terça-feira, 20 de outubro de 2015

Manifesto sobre o crescimento do feminismo radical

As opressões dividem o movimento. Um exemplo explícito disso é a tese, defendida de forma velada ou aberta, que existe um antagonismo entre a luta das pessoas trans e a luta das mulheres. O que mais me assusta é que o feminismo radical está crescendo justamente a partir dessa tese.

Transfobia, uma ideologia a serviço da classe dominante

Eu tenho acordo com várias das teses feministas radicais, aliás, mais acordo do que tenho com a teoria queer. Por exemplo, explicando de forma bem rasa, é óbvio que o machismo estrutural (ou o patriarcado) surgiu na sociedade para que os homens (“cis”) pudessem controlar a reprodução e até a própria vida das mulheres (“cis”). Entretanto, cabe aqui dizer que, desde o surgimento da propriedade privada, ela foi proibida para pessoas “trans” (ou seja, que assumiam papel de gênero oposto ao sexo biológico, inclusive no próprio nome). Estas ficaram restritas aos espaços religiosos (em especial as mulheres trans, que normalmente eram sacerdotisas que cultuavam as deusas). Mais tarde elas também foram expulsas destes para ficarem restritas à prostituição.

É neste ponto que fica evidente o caráter reacionário da transfobia enquanto ideologia da classe social dominante. As pessoas trans são vítimas do mesmo machismo que atinge as mulheres em geral, mesmo que de forma distinta. Os homens trans são frequentemente vítimas de estupros corretivos dentro da própria família. Para terem sua identidade reconhecida, são obrigados pela sociedade, principalmente pela medicina, a terem uma postura vista como de “macho”, o que significa reproduzir o machismo ou mesmo “brigar como homem” (o que os expõe à violência). As mulheres trans e as travestis, por sua vez, são constantes vítimas de objetificação sexual, fetichização, exotificação, assédios e estupros.

A restrição dos direitos mais básicos das pessoas trans (direito à educação, ao emprego, ao uso dos banheiros públicos, ao próprio nome, à vida) servem à manutenção do sistema. Ela serve muito à medicina, que pode vender o acesso a esses direitos através de uma valiosíssima mercadoria: o processo de transição. Esse processo, que deveria ser um direito, tem o mesmo preço de uma casa própria. Também aos fundamentalistas religiosos, que ganham muito poder político e econômico a partir da LGBTfobia. E, evidentemente, também é necessária para a manutenção do machismo.

Quem defende a "reforma" dos gêneros?

Este cartaz, criado por feministas radicais, mostra a
visão que os direitos das mulheres (cis) são "coletivos",
"materialistas" e "revolucionários" enquanto
os direitos das pessoas trans são "individualistas",
"idealistas" e "reformistas".
O feminismo radical afirma lutar pelo fim dos gêneros. Por conta disso, muitas feministas radicais afirmam que defender o direito à identidade de gênero tem um caráter reacionário porque supostamente se opõe ao fim dos gêneros, propondo apenas uma "reforma".

Não devemos ter fetiche pelo gênero. O marxismo revolucionário sempre defendeu a necessidade de destruir todas as instituições que servem à manutenção do status quo e de construir uma nova sociedade que não tenha nenhum espaço pra qualquer tipo de opressão e exploração. Por outro lado, é um tremendo equívoco tentar defender que a revolução é antagônica à luta por reformas. Se somos pelo fim da exploração e do trabalho assalariado, isso nos impede de lutar por melhores salários? Ora, a história demonstra o contrário: revoluções não acontecem porque as trabalhadoras e trabalhadores querem o fim dos salários, mas sim porque querem melhores salários, porque querem pão, paz e terra.

Não é absurdo que uma pessoa de esquerda defenda que não devemos lutar pelos direitos nem por melhores salários, mas por conselhos populares e pelo poder? Não é absurdo que essa pessoa diga que lutar por melhores salários é reacionária porque ajuda a manter o trabalho assalariado? Ora, é igualmente absurdo que alguém defenda que não devemos lutar pelo direito ao nome social e à identidade de gênero, mas sim pelo fim do gênero.

Entretanto, o movimento feminista (inclusive a vertente radical) luta e sempre lutou por reformas como direito ao aborto, que o trabalho doméstico não seja restrito às mulheres, por medidas de punição à violência machista e proteção às vítimas (no sentido da lei Maria da Penha). Não há absolutamente nenhuma diferença de caráter entre essas medidas e as medidas defendidas pelo movimento trans: todas elas denunciam as diferenças de gênero na nossa sociedade e propõem medidas concretas para combatê-las.

