de conhecimento que pressupõem a invenção da escrita, mas há formas de conhecimento das sociedades áglifas (sem escrita) e que estão ausentes na nossa. Os maiores problemas existentes na sociedade capitalista – acumulação descontrolada de capital, exploração do trabalho, descontrole do poder político, desigualdade social, destruição dos recursos naturais, individualismo e desrespeito à coletividade, etc – são causados pela ausência de conhecimentos que são comuns em sociedades áglifas.



O racismo velado

Note que os povos dessas regiões eram não-europeus. A partir de uma visão de mundo eurocêntrica de mundo, pressupõe-se que todas as grandes descobertas só poderiam ter acontecido na Europa. Parece espantoso, talvez assustador, considerar que, na Antiguidade, as civilizações europeias se desenvolveram de forma tardia.

Na verdade, a Antiga Suméria (sul da Mesopotâmia) e o Egito se desenvolveram de maneira relativamente rápida. Formou-se uma rota comercial da Suméria ao Egito na chamada Crescente Fértil, o que favoreceu a disseminação dos saberes, levando ao surgimento de civilizações ao longo dessa rota, que se desenvolveram de maneira desigual e combinada. Os povos europeus não precisaram ‘reinventar’ essas tecnologias porque tinham com quem aprender.



Sociedades que nos parecem estranhas

Nós, que fomos criadas numa cultura europeia, temos bastante contato com as antigas Roma e Grécia. Nas aulas de História. Na nossa língua, que é latina e com muitas palavras de origem grega. Na arte, no direito, na “democracia”.

Por outro lado, raramente temos contato com os povos considerados berços da civilização. Seus valores, histórias, religiões e culturas nos parecem estranhas, esquisitas, bizarras – como se viessem de outro mundo.

Isso é um prato cheio para os pseudo-historiadores. Há muitas histórias que eles podem ‘traduzir’ e ‘interpretar’ de maneira forçada para ‘provar’ suas teses. Se os alienólogos defendessem que os anjos na Bíblia eram alienígenas e Iavé era o seu líder, não teriam tanta audiência. Tem mais apelo dizer que os Annunaki eram alienígenas e que Anu era seu líder – porque quase ninguém conhece as histórias da Suméria.



Agricultura, cidade, escrita, matemática

Para que a agricultura seja inventada, as únicas condições absolutamente necessárias são os recursos naturais (água, terra fértil, sementes) e a racionalidade humana. Ambas as condições já existiam, há dezenas de milhares de anos, em todo o globo – daí a razão de sua invenção por diversos povos, em locais e épocas distintas. [2] Esta permitiu que povos antes nômades formassem assentamentos que, em alguns casos, cresceram e se tornaram cidades. [3] A contabilidade necessária para lidar com a logística da produção e das relações comerciais favoreceu o surgimento da escrita por volta de 3.000 AEC. [4]

Esses povos passaram milhares de anos fazendo contas, logicamente ficaram muito bons nisso. Não à toa, a Matemática Babilônica é bastante conhecida por sua forte aritmética e pelas várias tabelas que utilizavam para fazer contas e resolver variados tipos de problema. Por exemplo, na Babilônia, já se conhecia:

  • O método da diagonal (ou “Teorema de Pitágoras”) 1.000 anos antes de Pitágoras; [5]

  • O método da raiz (ou “Método de Heron”) 1.500 anos antes de Heron; [6]

  • A raiz de 2, com 3 dígitos sexagesimais (ou 5 dígitos decimais); [7]

  • Resolução de “equações quadráticas” 2.500 anos antes de Bháskara; [8]

  • Resolução de alguns tipos de “equações cúbicas”; [9]

  • Um tipo do método do trapezóide 1.400 anos antes do mesmo ser (re)descoberto na Europa; [10]

  • Uma tabela trigonométrica 1.000 anos antes de Hipparchus. [11]



As pirâmides do Egito e a tecnologia egípcia

Comparativamente ao mesopotâmico, o povo egípcio tinha maior acesso a recursos minerais. Isso os permitiu desenvolver diversas ferramentas, possibilitando construções cada vez mais complexas, como as famosas pirâmides. Sem dúvida, são impressionantes, ainda mais considerando a época em que foram construídas. Eu, por exemplo, nunca estudei engenharia, então não sei como eram feitas. Mas é lógico que no Egito Antigo havia especialistas com conhecimento muito maior que o meu para encontrar soluções que, do meu ponto de vista, parecem impossíveis.

De fato, há evidências históricas de algumas soluções engenhosas. Uma delas é sobre o transporte de enormes estátuas de pedra pelo deserto – há pinturas que mostram estátuas sobre trenós de madeira sendo transportadas enquanto alguém derrama água à frente dos trenós. Cientistas, a partir de experiências, verificaram que isso facilita o transporte de objetos pesados sobre a areia. [12]

Há o lado negativo, como mostra a pintura: centenas ou milhares de pessoas escravizadas. É lógico que, se o povo egípcio tivesse uma tecnologia alienígena para transportar as enormes estátuas, isso não seria necessário.

Um estudo de Akyo Kato apresenta uma teoria factível sobre o processo de construção da Grande Pirâmide de Giza. A maioria das pedras (internas) eram cortadas em formato octagonal, o que facilitaria seu transporte (eram roladas). Os pedaços removidos formavam prismas trapezoidais que seriam utilizados para rolar as pedras cúbicas da parte externa. Um sistema de polias (encontrados em estudos anteriores) seria utilizado para construir um tipo de elevador, com a ajuda de contrapesos para levantar as pedras aos níveis mais altos. [13]



Milhares de anos de História

Sintetizar milênios de História em um texto deste tipo é bastante difícil e falar de todas as sociedades que são utilizadas nas teorias dos alienólogos seria impossível. O enfoque desse texto (no Egito e na Mesopotâmia) não é o único possível, e talvez não seja o melhor. De qualquer forma, espero que esse texto ajude a mostrar quantos diversos povos da antiguidade tinham avançados conhecimentos em diversas áreas – e que não precisamos de alienígenas para explicar essa inteligência.



