domingo, 27 de dezembro de 2020

As gallae, sacerdotisas transgênero, e a opressão do Império Romano

 

Levado em uma barca veloz, sobre águas profundas,
Attis, com passos ansiosos e rápidos,
Ele alcançou as florestas da Frígia
E entrou onde a deusa estava,
Sombria, esta: uma floresta –
Estava lá, impelido pela loucura, pela raiva,
Sua mente confusa,
Com uma pedra afiada,
Ele fez cair de si o fardo de sua masculinidade.
Então, quando ela sentiu
Que a estrutura de seu corpo
Não tinha mais masculinidade –
Mesmo quando o sangue fresco umidecia a superfície do chão –
Com suas mãos brancas e limpas
Ela pegou o tamborim,
O tamborim que é seu, Cibele,

Seu mistério, como mãe das coisas.
E fazendo o couro de boi vazio tremer com seus dedos macios,
Ela começou a cantar, com um pouco de medo,
Assim, para suas companheiras:

Vós, gallae, vamos, vamos para a floresta da montanha de Cibele […]’”

Catullus, Poema 63

http://aestheticrealism.net/poems/the-poem-of-catullus-about-attis/

As gallae (plural de galla) eram sacerdotisas da antiguidade que adoravam a deusa Cibele, a mãe de todos os deuses, ou outras deusas a ela associadas (Atargatis/Rhea e Agdistis). Elas se expalharam por várias nações, desde a Frígia (parte asiática da atual Turquia) até a Britânia (atual Reino Unido). A forma como eram retratadas pelos romanos se parece com o estereótipo de travesti: ‘louca’, ‘barulhenta’ e ‘hipersexualizada’. Apesar de toda a perseguição, elas existiram em Roma por mais de 500 anos, até que foram criminalizadas. Utilizo o termo gallae em vez do ‘amplamente aceito’ galli (plural de gallus, masculino de galla), o que é um exemplo da masculinização e cisgenerificação da História.

Neste texto, a principal referência é a tese de bacharelado de Lucker, de 2005 (a página 1 é o início da Introdução, terceira página do arquivo PDF).

Uso o conceito transgênero com o sentido de variância de gênero, não de uma identidade psicológica de gênero. Por exemplo, muitas travestis e hijras (na Índia) não afirmam que são mulheres (ver INDEC, p. 5-6; Chettiar, 2015, p. 754-5).

Para uma datação laica, utilizo AEC (Antes da Era Comum) e EC (Era Comum) em vez de AC (Antes de Cristo) e DC (Depois de Cristo).


Quem eram as gallae?

Na Frígia, no século VII AEC, as sacerdotisas gallae serviam a deusa Matar (ou Matar Kubeleya, que pode ser traduzido como ‘Mãe da Montanha’ [isto é, que vive na Montanha] – Lucker, 2005, p. 10). Nas cidades gregas, o nome da deusa se tornou Meter Kybele e, quando seu culto foi oficializado no início do século V AEC, transformou-se em Kybele (p. 15). O culto a Kybele/Cibele foi oficializado em Roma em 204 AEC (p. 25-6) e chegou até a Inglaterra no século IV EC (p. 50).

As gala na Mesopotâmia eram prováveis ancestrais das gallae (p. 22-4). Se essa tese for verdadeira, as gala/gallae se espalharam, de leste para oeste, por todo o Império Romano em sua maior extensão territorial, no século II EC (com exceção, talvez, das regiões do norte africano).


A castração

O ritual mais importante era o Dies Sanguini (Dia de Sangue), quando as aspirantes se castravam (com remoção dos testículos ou de toda a genitália) para se tornarem gallae – a tradição dizia ser uma imitação de Attis.

Na tradição gallae da Frígia, Attis teria sido a primeira galla, ensinando às demais como deveriam servir Cibele. Na Grécia, Attis se transformou em um consorte semidivino de Cibele e as novas histórias foram removendo o significado de gênero da castração de Attis, transformando-o num ato de raiva, angústia ou loucura (p. 27-9).

Muitos classificam as gallae como ‘sacerdotes eunucos’. É uma distorção da História. A castração de um eunuco tinha o propósito de retirar-lhe a sexualidade, enquanto uma galla era vista como hipersexualizada. Os eunucos tinham altos salários e muito prestígio, desempenhavam várias funções para o imperador ou um patrocinador (patronus). Ao contrário, as gallae viviam de esmolas ou da venda do ato sexual e eram bastante marginalizadas.


Barulhentas’

Os rituais das gallae tinham caráter extático e envolviam cantos, gritos, tamborins, flautas, címbalos e outros instrumentos (p. 7, 17, 39, 40). Isso era apontado pelos romanos como sendo estrangeiro e não-romano. O exemplo mais nítido está no livro IV de Fasti, escrito por Ovid, que retrata a própria aparecendo para ele carregada por gallae junto a uma fanfarra de instrumentos estrangeiros. Apesar de ansioso para conversar com a divindade, o barulho o intimida e ele pede para poder falar a sós com uma das musas. A primeira pergunta era porque a deusa é honrada por um estrondo estrangeiro, o que parecia estranho para o senso de decoro romano (p. 37).


Hipersexualizadas’

As gallae eram retratadas como sexualmente perversas ou promíscuas (p. 74), o que seria uma característica estrangeira e não-romana (p. 54). Lucker argumenta:

Os romanos introduziram várias novas linhagens no culto de Cibele. Anteriormente, a adoração de Cibele, apesar de ser chamada de deusa-mãe, não estava relacionada com a fertilidade. As estátuas dela com crianças são raras. Em Roma, no entanto, ela foi associada à fertilidade, abundância e sexualidade de uma forma até então desconhecida por seu culto. Iconografia de órgãos sexuais humanos, bem como cestas de frutas, amantes abraçados e Attises retratados com mantos puxados para revelar as genitálias são comuns no culto romano, mas não eram associados à adoração de Cibele em outros lugares.

(p. 26)

Hoje em dia, o discurso de que “a homossexualidade veio de fora” está na boca dos fundamentalistas de muitos países.

Há outra razão para a visão das gallae como hipersexualizadas em Roma: o fato que elas sobreviviam de esmolas e venda do sexo. Isso porque, na Frígia, as gallae eram mais bem vistas e prestigiadas (p. 31, 53-4). Na Grécia, a condição das gallae tornou-se marginal (eram vistas como não-gregas, p. 63) e tudo indica que essa marginalidade se acentuou em Roma.


