segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

“Não fale de mim como se eu fosse uma mulher!” (texto do séc. II)

Abaixo está uma tradução quinto texto da coletânea Diálogos das Cortesãs, do escritor grego Luciano de Samósata no século II, no auge do Império Romano, que revela fatos valiosíssimos para um debate materialista histórico sobre a transfobia e que não são mostrados em qualquer aula de história na escola.

Encontrei duas versões deste texto, em inglês. A primeira apresenta Clonarion como um rapaz, Leaina como uma tocadora de cítara e tem uma leitura mais agradável, mas um pedaço da história é pulado, o que faz com que alguns elementos percam o sentido, enquanto a segunda parece carregar algumas expressões e termos estranhos, provavelmente por serem mais antigos. Nesta versão, Clonarium parece denotar uma mulher (embora isso não esteja explicitado no texto em lugar algum), além de outras diferenças (até mesmo no título do texto). Por tudo isso, a segunda deve estar mais próxima do texto original, mas vou deixar a tradução da primeira versão ao final para referência.

Aqui tem uma terceira versão do texto em português (parecida com a segunda versão exceto por detalhes).

Seção 5: Leena e Clonarium

Clonarium
Ouvi dizer uma coisa estranha sobre você, Leena. Dizem que Megilla, a mulher lésbica [ou seja, habitante de Lesbos] rica, está apaixonada por você, como se ela fosse um homem, e que vocês vivem juntas e fazem sabe-se lá o quê juntas. Ei! Você está corando? Conte-me se é verdade.

Leena
É verdade, Clonarium. Mas estou envergonhada, porque não é natural.

Clonarium
Em nome da Mãe Afrodite, do que se trata? O que aquela mulher quer? O que vocês fazem quando estão juntas? Veja, você não me ama, senão você não esconderia essas coisas de mim.

Leena
Eu te amo da mesma forma que eu amo qualquer mulher, mas ela se parece terrivelmente com um homem.

Clonarium
Eu não entendo o que você quer dizer, a não ser que ela seja algum tipo de amante das damas [woman for the ladies]. Dizem que existem mulheres assim em Lesbos, com rostos de homem, que não estão dispostas a unirem-se a homens, mas apenas aceitam unirem-se a mulheres, como se elas mesmas fossem homens.

Leena
Ela é mais ou menos isso.

Clonarium
Neste caso, Leena, conte-me sobre isso; conte-me como ela fez seus primeiros avanços sobre você, como você foi persuadida e o que aconteceu depois.

Leena
Ela e outra mulher rica, também bastante educada, Demonassa de Coríntio, estavam organizando uma festa de bebidas e me levaram para que eu tocasse para elas. Mas, quando terminei de tocar, já era tarde, hora de deitar, elas estavam bêbadas, e Megilla disse “Venha conosco, Leena, já era hora de estarmos na cama; você dorme aqui no meio de nós.”

Clonarium
E você foi? O que aconteceu depois disso?