Notas

[1] https://mapscaping.com/blogs/geo-candy/mapped-the-6-cradles-of-civilization

[2] Algumas condições ambientais (como a escassez de fontes naturais de alimentos) ajudam a explicar a invenção da agricultura em alguns casos. No entanto, essa não é condição absoluta – o povo maia, por exemplo, inventou a agricultura vivendo em uma floresta.

[3] https://www.nationalgeographic.org/article/development-agriculture/

[4] No período de 3.500 a 3.000 AEC, aparecem tablets de argila com pictogramas (pequenos desenhos) e marcas dos tokens que representavam números. Em cerca de 3.000 AEC, os sinais passaram a ser utilizados para representar sons (como sílabas) para formar nomes, o que originou a escrita. Recomendo a explicação de Irving Finkel sobre a escrita cuneiforme e sua decifração:

https://www.youtube.com/watch?v=PfYYraMgiBA

[5] O método da diagonal aparece em alguns problemas envolvendo largura, altura e diagonal de retângulos. O conceito ‘teorema’ não existia na Babilônia, mas o procedimento de resolução dos problemas é matematicamente equivalente ao Teorema de Pitágoras. Alguns exemplos:

https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/HistTopics/Babylonian_Pythagoras/

[6] O método da raiz, utilizado para calcular aproximadamente a raiz de um número, aparece em problemas didáticos sobre calcular uma raiz ou envolvendo o método da diagonal, que são citados no artigo em [11].

[7] Numa lista de constantes, há uma linha com a frase “a diagonal do quadrado é 1;24.51.10”. Essa é a melhor aproximação possível de √2 com três dígitos sexagesimais. O mesmo valor num cálculo para encontrar a diagonal de um quadrado de lado 30 – que dá 42;25.35. Como não havia vírgula sexagesimal na Babilônia, então é possível interpretar isso como 1/√2, que, em base sexagesimal, é 0;42.25.35.

https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1305/1305.0865.pdf

https://www.maa.org/press/periodicals/convergence/the-best-known-old-babylonian-tablet

[8] Não havia, na Babilônia, o conceito ‘equação’. Mas há resolução de problemas sobre encontrar um retângulo dada sua área e a diferença (ou soma) entre a largura e a altura – isso, na ponta do lápis, dá uma equação quadrática.

https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/HistTopics/Babylonian_mathematics/

[9] Há problemas resolvidos sobre descobrir as dimensões de um poço a partir do volume de terra removida e relações entre largura, altura e profundidade do poço – isso dá um tipo de equação cúbica. Não há evidências de resolução de uma equação cúbica no caso geral.

https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1905/1905.08034.pdf

[10] O assiriólogo Mathieu Ossendrijver traduziu um texto encontrado recentemente que contém um procedimento de cálculo em Matemática Astronômica Babilônica. O procedimento tinha como objetivo prever a posição da estrela Júpiter no céu ao longo de 60 dias, a contar do dia em que ela aparece como Estrela da Manhã. Isso envolve o cálculo da área de um trapézio.

https://phys.org/news/2016-01-babylonian-astronomers-position-jupiter-geometric.html

[11] Trata-se de uma complicada tabela chamada Plimpton 322. Existem divergências, porque só temos uma parte dela (ela se quebrou e o lado esquerdo se perdeu), além de danos e de alguns erros (de cálculo e de cópia). Só sobrou uma parte da tabela (ela se quebrou e o lado esquerdo se perdeu), além de danos e de alguns erros (de cálculo e de cópia). Como não sabemos quantas colunas na parte esquerda, convencionou-se numerar as colunas I’, II’, III’ e IV’. Chegou-se a um consenso de que a tabela contém medidas de retângulos (ou, equivalentemente, de triângulos retângulos), a divergência é sobre as colunas que existiam à esquerda, o procedimento para criar a tabela e sua utilidade prática.

A melhor explicação é do estudo de Mansfield e Wildbeger, no link abaixo. Seria uma tabela trigonométrica, ou “retangulométrica”, pois contém medidas de retângulos normalizados (com comprimento 1). Haveria mais duas colunas à esquerda: uma com a base e outra com a diagonal, ambas em ordem decrescente. A coluna I’ seria a terceira, com o quadrado da diagonal, o que explica seu rótulo: “o quadrado da diagonal do qual se subtrai 1 para obter o (quadrado) da base”. As colunas II’ e III’ são escalonadas para formar números inteiros, daí o sentido dos rótulos: “resultado da base” e “resultado da diagonal”.

Portanto, seria uma tabela criada para lidar com problemas envolvendo retângulos (ou triângulos retângulos). Isso é possível, pois na Babilônia havia a noção de semelhança de retângulos (e de triângulos). Essa a teoria que melhor se encaixa nos conceitos e convenções da matemática babilônica e que melhor explica a ordem das linhas e a utilidade da tabela.

Eu diria mais: é a única teoria que se encaixa na matemática babilônica.

https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0315086017300691

[12] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/05/cientistas-explicam-tecnica-de-egipcios-para-construir-piramides.html

http://www.sci-news.com/physics/science-ancient-egyptians-wet-sand-01894.html

[13] A apresentação detalhada encontra-se aqui:

https://www.researchgate.net/publication/338315897_How_They_Moved_and_Lifted_Heavy_Stones_to_Build_the_Great_Pyramid



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