Loucas’

Os textos sobre as gallae frequentemente as retratam como loucas, o que seria a causa de seus rituais, em particular o de castração (p. 4, 29). Na visão da época, essa loucura era infligida pela própria Cibele, para que homens se tornassem gallae para servir a ela. Alguns textos retratavam que espectadores do ritual Dies Sanguini eram acometidos por essa loucura e se castravam para se tornar gallae (p. 33-5, 38).

Isso era uma visão distorcida, um exemplo de como a ‘loucura galla’ era vista como contagiosa – de fato, havia um longo processo para que uma pessoa pudesse se tornar uma galla, como era comum em qualquer papel religioso (p. 55-6).

Outra evidência de que elas eram vistas como loucas era a necessidade que elas fossem vigiadas. Esse era o papel do arquigallus:

“Outra adição ao culto de Mater [Cibele] foi a do archigallus. O archigallus era uma figura de culto com uma quantidade significativa de poder que tinha uma posição de autoridade sobre os gallae. Não parece ter sido uma necessidade para o arquigalo que ele fosse castrado; de fato, esculturas de archigalli enfatizam certas características faciais masculinas que teriam sido suavizadas pela castração. Depois da época de Claudian, o arquigallus era um cidadão com alguma influência na sociedade romana e não teria permissão para ser ‘gallicizado’. No final do Império Romano, o arquigalo parece representar alguém de fora cuja tarefa era supervisionar as atividades de um grupo do qual ele não fazia parte.”

(p. 27)


A aparência feminina

Alguns textos antigos sobre as gallae eram mais favoráveis a elas, outros contrários, mas praticamente todos eles evidenciam aspectos que eram considerados símbolos femininos na época, ou que os próprios textos afirmavam ser femininos. Por exemplo: roupas (p. 1, 10, 32), maneira de dançar, penteado, registro vocal, perfumes (p. 1), “pescoços femininos” (p. 37), o corpo, os membros (Poema 63 de Catullus), roupas brilhantes, maquiagem pesada, joalheria, cabelos descoloridos e encaracolados (Hales, 2002, p. 91), etc.


O papel feminino

Catullus, em seu poema, indica que o papel de uma galla era feminino, uma exigência de Cibele. Isso corresponde a uma expectativa da época: por via de regra, as deusas eram servidas por funções religiosas femininas, enquanto os deuses, por funções masculinas.

Um epigrama de Marcial (3.81) deixa bastante nítido que o papel sexual de uma galla deveria ser feminino (caso contrário, ela deveria ser decapitada):

“What is a female slit to you, Baeticus Gallus?
This tongue is supposed to lick male crotches.
Why was your dick cut off with a Samian shard,
if the pussy was so satisfying to you, Baeticus?
Your head should be castrated: for though you are admitted
because you have the groin of one of her priests [gallus],
nonetheless you betray the rites of Cybele:
in the mouth you are a male [vir].”
(Martial Epigrams 3.81 Translation: Faris Malik)
“O que é uma fenda feminina para você, Baeticus Gallus?
Essa língua deveria lamber as virilhas masculinas [inglês: male crotches].
Por que seu pau foi cortado com uma lâmina sâmia,
se a buceta lhe agradava tanto, Baeticus?
Sua cabeça deve ser castrada: embora você seja admitido
porque você tem a virilha de um dos sacerdotes [gallus] dela,
no entanto, você trai os ritos de Cibele:
na boca, você é um macho [vir].”

(p. 47)


Nem homens, nem mulheres’ ou ‘falsas mulheres’

Havia, entretanto, um duplo critério em relação a como as gallae eram tratadas. A expectativa ou exigência de que elas cumprissem um papel feminino não significava considerá-las mulheres – elas seriam falsas mulheres (p. 35), ou “nem homens nem mulheres”. Por exemplo, do ponto de vista jurídico, estabeleceu-se (em 77 AEC) que elas não tinham direito à herança, pois apenas homens e mulheres poderiam tê-los (p. 26, 62).

Ao longo de séculos, o Senado aprovou várias leis contra as gallae (p. 49), por exemplo proibindo que qualquer cidadão romano se tornasse galla (p. 67) e qualquer galla retornasse ao papel masculino (p. 61 – essa é uma diferença significativa com os eunucos).


A criminalização das gallae (e de qualquer identidade social semelhante)

O Código Teodosiano (uma compilação de leis de 291 a 437 EC publicada em 438 EC) contém um artigo que, segundo muitos historiadores, é obscuro e pode ser interpretado de várias maneiras. Obscuro só para quem usa óculos cisgênero.

O que há de confuso numa lei que diz que uma pessoa que condena seu corpo de homem para agir como uma mulher e se parecer com uma mulher deve expiar seu crime nas chamas da vingança à vista do povo?

Mas, para não deixar dúvidas, deixo isso para outro texto, onde vou apontar as semelhanças dessa lei com outros textos de cristãos da mesma época – que falam sobre as gallae e outros papeis religiosos em outras partes do mundo.


Referências

[1] Lucker, K. A, 2005. The Gallae: Transgender Priests Of Ancient Greece, Rome, And The Near East. Bacharel Thesis. Sarasota: New College of Florida. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://s3.amazonaws.com/arena-attachments/539632/d6348aa09f4510eb5704b6da501f9e7d.pdf

[2] INDEC, 2012. Primera Encuesta sobre Población Trans 2012: Travestis, Transexuales, Transgéneros y Hombres Trans. Informe técnico de la Prueba Piloto Municipio de La Matanza 18 al 29 de junio 2012. Buenos Aires. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://www.indec.gob.ar/micro_sitios/WebEncuestaTrans/pp_encuesta_trans_set2012.pdf

[3] Chettiar, Anitha, 2015. Problems Faced by Hijras (Male to Female Transgenders) in Mumbai with Reference to Their Health and Harassment by the Police. International Journal of Social Science and Humanity, 5(9), pp. 752–759. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: http://www.ijssh.org/papers/551-W10007.pdf

[4] Hales, Shelley, 2002. Looking for eunuchs: The galli and Attis in Roman art. In Tougher, Shaun (ed.). Eunuchs in Antiquity and Beyond. The Classical Press of Wales and Duckworth.