Ainda mais absurda é a tese que as demandas do movimento trans são individualistas. Se o direito ao aborto é social, por que o direito ao próprio nome seria individual?

Teoria queer versus movimento trans 

Pichação de uma feminista radical transfóbica num
banheiro feminino da Unicamp.
Contra o que (ou quem) elas estão lutando?
Muitas feministas radicais afirmam que o movimento trans é pós-moderno e que lutam contra isso. Tal afirmação é absurda. Ora, foram os movimentos de travestis e transexuais na América Latina que lutaram e conquistaram a aprovação de leis de identidade de gênero no Uruguai e na Argentina, leis estas que, na prática, defendem a desmercantilização do direito à identidade de gênero, tornando-a pública, gratuita e por autodeclaração. A partir dessa lei, o direito à mudança do nome e do sexo no registro civil e o acesso ao processo de transição não depende de aprovação médica. Enquanto isso, a Judith Butler, teórica queer mais conhecida, sugere que as pessoas tenham uma performatividade de gênero que rompa com os padrões em vez de lutar por reformas.

A teórica tem um mérito: ter elaborado uma teoria feminista (e também LGBT) que defende o direito à identidade de gênero. Suas elaborações, entretanto, não servem à luta política. Butler, assim como Foucault, não só nega a possibilidade de uma revolução social que visa eliminar as estruturas opressoras da sociedade, mas nega inclusive a possibilidade de reformas. A luta pelos direitos das pessoas oprimidas é negligenciada. O único tipo de luta política defendida pelo foucaultianismo são as formas de resistência próprias dos grupos sociais oprimidos (como uma "performatividade de gênero paródica"), sem qualquer tipo de organização coletiva que pense na transformação da sociedade como um todo.

Muito pelo contrário. A própria construção das frases nos livros dessa autora é feita de forma que a leitora não saiba exatamente o que aquela defende. Uma grande proporção das suas frases são perguntas. Entre as demais frases, várias delas começam com "Considere que..." ou "Alguém poderia sugerir que...". Dentro da esquerda, isso tem um nome: centrismo. Aliás, esse é o centrismo do mais absurdo, aquele que embarca na onda pós-moderna que afirmar qualquer coisa é "produzir verdades" e que isso é moralmente ruim. Ora, um movimento não pode sequer existir sem afirmar que existem injustiças no mundo e sem afirmar as medidas concretas que são necessárias para combater as desigualdades.

Não é a teoria queer, nem qualquer teoria pós-moderna que leva o movimento trans a lutar por seus direitos. Pelo contrário, são suas próprias condições de vida. Sendo assim, é o cúmulo da contradição que algumas feministas radicais se oponham politicamente aos direitos das pessoas trans em nome de um suposto combate à teoria queer. Não é contra nenhuma teoria que as feministas radicais transfóbicas estão lutando, mas sim contra nosso direito à existência.

domingo, 18 de outubro de 2015

Por que somos feministas marxistas?

[Texto publicado originalmente em https://feminismosemdemagogia.wordpress.com/2015/10/16/por-que-somos-feministas-marxistas/]


Nós somos feministas marxistas. Para nós, a luta contra todas as opressões precisa estar ligada à luta contra o capitalismo e vice-versa. A exploração e as diversas formas de opressão estão fortemente ligadas entre si. Por isso, não é possível acabar com qualquer forma de opressão nesse sistema que é fundamentado na exploração humana.

No sistema capitalista, não é o quanto você trabalha que determina o quanto você ganha. Isso é fundamentalmente verdade nos sistemas econômicos de muitas das sociedades nativas da América e da África, por exemplo. No nosso sistema econômico, pelo contrário, existe uma minoria que não recebe pelo próprio trabalho, mas sim pelo trabalho alheio.
É um absurdo lógico considerar que o trabalho de pessoas como Eike Batista, por exemplo, valha dezenas de milhares vezes mais que o trabalho de uma faxineira terceirizada. Entretanto, Eike Batista recebe dezenas de milhares vezes mais que ela porque não recebe pelo próprio trabalho e sim pelo trabalho alheio.