Leena
Primeiro elas me beijaram como homens, não apenas trazendo os seus lábios junto aos meus, mas abrindo um pouco a boca, me abraçando e apertando os meus seios. Demonassa até me mordeu quando me beijou, e eu não sabia o que fazer. Eventualmente Megilla, que suava e estava quente, tirou a peruca, que era muito realista e se encaixava muito bem, revelando a pele de sua careca que estava raspada, assim como o mais enérgico dos atletas. Esta visão me deixou em choque, mas ela disse,
“Leena, você alguma vez já viu um rapaz tão bonito?”
“Mas eu não vejo nenhum rapaz aqui, Megilla,” disse eu.
“Espere um minuto, não fale de mim como se eu fosse uma mulher!” disse ela. “Meu nome é Megillus, e eu estou casado com Demonassa por um longo tempo; ela é minha esposa.”
Eu ri daquilo, Clonarium, e disse,
“Então, mesmo que não soubéssemos, Megillus, você era um homem o tempo todo, assim como dizem que Aquiles uma vez se escondeu entre as meninas, e você tem os órgãos de um homem e pode fazer o papel de um homem para Demonassa?”
“Eu não entendi o que você quis dizer,” disse ela, “Eu não preciso disso tudo. Você verá que eu tenho um método próprio que é muito mais prazeroso.”
“Então você não é hermafrodita,” disse eu, “equipado ao mesmo tempo como mulher e como homem, como se diz que muitas pessoas por aí são?”; por que eu ainda não sabia, Clonarium, sobre o quê se tratava. Mas ela disse,
“Não, Leena, eu sou inteiro homem.”
“Bem,” disse eu, “Uma garota flautista boeotiana, Ismenodora, repetindo contos que tinha ouvido em sua casa, ficou contando como alguém de Tebes se transformou de mulher em homem, alguém que era um grande profeta, e se chamava Teiresias, se não me engano... Não foi isso que aconteceu com você, foi?”
“Não, Leena,” disse ela, “Eu nasci mulher assim como vocês, mas eu tenho a mente, os desejos e o resto como os de um homem.”
“E você acha que esses desejos são o bastante?” disse eu.
“Se você não acredita em mim, Leena,” disse ela, “apenas me dê uma chance, e você verá que eu sou tão bom quanto qualquer homem; eu tenho um substituto próprio. Apenas me dê uma chance, e você verá.”
Bem, eu fiz isso, meu bem, porque ela implorou tão veementemente e me presenteou com um valioso colar e vestidos de seda. Então eu joguei meus braços ao redor dela, como se ela fosse um homem, e ela começou a agir, me beijando, e arfando, e aparentemente apreciando muito.

Clonarium
Mas ela fez? Como? É isso que estou mais interessada em ouvir.

Leena
Não questione tão minunciosamente os detalhes; eles não são muito agradáveis; por Afrodite no paraíso, eu não vou lhe contar!

Contextualizando o texto

Não há nenhum equívoco aqui: essa estória é, de fato, sobre um homem trans.

Safo ouvindo o poeta Alcaeus tocar uma cítara.
Esse personagem vive na ilha grega chamada Lesbos, uma ilha que desde a antiguidade tinha a fama de abrigar mulheres que se relacionavam com mulheres - daí a origem do termo lésbica. Foi aí que, entre os séculos VII e VI a.C., viveu Safo, uma poetiza que escrevia canções de amor para homens e mulheres. Sua grande reputação durou séculos na Grécia e até mesmo durante o Império Romano (Lesbos foi incorporada ao Império em 79 a.C.)

Na antiguidade, a relações entre os gêneros masculino e feminino variava muito entre as cidades-estado gregas: às vezes às mulheres eram negados quaisquer direitos, inclusive à propriedade; em outras, elas tinham um direito à propriedade que, na maioria das vezes, era formal, pois sua posição social era submissa ao marido e ao pai (como era o caso de Roma no século II); mas em Lesbos, aparentemente as mulheres ainda tinham algum peso social e político.

Aqui vale uma observação: cerca de 90% da população era escrava. A orientação sexual e identidade de gênero dentro dessa classe explorada foram totalmente apagadas da História (ou talvez quase).

As cidades-estado grega tinham uma certa independência econômica e política entre si antes da dominação romana, o que possibilitava um desenvolvimento social e cultural diferenciado. O Império Romano, por outro lado, para integrar todo o império de forma econômica e subordiná-lo politicamente, colocou em prática uma política para homogenizar e subordinar esses povos do ponto de vista cultural e religioso.

O caráter lesbofóbico, bifóbico e transfóbico do texto fica bastante evidente na fetichização das mulheres lésbicas, na heteronormatividade imposta (a ideia que uma das mulheres tem que fazer "papel de homem") e também na exigência de que aquele que se identifica como um homem tenha que ter um pênis ou "algo parecido". Isso, sem dúvida, é a expressão de um choque entre a cultura romana (marcada por uma sociedade escravocrata e patriarcal que valorizava a virilidade) e a cultura lésbica (isto é, de Lesbos). Note-se, entretanto, que o personagem em questão não sofre nenhuma punição ao final, muito pelo contrário: ele é, e continua sendo, rico, portanto, para os olhos da época, uma pessoa importante.