[5] Martin, Dale B., 2009. The Greco-Roman World [vídeo]. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ecpn3bkVvv0&list=PL279CFA55C51E75E0&index=3

'Dois-espíritos' e a diversidade de gênero nos povos nativos da América do Norte

Desde o século XVI, colonizadores, particularmente padres jesuítas, perceberam que os papéis de gênero nos povos nativos americanos não correspondiam à concepção europeia. Escandalizados, escreveram sobre “homens” nativos que tinham papel social feminino ou misto e os apelidaram de berdaches, um termo pejoratido. Contrário a isso, o antropólogo doutor Wesley Thomas, membro do povo Navajo, cunhou o termo guarda-chuva ‘dois-espíritos’, que passou a ser reivindicado pelos movimentos indígenas LGBTQIA+ da América do Norte a partir de 1990. As produções antropológicas passaram a adotar esse termo.

A concepção binária de gênero foi fabricada e imposta, pela colonização, a quase todo o mundo. Criou-se a ideologia de que isso é natural e que sempre foi assim.


O que é berdache?

A adoção deste termo diz muito mais sobre a sociedade europeia do que sobre as sociedades indígenas americanas.

A palavra vem do francês, berdache, que pode significar ‘homossexual passivo’, ‘pederasta’ ou ‘garoto prostituto’. Esta, por sua vez, deria do termo persa barda, que significa ‘cativo’, ‘prisioneiro de guerra’ ou ‘escravo’.

Portanto, o conceito berdache diz muito sobre como a sociedade europeia ocidental enxergava pessoas do ‘sexo masculino’ que desempenhavam papéis femininos ou mistos. Fica evidente, aliás, que esse termo não tem relação nenhuma com quem são as pessoas ‘dois-espíritos’, nem com como são tratadas por suas comunidades.

Por exemplo, Will Roscoe afirmou em seu livro sobre We’wha, em 1991:

“Hoje, os antropólogos se estabeleceram no termo berdache, uma versão de bardaje usada pelos exploradores franceses. […] O Oxford English Dictionary define ‘bardash’ como ‘um menino mantido para propósitos não naturais. Embora tal prática tenha muito pouco a ver com o papel do berdache norte-americano, os europeus não tinham um termo mais adequado para tal status. […]
Berdaches do sexo masculino e feminino [sic] (isto é, mulheres que assumiram papéis masculinos como guerreiros e chefes ou engajados em trabalhos ou ocupações masculinas) [sic] foram documentados em mais de 130 tribos norte-americanas, em todas as regiões do continente, entre todos os tipos de cultura nativa, dos pequenos bandos de caçadores do Alasca às populosas e hierárquicas cidades-estado da Flórida. Entre os indígenas Pueblo do Arizona e Novo México, berdaches masculinos foram registrados em Acoma, Hopi, Isleta, Laguna, Santa Ana, Santo Domingo, San Felipe, San Juan, Tesuque e Zuni. Nas várias línguas faladas nesses pueblos, eles eram chamados de kokwimu (Keres), hova (Hopi), lhunide (Tiwa), kwidó (Tewa) e lhamana (Zuni).
“Nas sociedades nativas tradicionais, os berdaches não eram anômalos. Eles eram membros integrais, produtivos e valiosos de suas comunidades. Mas a cultura europeia transplantada para a América carecia de quaisquer papéis comparáveis, e os europeus que viram berdaches foram incapazes de descrevê-los com precisão ou compreender seu lugar nas sociedades indígenas. De fato, ao longo de um longo período de história, as instituições sociais europeias buscaram suprimir os próprios comportamentos econômicos, sociais e sexuais típicos dos berdaches. Poucos aspectos das culturas dos indígenas europeus e americanos conflitavam tanto quanto neste.”
(1991, p. 5, tradução nossa)


Mas por que ‘dois-espíritos’?

Quero explicitar que as culturas e tradições dos povos nativos são bastante diversas. O conceito ‘dois-espíritos’ é um guarda-chuva e, dentro dele, se abrigam identidades de diversos povos, com significados diferentes. Mary Annette Pember, uma jornalista ojíbua, explica que esse termo é útil para substituir o anterior e como ferramenta de organização inter-povos, mas que não existe “nenhuma cultura ou espiritualidade universal na América nativa” (Pember, 2016, tradução nossa).

Esse nome foi criado devido à crença religiosa de alguns desses povos que consideram que algumas pessoas nascem com dois espíritos, um masculino e um feminino. Esta crença seria uma justificativa religiosa de que tais pessoas são especiais, são xamãs, têm poder de cura ou de dar boa sorte, são capazes de desempenhar com destreza tarefas consideradas femininas e masculinas, etc.


We’wha, a ‘Princesa Zuni’

We’wha (lê-se uei-ua, mas há variações) foi uma indígena do povo Zuni que viveu na segunda metade do século XIX e que se tornou relativamente famosa, saindo em jornais de Washington com títulos de Princesa Zuni, Madame Zuni e Sacerdotisa Zuni, entre outros. Apesar do seu tipo físico (alta e musculosa) e sua aparência (distante do padrão para uma mulher cis), ela era reconhecida como mulher, até que descobriram que ela tinha “sexo biológico masculino” (na concepção da medicina).

O povo Zuni considerava We’wha como uma lhamana, e justamente por isso lhe foi designado o papel de embaixadora cultural de seu povo. Pois as lhamanas, de qualquer sexo biológico, tinham um status especial no povo Zuni.

Como explica Will Roscoe, o povo Zuni é matrilinear (ou seja, a linhagem familiar é determinada pela mãe, não pelo pai).

A solução Zuni [para o bem-estar das crianças] não dependia da instituição do casamento. Casadas, divorciadas ou solteiras, as mulheres sempre tiveram um lar. E em um sistema matrilinear, não havia filhos ilegítimos. As crianças só precisavam que as mães pudessem ser filiadas a uma família e a um clã. Assim, as mulheres Zuni eram livres para escolher parceiros sexuais sem compulsão econômica ou moral, para praticar o controle da natalidade (incluindo o aborto e anticoncepcionais naturais), em suma, para controlar seus próprios corpos. ‘Encontros amorosos são um costume Zuni aceito e culturalmente se espera que haja uma relação sexual pré-marital’, concluiu um estudo. O namoro é freqüentemente iniciado pela garota e os casos pré-maritais acontecem em sua casa. […]
Uma medida reveladora do status das mulheres Zuni foi a resposta das crianças a uma pesquisa feita na década de 1950. Quando os meninos Zuni foram questionados sobre quem eles gostariam de ser se pudessem se transformar em outra pessoa, 10% quiseram ser suas irmãs ou mães. Uma porcentagem tão alta não pode ser explicada como uma epidemia de disforia de gênero, (sic) mas simplesmente como um reflexo do prestígio dos papéis femininos.”
(1991, p. 20-1, tradução nossa)