As opressões não surgiram no sistema capitalista. Entretanto, os patrões, que têm o interesse de garantir o maior lucro possível, se aproveitam da existência de setores oprimidos para pagar menos. Funciona assim: se o patrão precisa de alguém pra fazer faxina, pra quê ele vai pagar um bom salário e oferecer boas condições de trabalho se tem muitas mulheres na periferia (a maioria negras) que aceitam um salário baixo? Pagando um salário menor e oferecendo condições piores, ele lucra mais e sua empresa tem maior competitividade no mercado.

Existem vários métodos opressores que os patrões utilizam para lucrar mais. Por exemplo, demitindo trabalhadoras que provavelmente vão engravidar e não garantindo creches para as mães. Outro exemplo é o assédio moral, que é muito comum acontecer com todas as pessoas oprimidas (inclusive LGBTs, por exemplo), impondo pra elas um ritmo de trabalho mais acelerado.

No caso das pessoas trans, em especial das travestis, essa realidade se torna muito dramática. Essas são tão repudiadas que dificilmente encontram emprego no mercado formal, e, quando encontram, é nos trabalhos precarizados e são, muitas vezes, vítimas constantes de assédios. A maioria das pessoas não costuma ver travestis no seu dia a dia, mas tem pelo menos quatro lugares onde é possível encontrar muitas travestis: nas empresas de telemarketing (onde a vasta maioria é negra, feminina e LGBT), nos sites pornográficos, nas zonas de prostituição e nas prisões.

Além de tudo isso, no capitalismo, poder econômico também significa poder político. Os políticos que vencem as eleições são aqueles que recebem mais dinheiro para sua campanha política. Quem dá esse dinheiro são as empresas. Não é à toa que os políticos são quase todos homens, heterossexuais, brancos, cisgêneros, conservadores, LGBTfóbicos, machistas e racistas, afinal, eles refletem as características sociais e os interesses daqueles que bancaram financeiramente suas campanhas. Não é de se estranhar que exista uma grande bancada que defende os interesses do agronegócio, dos fundamentalistas religiosos e de diversos outros setores empresariais, sendo que não existe nenhuma bancada de mulheres e de pessoas negras, que são a vasta maioria da população?

Por tudo isso, na nossa opinião, só é possível acabar com as opressões se o sistema capitalista tiver um fim e der lugar para um sistema em que as pessoas mais exploradas e oprimidas tenham voz e poder real de decisão. Só é possível chegar a uma sociedade assim se houver uma revolução realizada pelas trabalhadoras e trabalhadores e que tenha a participação ativa dos diversos setores oprimidos da sociedade, o que só pode acontecer se toda forma de opressão for combatida. É isso que nós consideramos uma sociedade socialista e é por isso que lutamos.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

A violência policial e a criminalização das travestis

Daniele, travesti encarcerada no Presídio do Róger
Após um golpe de Eduardo Cunha, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar, em primeiro turno, a redução da maioridade para 16 anos para vários crimes. Acontece que a lei não funciona da mesma forma para todo mundo. Vivemos numa sociedade racista, em que as pessoas negras são tratadas como criminosas; vivemos numa sociedade machista, que culpabiliza as mulheres pela violência que sofrem; vivemos numa sociedade LGBTfóbica, em que os crimes de ódio contra LGBTs são naturalizados; vivemos numa sociedade travestifóbica, em que as travestis são criminalizadas por suas condições de vida.

Sem família, sem escola, sem emprego

Foi feita uma pesquisa com 498 pessoas trans de diversas regiões da Argentina [1]. O estudo revela dados de antes e depois da aprovação da Lei de Identidade de Gênero. Os dados apresentados se referem a antes da aprovação, uma vez que no Brasil essa lei (a Lei João Nery) não foi aprovada. Além disso, vou seguir a convenção de que travestis também são mulheres trans, como está na pesquisa.