Evidentemente, os vários elementos da cultura lésbica que chegaram ao conhecimento de Luciano foram utilizados para escrever a estória conforme sua própria visão de mundo. É evidente que a transgeneridade masculina é utilizada por Luciano para tentar explicar "como é possível duas mulheres fazerem sexo". Entretanto, teria Luciano imaginado a transgeneridade, ou seja, uma pessoa que "nasceu mulher" e se identifica como um homem? Ou será que, pelo contrário, chegou ao seu conhecimento a existência de um homem transgênero em Lesbos que ele então utilizou para dar sentido a sua estória?

Eu acredito que a segunda hipótese é a mais provável. Com ela, chegamos à conclusão que em Lesbos existiam não apenas mulheres lésbicas e bissexuais, como também homens transgêneros, que já não se encontravam mais em outras partes do Império (ao menos, não com tanta visibilidade social como naquela ilha).

Em outras palavras, no século II, Lesbos ainda conservava costumes culturais antigos que já não existiam no Império. Aquela ilha era, assim, um bastião de resistência das mulheres lésbicas, bissexuais e dos homens transgêneros!



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[Como prometido, a tradução da primeira versão]

As lésbicas

Leaina, uma tocadora de cítara
Clonarion, um rapaz

As lésbicas

Clonarion
Ouvi dizer uma coisa estranha sobre você, Leaina. Dizem que Megilla, a mulher rica de Lesbos, está apaixonada por você, como se ela fosse um homem, e que ela... não sei explicar... mas... Ouvi dizer que vocês duas se juntaram como se...

Leaina (Silêncio envergonhado)

Clonarion
Qual o problema? Você está corada. É verdade então?

Leaina
É verdade, Clonarion. Estou envergonhada, é muito estranho...

Clonarion
Pela grande Adrasteia, você deve me contar sobre isso! O que aquela mulher quer com você? O quê exatamente vocês fizeram quando foram para a cama juntas?

Leaina (Silêncio envergonhado)
Clonarion
Agora tenho certeza que você não me ama. Se amasse, você não esconderia coisas assim de mim.

Leaina
Eu te amo, Clonarion. Eu te amo mais do que qualquer coisa. Mas este é um assunto estranho. Estou tão envergonhada. Aquela mulher se parece terrivelmente com um homem.

Clonarion
Eu não entendo. Você quer dizer que ela é uma daquelas mulheres de Lesbos que são como homens que não irão sofrer em suas camas com a companhia de homens, mas preferem encontrar prazer, em vez disso, com outras mulheres, como se elas mesmas fossem homens?

Leaina
Ela é mais ou menos assim. 

Clonarion (Com entusiasmo) 
Neste caso, Leaina, conte-me tudo, por favor! Como ela lhe seduziu, pra começo de conversa? Como foi que você deixou Megilla se aproximar de você?  E o que veio depois? Conte-me tudo, por favor!