Grande parte do material publicado sobre We’wha tem como fonte os escritos de Mathilda Coxe Stevenson, antropóloga que se tornou amiga pessoal de We’wha. Em um relatório ao Biro de Etnologia Americana [Bureau of American Ethnology], Stevenson descreve We’wha:


Esta pessoa era um homem (sic) que usava roupas femininas, e seu sexo era tão cuidadosamente oculto que a escritora acreditava que ele era uma mulher (sic). Alguns declararam que ele era um hermafrodita (sic), mas a escritora não deu crédito a esse relato e continuou tratando We’wha como uma mulher, e como ele era sempre referido pela tribo como ‘ela’ – sendo seu costume tratar homens que usam roupas femininas como se eles fossem mulher (sic) – e a escritora não poderia jamais imaginar de sua amiga fiel e devota de qualquer outra maneira, ela continuará a usar o gênero feminino ao se referir a We’wha”
(Bost, 2003, p. 137, tradução nossa, grifo nosso)

O relato de Stevenson demonstra um conflito entre a visão que o povo Zuni tinha de We’wha (sempre a tratando no feminino) com a visão de origem europeia. Percebe-se que a própria Stevenson se vê constrangida de tratar We’wha com pronomes femininos ante a sociedade capitalista estadunidense, ao ponto de ter de explicar por que a tratava assim – era uma questão de respeito a ela e a seu povo. Stevenson teve também de explicar por que não sabia (e aliás, nem queria saber) qual era exatamente o ‘sexo biológico’ de We’wha.

Mas por que isso é constrangedor? O constrangimento não deveria ser de quem queria fiscalizar o que We’wha tinha no meio das pernas? Curioso: quem insistia em tratar We’wha no masculino, em desrespeito a ela e ao povo Zuni, nunca sequer sentiu necessidade de se explicar.

Como relata Suzanne Bost (2003, p. 137), o conflito de Stevenson se reproduz ao longo do relatório e em outros textos, onde ela, ora se refere a We’wha como ‘ela’, ora como ‘ele’.

A morte de We’wha, testemunhada por Stevenson, causou “pesar e angústia universais” para o povo Zuni (Roscoe, 1991, p. 4). Uma reação contrária à tradição europeia ocidental, onde as pessoas dois-espíritos “evocavam desânimo, desgosto, raiva ou, pelo menos, o ridículo”, eram vistas como “anomalias – aberrações da natureza, demônios, desviantes, pervertidos, pecadores, corruptores” pois “cometiam o ‘vício nefasto’, o ‘pecado abominável’” (idem, p. 4).

Note que não há, necessariamente, uma correlação entre sexualidade e as identidades dois-espíritos. A correlação entre a identidade lhamana e a ‘sodomia’ (assim chamado o ‘pecado abominável’ da penetração anal, particularmente entre dois homens) estava na cabeça dos colonizadores.


Uma tradição cada vez mais corroída

Pember relata:

O legado da dominação ocidental roubou de muitos, incluindo dos nativos americanos, qualquer religião ou cultura que não se encaixasse nas estreitas normas ocidentais.
[…]
Anos de colonização e apropriação por invasores europeus, bem como a hegemonia religiosa bem-intencionada que demonizou nossa espiritualidade e modo de vida através de internatos e outros meios, tornou a Nação Indígena muito parecida com o resto da América rural em relação a como tratam pessoas LGBTQ. Na verdade, algumas tribos criaram leis proibindo especificamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Indivíduos com variação de gênero enfrentam dificuldades para entrar e sair da Nação Indígena.
(2016, tradução nossa)

A ideologia colonizadora europeia penetrou em muitos destes povos, principalmente a partir da ‘evangelização’ dos padres jesuítas, que se horrorizavam com a aceitação e naturalização da diversidade nesses povos. Kristopher Kohl Miner, da nação indígena Ho-Chung, relatou para Pember:

Dois-espíritos é um termo totalmente contemporâneo. Ele foi trazido à mesa porque os antropólogos se referiam a nós como berdache. Pessoas LGBTQ nativas queriam um termo que nos desse a oportunidade de tomar de volta nossas identidades.”
(2016, tradução nossa)


Referências

[1] Roscoe, Will, 1996. The Zuni Man-Woman. Albuquerque, N.M: University of New Mexico Press. (Alguns trechos estão disponíveis em: https://ratical.org/many_worlds/onlyDifferent.html)

[2] Bost, Suzanne, 2003. Mulattas and Mestizas: Representing Mixed Identities in the Americas, 1850-2000. Athens, Georgia: University of Georgia Press.

[3] Pember, Mary Annette, 2016. ‘Two Spirit’ Tradition Far From Ubiquitous Among Tribes. [online] Rewire News Group. Acessado em 05/12/2020. Disponível em: https://rewirenewsgroup.com/article/2016/10/13/two-spirit-tradition-far-ubiquitous-among-tribes/

[4] Treuer, A., 2011. The Assassination Of Hole In The Day. St. Paul, MN: Borealis Books.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

A questão LGBTQIA+ é sobre sexualidade ou sobre gênero?


A natureza é ilimitada em suas criações. Entre todos os opostos existem transições, e isso também é verdade sobre os sexos. Portanto, além do homem e da mulher, existem também homens com traços físicos e psicológicos femininos, assim como mulheres com todo tipo de características masculinas.

Magnus Hirschfeld no filme ‘Diferente dos Outros’ (Anders als die Andern), 1919.

De volta a 2012, o tema LGBT fervilhava na Argentina, onde a Parada LGBT crescia ano a ano e conquistou leis como a de casamento igualitário (em 2010) e a de identidade de gênero (em 2012). Os fundamentalistas do Brasil estavam de cabelo em pé. Feliciano lançou um projeto de lei de ‘cura gay’, mas o tiro saiu pela culatra. Até a Globo foi obrigada a se posicionar indiretamente – e assim nasceu Félix e o primeiro beijo gay numa novela da emissora. Em 2014, os fundamentalistas adotaram o conceito de ‘ideologia de gênero’, apoiando-se nos preconceitos populares contra as travestis e obtiveram grande sucesso em sua empreitada maliciosa. Eles mudaram o chip, mas a esquerda não. Por quê?