O estudo afirma (p. 10):
São vários os relatos de situações de discriminação no âmbito familiar que desde a tenra idade tem levado à expulsão de suas casas ou migração a outras cidades. Em particular, as dificuldades com a família começam no momento em que as pessoas trans decidem viver conforme sua identidade de gênero. "A maioria de nós fomos expulsas de nossas casas ou fugimos com 11 ou 12 anos porque não aceitavam que nos vestíssemos de mulher."
Como consequência, 42% das mulheres trans (incluindo as travestis) e 43% dos homens trans foram isolados de familiares e amigos devido à sua identidade.
Foram mencionadas várias situações de exclusão e discriminação no âmbito educacional. As ridicularizações, o maltrato, o desamparo e a burocracia administrativa vinham tanto dos colegas quando do pessoal docente e diretores. [...] "Uma professora me deu um tapa porque queria que eu fosse jogar bola". Assim, são vários os testemunhos que relatam situações de abuso sexual e agressão física nos banheiros e da falta de ação por parte do pessoal docente para impedir essa situação. Essas experiências tiveram como consequência o abandono do sistema escolar majoritariamente no momento em que as pessoas trans começam o processo de construção de sua identidade. [...]

"Se você era mariquita, os colegas roubavam suas coisas, rasgavam suas roupas, lhe pegavam no recreio... Mijavam em cima de você... E nos banheiros... Os colegas lhe obrigavam a ter relações com eles e você fazia isso por medo".
Discriminação contra as meninas trans na escola (p. 28)
Discriminação contra os meninos trans na escola (p. 47)

21% das mulheres trans (p. 29) e 38% dos homens trans (p. 48) afirmaram que foram ridicularizados ou agredidos pelos professores. 21% das mulheres e 25% dos homens trans foram proibidos de usaram o banheiro. 34% das mulheres e 26% dos homens não tiveram seu nome social respeitado.

Como consequência de toda essa discriminação, 49% das mulheres e 47% dos homens abandonaram o sistema educacional. Entre as mulheres trans menores de 18 anos, metade delas não estava estudando.

O acesso ao mercado de trabalho formal também é bastante precário. Existem inúmeras barreiras para o acesso ao mercado de trabalho formal, sendo que este fica restrito a subempregos (como empregos terceirizados ou em empresas de telemarketing). 55% das mulheres (p. 32) e 52% dos homens trans (p. 51) afirmaram que tiveram um emprego negado. 25% das mulheres e 41% dos homens tiveram que deixar um emprego.

Discriminação contra os homens trans no trabalho (p.50)

Isso tudo faz com que a maioria das mulheres trans (incluindo as travestis) seja empurrada para a prostituição.

Pesquisa sobre quantas mulheres trans vivem ou já viveram em situação de prostituição (p. 31)

Mesmo após a aprovação da Lei de Identidade de Gênero, 61% das mulheres trans argentinas ainda estão em situação de prostituição.

A criminalização das travestis na prostituição


Segundo a pesquisa (p. 36):
A maioria das mulheres trans entrevistadas (79,5%) já foram detidas pelas forças de segurança em algum momento de suas vidas. Destas (n=355), 8 em cada 10 detenções foram por estar exercendo trabalho sexual e 6 em cada 10 por averiguação de antecedentes.
O quadro abaixo mostra as discriminações sofridas por essas mulheres por parte das forças de segurança enquanto estavam detidas.

Violência policial contra as mulheres trans detidas (p. 37)


O estudo define como "abuso sexual" como uma relação sexual feita por um policial contra a vontade da vítima. Ou seja, é sinônimo de estupro. Isso significa que 43% das mulheres trans que foram detidas foram estupradas por um policial (antes da aprovação da lei). Ou seja, pelo menos 34% das mulheres trans já foram estupradas pela polícia. Isso nos leva a suspeitar que um motivo comum para os policiais deterem as travestis é para que eles possam abusar sexualmente delas. De fato, alguns relatos mostram isso: algumas travestis relatam que não reagiram ao estupro por medo de serem presas, outras são abusadas dentro das prisões pelos policiais ou pelos outros presos.

Violência policial contra os homens trans detidos (p. 55)

Para suportar o sofrimento, em especial na prostituição, muitas travestis recorrem ao uso de drogas. Em um estudo feito em Uberlândia, MG [2] 85,5% das travestis em situação de prostituição afirmaram usar álcool e 72,7% afirmaram usar outros tipos de drogas, sendo cigarro comum, cocaína e maconha as mais frequentes. Quando questionadas se elas são ou não dependentes, a maioria delas afirma que, se um dia saírem da “batalha” (isto é, do trabalho sexual) deixariam de usar drogas. Também existem muitas travestis que vendem drogas como uma alternativa de renda. O uso frequente de drogas e também a venda por parte das travestis criam mais uma forma de chantagem por parte da polícia e também as leva a serem criminalizadas.