Leaina
Veja, Megilla e Demonassa, a coríntia, suando e quente, tirou seu falso cabelo – nunca suspeitei que ela estava usando peruca. E eu vi sua cabeça raspada como a de um jovem atleta. Fiquei assustada de ver isso. Mas Megilla dirigiu-se a mim, dizendo:
“Leaina, diga-me, você alguma vez já viu um rapaz mais bonito que este?”
“Mas eu não vejo nenhum rapaz aqui, Megilla,” disse eu.
“Ei, ei! Não me efemine,” disse ela. “Entenda, meu nome é Megillos. Demonassa é minha esposa.”
Suas palavras me soavam muito engraçadas, Clonarion. Eu dei umas risadinhas. E eu disse:
“É possível, Megillos, que você seja um homem e viva entre nós disfarçado como uma mulher, como Aquiles, que ficou entre as garotas escondido em seu manto roxo? E é verdade que você tem os órgãos de um homem e pode fazer com Demonassa o que qualquer marido faz para sua esposa?”
“Isso, Leaina,” respondeu ela, “não é inteiramente verdade. Você logo verá como nós podemos nos atrelar de uma forma muito mais voluptuosa.”
“Neste caso,” disse eu, “você não é hermafrodita. Eles, segundo me contaram, têm ao mesmo tempo os órgãos de uma mulher e de um homem?”
“Não,” disse ela, “eu sou bem parecido com um homem.”
“Ismenodora, a flautista boeotiana, me contou a respeito de uma mulher de Teba que se transformou em um homem. Uma adivinha muito boa com o nome de Teiresias... Algum incidente como este ocorreu com você?”
“Não, Leaina,” disse ela, “Eu nasci com um corpo inteiramente assim como todas as mulheres, mas eu tenho os gostos e os desejos como um homem.”
“E esses desejos são o bastante pra você?” perguntei, sorrindo.
“Deixe-me fazer do meu próprio jeito, Leaina, se não me acredita,” respondeu ela, “e você logo verá que eu não tenho nada a invejar dos homens. Eu tenho algo que lembra o patrimônio [estate] de um homem. Vamos, deixe-me fazer o que eu quero fazer e você logo entenderá.”
Ela implorou tão veementemente que eu deixei ela fazer o que queria. E você deve entender que ela me deu um presente, um lindo colar e várias túnicas da melhor seda. Então eu a abracei e a segurei em meus braços, como se ela fosse um homem. E ela me beijou por todo o corpo, e começou a fazer o que tinha me prometido, suspirando excitadamente do grande prazer e desejo que a possuía.

Clonarion
Mas como exatamente ela conseguiu? O que ela fez? Conte-me, Leaina! Conte-me especialmente isso!

Leaina
Por favor, não me pergunte os detalhes. Essas são coisas vergonhosas. Pela Senhora dos Céus, eu não vou nunca, nunca lhe contar isso!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Não cortem as nossas "picas"! (Transfobia nos banheiros da Unicamp)

A transfobia, uma ideologia arcaica e estúpida, continua a se manifestar com muita força na nossa sociedade e são reproduzidas pelo Estado, pela Ciência e pelos movimentos que lutam contra as opressões, sejam feministas, LGBTs ou negros. Por conta disso, não somos bem-vindas em quase nenhum lugar da sociedade. Inclusive nos banheiros femininos da Unicamp.

Quem fizer uma visita a um dos banheiros femininos do PB ou do IFCH pode acabar se deparando com as pichações dessas imagens que estão espalhadas pelo texto. Dentre as prováveis milhares de mulheres que usam esses banheiros todos os dias, o fato de haverem 4 mulheres trans que os utilizam (entre mulheres transexuais e travestis) ocasionalmente incomodou a tal ponto de aparecerem 5 pichações retratando-nos como "machos" e fazendo apologia à violência.

A travestifobia no Diário Oficial da União

Vamos analisar uma nota publicada no Diário Oficial da União no dia 17 de abril deste ano. Nele, se encontram as seguintes definições:
IV - Travestis: pessoas que pertencem ao sexo masculino na dimensão fisiológica, mas que socialmente se apresentam no gênero feminino, sem rejeitar o sexo biológico; e

V - Transexuais: pessoas que são psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro, rejeitando o próprio órgão sexual biológico.
Essa diferença entre a travesti, aquela que (teoricamente) "não rejeita o órgão sexual", e a mulher transexual, que (teoricamente) "rejeita o órgão sexual", é utilizada para manter uma desigualdade social entre travestis e transexuais nos parágrafos seguintes:
Art. 3º Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos.

[...]

Art. 4º As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.

Parágrafo único. Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade.
Na prática, nas prisões masculinas, são criadas alas exclusivas para LGBTs que são ocupadas na grande maioria por travestis.