Como a sexualidade tornou-se o centro do debate?

Permitam-me digressar um pouco e voltar ao começo do século XX, quando o tema da homossexualidade (na época ‘homossexualismo’) fervilhava na Alemanha e dali começou a fervilhar em diversos países da Europa. Magnus Hirschfeld, médico e homossexual não-assumido, começou a estudar e elaborar sobre o tema. Magnus fundou o Instituto Científico-Humanitário, que se tornou o maior movimento da época pelas liberdades sexuais não somente de homens e mulheres homossexuais, como também das mulheres em geral.

A teoria de Hirschfeld não estudou somente a atração sexual, como também uma série de características do comportamento humano, a maneira de ser, o uso de roupas, a identidade de gênero, etc. O sexólogo já havia percebido que esses comportamentos não estavam necessariamente vinculados à orientação sexual. Como resultado, ele teorizou que essas várias formas de existir eram gêneros intermediários. Ele categorização 64 tipos de gênero intermediário.

E hoje há quem reclame pelo ‘excesso de letras’ em nossa sigla. Ora, se dependesse de Hirschfeld, teríamos de emprestar letras do alfabeto grego e do cirílico!

Sim, estou sendo intencionalmente anacrônica aqui, pois o conceito de gênero só viria a ser concebido nas teorias feministas décadas depois de Hirschfeld. Em vez de gênero, este falava em sexo. Entretanto, atualizando a sua teoria para conhecimentos mais atuais, concluímos que o que define a existência LGBTQIA+ é a variação do comportamento humano em relação às normas de gênero. Resumindo em um conceito, diversidade de gênero.

Essa perspectiva, infelizmente, não se desenvolveu devido, por um lado, ao nazismo na Alemanha e, por outro, ao stalinismo na União Soviética. Ambos movimentos políticos tinham profunda aversão à diversidade de gênero. Enquanto os nazistas acusavam os comunistas de serem todos homossexuais, os stalinistas repetiam o lema “extermine os homossexuais e o fascismo desaparecerá”. Prenderam e assassinaram ativistas, queimaram livros, o Instituto fundado por Hirschfeld foi reduzido ao pó das cinzas. Até mesmo os países supostamente democráticos intensificaram a perseguição à comunidade LGBTQIA+ nas décadas seguintes.

O movimento LGBTQIA+ voltou a revigorar a partir da Revolta de Stonewall, em 1969, que foi protagonizada principalmente por pessoas negras e latinas das periferias, grande parte delas pessoas trans (ou ‘drag kings e drag queens’) profissionais do sexo ou de shows (muito mal pagos). O movimento que dali surgiu, a GLF (Gay Liberation Front – Frente de Liberação Gay), refletia essas características. Entretanto, a GLF de Nova Iorque implodiu logo ao fim de 1970 e deu lugar a GAA (Gay Activists Aliance – Aliança de Ativistas Gays), que tinha caráter muito mais reformista e ‘apolítico’.

Ao buscar visibilidade e ‘diálogo’ com a mídia e os políticos, a GAA foi cada vez mais protagonizada por homens gays brancos e cisgêneros, o que provocou rupturas, por exemplo, com a formação da LLF (Lesbian Liberation Front – Frente de Liberação Lésbica) em 1972 e da QLF (Queen Liberation Front – Frente de Liberação Queen) em 1973.

O protagonismo dos homens gays brancos e cisgêneros refletiu-se nas pautas, cada vez mais voltadas à orientação sexual, e no discurso de que o tema que unía todo o movimento LGBTQIA+ era a sexualidade.


Heteronormatividade ou normas de gênero?

A aberração teórica chamada ‘heteronormatividade’ é um belo exemplo de como essa perspectiva contaminou todo o debate político-teórico. Pelo amor de Inanna, alguém me explique o que a cor do enxoval de um bebê tem a ver com a atração romântica ou sexual que ele vai sentir mais de uma década depois? Nada! É o contrário: tanto a cor do enxoval quanto a atração romântica e sexual são padronizadas para que sejam perpetuadas as normas de gênero. A única definição coerente é considerar como heteronormatividade apenas a norma que estabelece a atração romântica e sexual.

É verdade que a opressão à comunidade LGBTQIA+, no discurso, aparece como opressão ‘aos gays’, mas não podemos confundir aparência e essência. Na vasta maioria das vezes que alguém é ‘xingado’ de viado ou sapatão, não é devido à sua orientação sexual.

Foi fundamentalmente Michel Foucault quem preencheu o grande buraco teórico que havia sido formado pelos genocídios passados. A sua explicação para a opressão ‘homofóbica’, incluída na trilogia História da Sexualidade, não se fundamenta na padronização dos seres humanos em dois gêneros, mas, sim, na criação do regime de heterossexualidade criado no século XVII. No entanto, apenas no século XIX teriam surgido as teorias médicas sobre a ‘homossexualidade’ e daí a opressão ‘homofóbica’.

O conceito de ‘homofobia’ de Foucault é tão limitado que nele nem sequer cabe o extermínio de milhares de ‘sodomitas’ pela Santa Inquisição durante a Idade Média, nem o extermínio das bruxas acusadas de ‘abandonarem as decências de seu sexo’, como o notável exemplo da condenação de Joana D’Arc. Também não cabe nele os discursos dos ‘pais da Igreja Católica’, como os de João Crisóstomo (347 a 407 d.C.), que foi arcebispo de Constantinopla e falou sobre o tema em várias homilias, inclusive defendendo a morte por apedrejamento para um homem que fossepenetrado por outro.

João Crisóstomo, que não tinha receio de atirar a primeira pedra, com certeza era um homem sem pecados! [Aviso de ironia]

A preseguição aos ‘sodomitas’ (termo bastante próximo do conceito atual de ‘homem gay’) remonta aos discursos dos ‘pais da Igreja’ ao fim da Antiguidade, que condenavam “todo casamento ilegal, toda prática indecorosa toda união de mulher com mulher e de homem com homem” (Eusébio de Cesareia, 265 a 339), pagãos que “se poluíam ao se deitarem com outros homens” (Aristides de Atenas, século II), homens que eram “culpados de indecências com outros homens” (Basílio de Cesareia, 329 a 379), homens que “desejavam outros homens” (Gregório de Níssa, 335 a395), etc.