Como consequência disso, a concentração de travestis nas prisões é maior do que na sociedade. Estima-se que na sociedade brasileira existe cerca de uma pessoa trans a cada 2500 habitantes, a grande maioria delas travestis [3]. Entretanto, no Presídio do Róger, existe uma travesti para cada 128 presos. No  Presídio Central de Porto Alegre, existem 32 travestis e 4 mil presos no total, ou seja, uma travesti para cada 125 presos. É raro encontrar uma travesti numa universidade, mas é muito comum encontrar mais de uma travesti numa penitenciária.

Como a mídia distorce os fatos


Valéria, travesti da Zorra Total, retratada como
promíscua e histérica, o estereótipo de uma travesti
Em um bairro ou uma rua onde existem muitas travestis prostitutas, é muito comum aparecer algum homem de carro para ridicularizar, xingar, brigar ou agredir as travestis. Nestes casos, as travestis reagem: xingam, brigam, agridem de volta. É assim que elas se defendem. Afinal, elas precisam se defender, caso contrário não vão conseguir atender os clientes. Frequentemente atiram pedras nas travestis.


A mídia, entretanto, sempre mostra as travestis como se fossem barraqueiras e encrenqueiras sem motivo nenhum. Como se nós, travestis, fôssemos "naturalmente" promíscuas, violentas, loucas, histéricas, criminosas. Em outros casos, a mídia nos mostra como se fôssemos piada. Isso acontece no Zorra Total e na Praça é Nossa, mas também aparece em muitas notícias. Por mais absurdo que isso seja, muitas travestis que foram vítimas de clientes que não quiseram pagar ou então vítimas de estupro são mostradas nas notícias como se o caso fosse uma piada!

É verdade que as travestis, muitas vezes, abusam da violência e reproduzem o preconceito, mas a mídia quase sempre distorce a realidade e mostra as travestis como sendo única e exclusivamente como piadas ou como criminosas, raramente são retratadas como vítimas.

Como o governo trata as travestis?

Como o orçamento do governo federal é gasto
Diante de toda essa realidade, o governo federal fez vários ataques aos direitos das pessoas trans. A começar pelas MPs 664 e 665 da Dilma, que atacam os direitos trabalhistas das pessoas que têm mais dificuldade de acesso ao emprego e menor estabilidade. Esse é o caso das pessoas trans, que estão nos postos mais precarizados, quando não estão fora do mercado de trabalho formal. Outro ataque é o PL 4330, que visa expandir a terceirização, o que significa uma precarização ainda maior do emprego. Além disso, ainda foram realizados vários cortes na educação e na saúde. Isso tudo é o chamado "ajuste fiscal".

A bancada fundamentalista, que também defende o "ajuste fiscal" quer transformar as LGBTs no bode expiatório para todos esses ataques. É por isso que o Feliciano criou um projeto de lei que visa revogar uma portaria lançada recentemente defendendo os direitos básicos das pessoas trans na educação: o direito ao nome social, uso dos uniformes e dos banheiros conforme a identidade de gênero. É por isso que a bancada fundamentalista alterou a lei que criminaliza o feminicídio para que as mulheres trans não fossem contempladas por essa lei. É por isso que estão retirando e até proibindo os debates sobre gênero, identidade de gênero e orientação sexual nas escolas. Para ganhar o apoio do povo, os fundamentalistas estão fazendo uma campanha de difamação contra as travestis, como a Verônica, a Viviany, entre outros, tudo isso em nome do combate a uma suposta "ideologia de gênero".

O projeto de redução da maioridade penal também tem esse objetivo. É evidente que o plano de ajuste fiscal vai causar muitas revoltas na população. Sendo assim, seja com a redução da maioridade penal, proposta pelos fundamentalistas, seja aumentando o tempo de reclusão dos jovens na Fundação Casa, proposta do PSDB e defendida pelo PT, tudo isso tem um único objetivo: garantir que o plano de ajuste fiscal seja aplicado e que todo o caos social gerado por ele seja "contido" não com mais investimento nas áreas sociais, mas sim com o encarceramento da juventude.

- Aprovação da Lei João Nery já!
- Não à redução da maioridade penal!
- Fora Eduardo Cunha!

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Ele ou ela? As gallae na Antiga Roma (texto do séc. I a.C.)