Por que essa diferença de tratamento entre as mulheres transexuais e as travestis? Por que isolar e segregar as travestis a tal ponto? Qual é o crime que nós cometemos? Querem que nossa "pica" seja cortada!

Essa medida do D.O.U. foi uma síntese de diversas medidas feitas em diversos presídios ao redor do país após várias reivindicações dos movimentos LGBTs diante vários casos de agressão de travestis e transexuais nas prisões masculinas (imagine uma travesti sendo estuprada por 20 homens).

É preciso observar que há muitas travestis nas prisões. Na Unicamp existem cerca de 40 mil estudantes e 7 pessoas trans. No Presídio Central de Porto Alegre, existem cerca de 4 mil presos. Na ala exclusiva para LGBTs, existem 36 pessoas, 32 das quais são travestis! Uma travesti para cada 125 presos! Se a proporção de pessoas trans estudando na Unicamp fosse a mesma, seríamos 320 trans! E se centenas de travestis estivessem estudando na Unicamp, o que aconteceria com elas? Teriam suas "picas" cortadas à força? Seriam expulsas dos banheiros femininos para serem vítimas de assédio e possivelmente estupros nos banheiros masculinos? Seriam excluídas e marginalizadas em um "banheiro unissex", de maneira similar à medida travestifóbica no D.O.U.?

O que diz a "objetividade científica" sobre o "transexualismo" e o "travestismo"

O documentário Meu Eu Secreto apresenta a história de 4 crianças trans. Ele é bastante instrutivo por dois motivos: primeiro, porque escancara a transfobia da sociedade e, segundo, porque também escancara a estupidez de seus próprios idealizadores.

Uma das meninas dizia insistentemente para sua mãe e para seu pai: "Eu sou uma menina", ao que elas respondiam: "Não, você é um menino, veja, você tem pipi". A insistência delas é tanta que essa menina eventualmente é encontrada com uma tesoura na mão, com a qual ela tentava remover seu próprio pênis. Diante disso, elas afirmam: "Há alguma coisa errada com essa criança". Depois, chegam à conclusão que o problema é que a criança "padece" de "distúrbio de identidade de gênero".

De onde vem essa "brilhante" conclusão? De um livro de piadas? Não, de um livro de psiquiatria! E a mesma merda está escrita no site do Drauzio Varella!

Apesar de ser óbvio que a criança passou a rejeitar a genitália após ter sido incessantemente dito para ela que ela era menino "porque tinha um pipi" e apesar da nossa sociedade ensinar para absolutamente todas as crianças que o gênero é definido pela genitália, a nossa "ciência" continua a produzir infindáveis e "rigorosos" artigos científicos baseados na ideologia arcaica que reduz o gênero a uma concepção binária definida pela genitália! Esta concepção continua a ser afirmada e reafirmada com base em "evidências" encontradas em diversos países... todos capitalistas.

Entretanto, duas coisas essa "ciência" é incapaz de responder: por que existem tantas sociedades não-capitalistas (por exemplo, indígenas, africanas, aborígenes) que aceitam a existência de mais de dois gêneros, respeitam a identidade de gênero, e em algumas delas inclusive não existe nenhum tipo de mutilação genital ou castração? E com qual critério objetivo se define que identidade de gênero seja um distúrbio?

O que nos mostram as sociedades "primitivas"?

Existem centenas (talvez milhares) de sociedades que admitem social e culturalmente a existência de um terceiro gênero, talvez até quarto ou quinto. Para o horror da "ciência" e daquelas que fizeram essas pichações, tais sociedades estão espalhadas pelo mundo todo! Para muitas delas, identidade de gênero não é distúrbio nem doença, mas pura e simplesmente uma característica humana.

Na verdade, onde existe o (cis)gênero, também existe o transgênero, mesmo que as sociedades em que ele existe não admitam este fato.

Apresento como exemplo a tribo norte-americana Zuni, uma tribo matrilinear, ou seja, onde as mulheres encabeçam as famílias. Em um estudo feito na década de 1950, por exemplo, quando aos garotos era perguntado quem eles gostariam de ser se eles pudessem se transformar em outras pessoas, um a cada 10 respondeu que deseja ser como a mãe ou uma irmã (não era observado o fenômeno inverso entre as meninas). Ou seja, as mulheres zunis têm bastante prestígio.