Na verdade, o conceito de ‘homofobia’ de Foucault refere-se apenas a um tipo de opressão à diversidade de gênero que surgiu em um determinado período da história humana. Longe de ser universal, trata-se do específico do específico do específico. Nem sequer engloba as formas anteriores de opressão aos ‘homossexuais’ – apenas porque não eram assim categorizados e denominados. Mais ainda, os inúmeros teóricos que trataram da opressão à comunidade LGBTQIA+ não conseguiram enxergar a totalidade porque se limitaram à opressão da sexualidade, sem compreender que ela é apenas um tipo de opressão à diversidade de gênero.

Somente compreendendo a opressão à diversidade de gênero de uma forma total que é possível enxergar, ao longo da História e das inúmeras sociedades humanas, diversas formas de padronização dos seres humanos em dois gêneros e, consequentemente, várias formas de opressão às pessoas que não se adequavam a ela.

Afinal, antes do patriarcado estabelecer a opressão de gênero, era necessário estabelecer a própria existência de dois gêneros. Se não existirem homens e mulheres, é impossível que exista a opressão machista. Portanto, a opressão à diversidade de gênero não é apenas um produto do patriarcado, é também um pressuposto deste.


Resgatar as cores do movimento!

Ao hegemonizarem o movimento LGBTQIA+, os homens cis brancos e gays impuseram as discussões sobre sexualidade como sendo universais para esse setor da população. Seria uma ofensa para eles que o que lhes perturba é apenas uma pequena parte da normatização do gênero, porque isso faria com que eles deixassem de ser o centro e os ‘legítimos representantes’ do movimento.

A esquerda e o movimento LGBTQIA+ precisam mudar de chip e parar de usar as distintas identidades do movimento apenas como ‘token’, como símbolo usado meramente para mostrar que o movimento é colorido. A preciso alterar as cores por dentro, e não apenas por fora, na aparência. Para isso, é preciso trazer o gênero e o patriarcado de volta ao centro do debate.


domingo, 12 de julho de 2020

J. K. Rowling, nós somos mulheres, sim!

A autora da série de livros ‘Harry Potter’, Joanne K. Rowling, escreveu um texto em seu blog [1] tentando justificar uma série de comentários que desautorizam a identidade de gênero das pessoas trans, particularmente das mulheres. O texto revela que Joanne não apenas se opõe a que nós sejamos consideradas mulheres do ponto de vista social e legal, mas também a uma série de direitos fundamentais que nós conquistamos com muita luta. Em última instância, o que ela quer é que nós, pessoas trans, abramos mãos de nossos direitos. Vamos a seus argumentos.

Antes de iniciar o debate, quer deixar bem explícito que sou crítica aos xingamentos misóginos e às ameaças recebidas pela autora. Posiciono-me absolutamente contra todo tipo de violência, inclusive a verbal. Esse tipo de comportamento é condenável e inaceitável em qualquer tipo de debate, por mais absurdas que sejam os argumentos sendo utilizados.


Ser mulher não é menstruar nem ter útero ou vagina

Comecemos pelo tweet sarcástico de J. K. Rowling:

“‘Pessoas que menstruam.’ Tenho certeza que havia uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude. Wumben? Wimpund? Woomud? [Em referência a palavra ‘women’, mulheres em inglês.”
“‘People who menstruate.’ I’m sure there used to be a word for those people. Someone help me out. Wumben? Wimpund? Woomud?”[2]

Devo lembrar a Rowling que nem todas as mulheres menstruam – e não estou falando apenas das pessoas trans. Esse comentário sarcástico acaba desautorizando a identidade de gênero de mulheres cis que estão na menopausa, que usam anticoncepcionais ou que, por qualquer condição biológica, não menstruam. Bem, ao menos com essa afirmação, os homens trans que se hormonizam seriam reconhecidos como homens!

Brincadeiras à parte, não importa qual característica biológica Rowling queira utilizar para definir o que é ser mulher, ela inevitavelmente vai acabar excluindo uma parte das mulheres, inclusive de mulheres cis. Mas não são características biológicas que definem o que é ser mulher. O gênero, como explicou Simone de Beauvoir, é social.

Se Joanne cita Beauvoir no seu texto, por que não a ouve?


Relatos pessoais que não são relevantes ao debate

Como é muito comum, J. K. Rowling faz relatos pessoais sobre como ela via seu gênero e fazendo suposições acerca de como seria se ela tivesse tido acesso ao debate sobre identidade de gênero em sua adolescência. Não vou responder a tais relatos porque, primeiro, são pessoais e, segundo, são irrelevantes. Afinal, não se pode defender a retirada de direitos conquistados por pessoas trans com base em problemas que pessoas cis enfrentaram ao longo de sua vida em relação ao seu próprio gênero.


Somos mulheres vítimas da violência machista

O texto de Joanne Rowling revela, pela primeira vez, seu passado como vítima de violência sexual, quando a autora tinha cerca de 20 anos. Eu me solidarizo com a autora e sinceramente gostaria que seu ex-marido respondesse judicialmente pelos crimes que cometeu. Entretanto, devo dizer, obviamente, que nós, mulheres trans, não temos nada a ver com tal crime e nem podemos pagar o preço por ele.

Joanne diz reconhecer que as mulheres trans também são vítimas de violência. O que ela parece não reconhecer é que nós somos vítimas da violência machista. Se ela reconhecesse tal fato, teria de concordar que nós somos mulheres ou que, no mínimo, também precisamos de espaços que nos protejam minimamente dessa violência tanto quanto as mulheres.

Existe uma evidente contradição na sociedade: enquanto a sociedade se nega a reconhecer que nós, mulheres trans, somos mulheres, ela nos trata com a mesma violência da qual são comumente vítimas as mulheres. Um exemplo nítido dessa contradição foi a detenção da travesti Indianare Siqueira por andar sem camisa com os “peitos de fora” [3] – exatamente como qualquer mulher seria. No tribunal, a defesa de Indianare argumentou que, se o tribunal a condenasse, estaria reconhecendo que seus documentos estavam errados, uma vez que legalmente ela era homem.

Alguém precisa lembrar a Rowling que mulheres trans também somos vítimas de violência sexual. Numa pesquisa feita com 498 pessoas trans pela Fundación Huésped na Argentina [4], cerca de 80% das 452 mulheres trans (travestis e mulheres transexuais) relataram que já haviam sido detidas pela polícia. Entre estas, 62% relataram ter sofrido violência psicológica, 48%, violência física e 43%, abuso sexual dos agentes de segurança.