O caso de Nancy, da tribo Zuni, é resumido neste texto, do qual reproduzirei alguns trechos (com grifos meus):
Nancy, que nasceu no sexo feminino [female] (sic) mas que se comportava à maneira dos homens, é brevemente mencionado pelo antropólogo Elsie Clews Parsons em sua pesquisa de campo conduzida na década de 1910. Pouco é conhecido sobre Nancy a não ser sua preferência a uma identidade mais masculina e a aceitação que Nancy recebeu de sua comunidade. Nancy era um(a) lhamana zuni [...] que era, por brincadeira, chamada de katsotsi, uma mulher masculina, variação de otsotsi ou "masculino".

Lhamana pode performar uma combinação de traços de gênero em vez de aderir a um ou outro. Em termos de lhamanas do sexo masculino [male lhamana], o indivíduo será frequentemente citado em terceira pessoa como uma mulher, mas ainda assim reconhecido como do sexo masculino, como era o caso de We'wha. Por outro lado, Nancy aparentemente era citada como "ela" e "dela", mas ainda assim vista como uma katsotsi.
Mais abaixo encontra-se a história da indígena We'Wha.
We’wha nascem em 1849 na povoado Zuni, Novo México. [...] Como era o costume, a preferência de um menino [sic] pelas coisas definidas pelos zunis como femininas colocava a criança no status de lhamana, e esse muito provavelmente era o caso de We'wha.

Tendo construído seu nome como ceramista, tecelã e líder da comunidade, We'wha ganhou a atenção da antropóloga Matilda Cox Stevenson, que tinha ido a Zuni para conduzir uma pesquisa de camp. We'wha acompanhou Stevenson para sua casa perto de Dupont Circle em Washington, DC, onde We'wha foi aclamada a "Princesa Zuni" (alternativamente, "Sacerdotisa Zuni", "Madame Zuni" e "Garota Zuni"), tornou-se uma celebridade entre a elite de Washington e permaneceu alguns dias na Casa Branca como hóspede do presidente Grover Cleveland.

[...]
We'wha ganhou a atenção da mídia nacional devido à ignorância americano europeia das identidades de gênero e hierarquias políticas do povo Zuni. A revelação do sexo biológico masculino [male biological sex] dela foi um escândalo para estes europeus americanos que pensavam que We'wha era do sexo feminino [female], uma vez que We'wha teve acesso garantido aos cômodos privados das mulheres onde quer que ela fosse. Para o povo Zuni, entretanto, não havia escândalo algum.

[...]

Se We'wha tivesse sido apresentada aos americanos europeus como uma mulher Zuni do sexo masculino [male Zuni woman] desde o começo, entretanto, nunca teria sido permitido que ela fizesse as coisas que ela fez em Washington. Ela não teria sido aclamada como uma "Princesa Zuni" pela imprensa, e certamente não teria sido hóspede que ficou dias na Casa Branca. Seja por acidente ou intencionalmente por sua patrocinadora, Matilda Stevenson, a classificação incondicional de We'wha como uma mulher Zuni abriu portas para ela e deu a ela a exposição nacional que seria difícil para um homem Zuni.

Que escândalo é esse?

O que escandalizou a nossa sociedade arcaica é um fato bastante simples: We'wha ocupava os espaços femininos. O que escandalizaria a tribo Zuni, pelo contrário, seria entrar no banheiro feminino e encontrar essas pichações transfóbicas feitas por feministas intituladas "radicais" que querem "combater o patriarcado", uma estrutura de opressão que a tribo Zuni simplesmente desconhece. Talvez o que mais incomoda a toda transfobia na universidade é que os coletivos estudantis daqui que lutam contra qualquer tipo de opressão escolheram não excluir mulheres por causa de pessoas transfóbicas.