Resumindo, cerca de 34% das mulheres trans nessa pesquisa já haviam sido detidas e foram vítimas de violência sexual, ou seja, violência machista da polícia. O estudo, infelizmente, não inclui outras formas de violência sexual comumente relatadas por mulheres trans. Uma delas é a violência por outros detentos nas prisões masculinas. É por isso, por exemplo, que foi determinado, no Brasil, o direito das mulheres transexuais (e também homens transexuais) detidas de cumprirem sua pena em detenções femininas, bem como o de travestis permanecerem em uma cela separada [5]. Essa diferenciação entre mulheres transexuais e travestis foi contestada em um processo, onde o juiz determinou o direito de uma travesti de permanecer na ala feminina [6].

Esse direito (o de nós permanecermos nos espaços femininos) não é apenas para o reconhecimento de nossa identidade, como também uma questão de segurança. Não são raros, por exemplo, os relatos de assédio sexual sofrido por mulheres trans quando somos forçadas a ir ao banheiro masculino. Afinal, é o que aconteceria com qualquer mulher que frequentasse esse banheiro.

É por isso que nós, mulheres trans, insistimos em dizer à sociedade: se vocês nos violentam como mulheres, ao menos tenham a decência de reconhecer que nós somos mulheres.


Não somos criminosas

Embora não seja essa sua intenção, os argumentos de Rowling se alinham com o estereótipo de que nós, travestis, somos pessoas desequilibradas, barraqueiras, criminosas. Esse estereótipo tem uma razão de existir. Uma vez que as pessoas trans são violentadas e expulsas de suas casas, das escolas e dificilmente conseguem inserção no mercado de trabalho, é muito comum que travestis acabem recorrendo ao trabalho sexual para se sustentar. É o mesmo que acontece com uma boa parte das mulheres cis negras.

Na mesma pesquisa feita pela Fundación Huésped, por exemplo, 61% das mulheres trans relataram que exerciam trabalho sexual e 23% relataram que já tinham exercido esse tipo de trabalho. Por não ser reconhecida legalmente, essa é uma atividade altamente criminalizada. Não é curioso, Rowling, que a maioria das mulheres trans sejam empurradas pela sociedade à prostituição da mesma forma que muitas mulheres cis? Não é curioso que a mesma sociedade que nos empurra para essa atividade acabe por criminalizar aquelas que a exercem?

Devido a esse estereótipo, as pessoas em geral – e as mulheres cis em particular – são levadas a acreditar que é inseguro dividir o mesmo espaço que nós. O banheiro feminino, por exemplo. J. K. Rowling se apoia nessa insegurança para determinar que o ativismo trans é inseguro às mulheres. Por exemplo, em um momento, Rowling diz que nós, pessoas trans, não somos um perigo:

Eu acredito que a maioria das pessoas que se identificam como trans (sic) não só não representam nenhum perigo às demais, como são vulneráveis por todas as razões que eu explicitei. As pessoas trans precisam de e merecem proteção.
“I believe the majority of trans-identified people not only pose zero threat to others, but are vulnerable for all the reasons I’ve outlined. Trans people need and deserve protection.”

Curioso é que, ao mesmo tempo em que ela afirma, da boca pra fora que nós precisamos de proteção, ela se opõe a todas as políticas que nós conquistamos, com muita luta, e que servem para a nossa proteção. Ao mesmo tempo, em outro ponto do texto, ela afirma que nós não somos mais inofensivas, pelo contrário, representamos um perigo às mulheres cis:

“Um grande número de mulheres estão aterrorizadas, e com razão, por ativistas trans; eu sei disso porque muitas delas entraram em contato comigo para compartilhar suas histórias. Elas estão com medo de ‘doxxing’ [7], de perder seus trabalhos ou suas moradias, e de violência.”
“Huge numbers of women are justifiably terrified by the trans activists; I know this because so many have got in touch with me to tell their stories. They’re afraid of doxxing, of losing their jobs or their livelihoods, and of violence.”

Sou absolutamente contra a prática de ‘doxxing’ e de violência. Ainda assim, por que essas mulheres estão com medo de perderem o emprego por serem transfóbicas? Ora, e quando uma pessoa perde o trabalho por ter sido racista ou preconceituosa em relação a outros grupos minoritários? Não é justo quando isso acontece? E por que estariam elas com medo de sofrer violência? Não foi a própria Rowling que disse que a maioria de nós, pessoas trans, não somos um perigo? Então por que aqui ela está dizendo o oposto?

A razão para isso é simples. Se ela não se apoiar no senso comum de que nós, pessoas trans, somos violentas, ela não conseguiria se opor às políticas que servem para nos proteger da violência, porque todas elas reconhecem nosso gênero, que é social.

Eu me solidarizo com as mulheres cis que temem perder seus empregos, mas devo lembrar a Rowling que nós, pessoas trans, temos muito mais medo de perdermos os nossos, e com muito maior razão! Até porque, para muitas de nós, perder o emprego muitas vezes significa não ter alternativa senão recorrer à prostituição. Muitas mulheres trans somos aterrorizadas pela ideia de sermos obrigadas a viver do trabalho sexual, como Grabiela Monelli que cometeu suicídio em 2013 justamente por isso.


Identificar-se como mulher estaria fácil demais?

Uma reclamação constante de Rowling ao longo do texto é que estaria ‘fácil demais’ para uma mulher trans atualmente identificar-se como mulher.

Tomarei como referência a política que existe aqui no Brasil. Segundo decisão do STF de 2018 [8], pessoas transgêneras podem alterar o nome e o sexo no registro civil por autodeclaração diretamente no cartório. Para isso, a pessoa deve levar uma série de documentos e assintar um termo que diz que a alteração não pode ser revertida, a não ser por decisão judicial.

J. K. Rowling afirma que a política de autodeclaração da identidade de gênero permitiria aos homens facilmente identificarem-se como mulheres. Não parece ser o caso. Não ouvi falar de nenhum caso de um homem que tenha usado essa decisão do STF para fins maliciosos. Se um deles fizesse isso, seria obrigado a carregar documentos que dizem que ele é uma mulher para o resto de sua vida, a não ser que se dispusesse a entrar em um tribunal para reverter a decisão. Neste caso, teria de se explicar para o juiz.

Não parece terrível que um homem tenha que explicar para o juiz que ele é mesmo um homem? Sim, isso é terrível. Felizmente, as pessoas trans do Brasil não têm mais de passar por isso. Mesmo assim, para muitas das travestis no Brasil, o processo de alteração de nome e sexo no registro civil ainda é muito difícil.

Já relatei, por exemplo, que a maioria delas exerce trabalho sexual. Outros problemas muito frequentes são o analfabetismo e a falta de acesso à Internet. Ora, para alterar o nome e o sexo no registro civil, é necessário retirar alguns documentos pela Internet que dizem respeito à nossa ficha criminal e a processos judiciais em andamento. Isso significa que, para fazer essa alteração, temos de ter nossa ‘ficha limpa’.

Entretanto, como eu disse, a maioria das travestis têm passagem pela polícia. São criminalizadas por serem prostitutas, por usarem drogas, por se defenderem de uma violência (a polícia nunca acredita que a travesti é a vítima), por crimes de seus companheiros, etc. E veja só, uma vez tendo passagem pela polícia, elas automaticamente perdem o direito de terem sua identidade reconhecida! Não é absurdo?

Ainda mais absurdo que isso é que a maioria delas precisa de ajuda de uma assistente social para conseguir alterar seu registro, mesmo quando não tem uma ficha criminal nem processos judiciais contra ela.

Mas, para J. K. Rowling, isso não é o bastante. Ela defende que nós tenhamos de passar por um longo processo judicial se nós quisermos ter nossas identidades reconhecidas. Se, para mim, que tenho um diploma de pós-graduação, a ideia de ter de passar por um processo judicial é assustadora, imagine para uma travesti analfabeta que frequentemente sofre violência da sociedade e da polícia e que nunca teve acesso a um emprego formal com carteira assinada.

Por que Rowling quer tornar a vida delas mais difícil do que já é?


Ser contra nossos direitos é solidariedade?

Por um lado, Rowling afirma solidarizar-se com a violência da qual nós, mulheres trans, somos vítimas:

“Assim como em relação a qualquer sobrevivente de abuso doméstico e assédio sexual que eu conheço, eu não sinto nada além de empatia e solidariedade com as mulheres trans que foram abusadas por homens.”
“Like every other domestic abuse and sexual assault survivor I know, I feel nothing but empathy and solidarity with trans women who’ve been abused by men.”

Por outro, Rowling se opõe a todas as políticas públicas que foram conquistadas por décadas de luta pelas pessoas trans, pelo simples fato de que todas elas começam pelo reconhecimento social e legal da nossa identidade de gênero.

Seria muito estranho se Rowling, por exemplo, dissesse que se solidariza com o racismo do qual pessoas negras são vítimas e, ao mesmo tempo, defendesse as leis de apartheid. Ou se dissesse que se solidariza com o preconceito e a dificuldade vividas pelas pessoas com deficiência, mas se opusesse às leis e políticas de acessibilidade. Ora, da mesma forma, vejo a ‘solidariedade’ manifesta pela Joanne Rowling como mera formalidade.

Rowling afirma se sentir ofendida ao ser chamada de TERF – explicarei abaixo o significado do termo.

“Imediatamente, ativistas que claramente acreditam serem boas, gentis e progressistas infestaram minha linha do tempo, assumindo que têm o direito de policiar meu discurso, me acusar de ódio, me chamar com termos misóginos e, acima de tudo – como qualquer mulher envolvida nesses debates saberão – TERF”.
“Immediately, activists who clearly believe themselves to be good, kind and progressive people swarmed back into my timeline, assuming a right to police my speech, accuse me of hatred, call me misogynistic slurs and, above all – as every woman involved in this debate will know – TERF.”

TERF é uma sigla que significa ‘Trans-Exclusionary Radical Feminist’ (Feminista Radical Trans-Excludente). Mas o que há de ofensivo nesse termo, que foi inventado por uma sufragista, uma mulher cis, a Ethel Smyth [9]?

Esse adjetivo diz apenas que a pessoa em questão defende a exclusão de pessoas trans. É exatamente isso que J. K. Rowling faz em quase todo o seu texto – à exceção dos trechos em que ela diz formalmente se solidarizar com as pessoas trans, quase como um alívio de consciência.

O termo TERF surgiu justamente porque, na época, grande parte das feministas radicais não era a favor da exclusão de pessoas trans. A defesa feita por algumas feministas radicais de excluir as mulheres trans dos eventos feministas e até das Paradas do Orgulho Gay dividiu águas dentro do movimento feminista radical e causou até mesmo confrontos físicos [10].

Tenho certeza que pessoas racistas consideram ofensivo quando são chamadas de racistas e que aquelas que têm preconceito contra pessoas com deficiência também se ofendem ao serem caracterizadas como capacitistas. A reclamação de Joanne Rowling de se sentir ‘ofendida’ ao ser chamada de ‘TERF’ não gera em mim nenhuma simpatia. É bizarro ela explicitamente defender a exclusão de pessoas trans e, ao mesmo tempo, criticar que isso seja dito.

Não tenho solidariedade em relação a tal ofensa da mesma forma que, no fundo, Rowling não tem solidariedade com a transfobia da qual nós somos vítimas, uma vez que se opõe aos nossos direitos mais básicos. Se ela acha ofensivo que alguém diga que ela é trans-excludente, isso tem uma solução muito simples: basta que ela deixe de ser… trans-excludente.


Referências

[1] https://www.jkrowling.com/opinions/j-k-rowling-writes-about-her-reasons-for-speaking-out-on-sex-and-gender-issues/

[2] https://twitter.com/jk_rowling/status/1269382518362509313

[3] http://www.revistalatinoamericana-ciph.org/wp-content/uploads/2018/02/RLCIF-3-Entrevista-com-Indianara-Siqueira.pdf

[4] https://www.huesped.org.ar/noticias/informe-situacion-trans/

[5] https://www.justica.gov.br/news/resolucao-define-novas-regras-para-acolhimento-da-comunidade-glbt-em-unidades-prisionais

[6] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/03/26/Onde-trans-e-travestis-devem-ficar-quando-s%C3%A3o-presas

[7] ‘Doxxing’ é a prática de pesquisar e divulgar informações pessoais.

[8] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386930

[9] https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/nov/29/im-credited-with-having-coined-the-acronym-terf-heres-how-it-happened

[10] Ver, por exemplo, o relato de Robin Morgan: http://transadvocate.com/that-time-terfs-beat-radfems-for-protecting-a-trans-woman-from-assault_n_14382.htm