Estátua de Átis, em uma dança
num ritual de adoração
O poema abaixo, de Cattulus, século I a.C., é uma estória mitológica que envolve uma tradição sacerdotal na Frígia, no território romano. O poema mostra que tanto o gênero quanto a transgeneridade variam ao longo da história e mudam, em especial conforme as condições socioeconômicas da época, mas também de acordo com a ideologia dominante.

O texto foi traduzido de duas fontes (1, 2), com algumas diferenças que serão aqui ignoradas (considero que a 2 seja mais precisa, mas também mais confusa).

[Veja também o texto "Não fale de mim como se eu fosse uma mulher!, sobre um homem trans no século II].

Cattulus, Poema 63

Trazido em sua barca ágil através de oceanos profundos
Átis, quando ansiosamente alcançou o bosque da Frígia com seus pés ligeiros
e entrou nas moradas da deusa, sombrias, coroadas pela floresta;
lá, aguilhoado por uma furiosa loucura, desnorteado na mente,
ele arrancou de si com uma afiada pedra sílex a carga de seu membro.
Então, quando ela sentiu que os membros dela perderam sua masculinidade,
ainda com sangue fresco umedecendo a face da terra,
rapidamente ela pegou o leve tamboril com mãos brancas,
seu timbre, Cibele, seus mistérios, Mãe,
e agitando com os dedos moles o couro de boi oco
assim começou ela a cantar para suas companheiras, trêmula:
Estátua de uma galla
ou um gallus
"Venham vocês, gallae, vão para as florestas da montanha de Cibele juntas,
vão juntas, rebanho peregrino da senhora de Díndimo
que rapidamente buscam casas alheias como exiladas,
seguidas por minhas regras conforme eu as guio em meu trem,
suportaram a salmoura que flui rápido e os mares selvagens,
e descarregaram de seus corpos a aversão absoluta ao amor,
alegrem o coração de sua Senhora com rápida peregrinação.
Deixem o atraso enfadonho afastado de suas mentes; andem juntas, sigam
para a casa frígia de Cibele, para as florestas frígias da deusa,
onde o barulho dos címbalos soarem, onde os tamboris reecoarem,
onde o flautista frígio sopra uma nota profunda em seu caniço curvo,
onde as ménades com suas coroas de hera atiram suas cabeças violentamente,
onde com gritos estridentes elas chacoalham emblemas sagrados,
onde aquela comitiva peregrina da deusa está afeita a vaguear,
até onde é justo para nós acelerar com danças vivas."

Tão logo Átis, mulher, mas não de verdade, cantou assim para suas companheiras,
os foliões, de repente, com línguas tremulantes, gritaram alto,
os tamboris leves soam novamente, os címbalos ocos se colidem novamente,
rapidamente o tumulto, com seus pés apressados, vai ao verde Ida.
Então também Átis, frenética, ofegante, incerta, arfante,
sua líder, acompanhada pelos tamboris, peregrina pelas florestas escuras,
assim como uma novilha indomada correndo à parte do jugo de seu próprio fardo.
Rapidamente as gallae seguem sua líder com seus pés ligeiros.
Então, quando elas ganharam a case de Cibele, fatigadas e exaustas,
depois de muito trabalho elas descansam sem pão;
o sono pesado cobre seus olhos com o cansaço que as abate,
a loucura delirante de suas mentes se partem em sono leve.
Mas quando o sol com seus olhos radiantes de sua face dourada
iluminaram o céu límpido, das terras firmes, o mar selvagem,
e afugentou as sombras da noite com corcéis impacientes renovados, cavalgando,
então o Sono fugiu de Átis despertado e rapidamente se foi;
a deusa Pasitea recebeu ele (sic) em seu seio tremulante.
Então, depois do sono leve, livre da loucura violenta,
assem que o próprio Átis reviu em seu coração seu próprio dever,
e viu com a menta clara que mentira havia perdido e onde ele estava,
com a mente afluindo novamente ele se acelerou de volta para as ondas.
Ali, olhando sobre os mares vazios,
e então dirigiu-se com lamentos o país dela com voz chorosa:

"Ó, meu país que me deu vida! Ó, meu país que me gerou!
A quem deixo, toda desgraçada! Como servas fugitivas deixam seus mestres,
eu trouxe meu pé para as florestas de Ida,
para viver entre as neves e as tocas congeladas das feras selvagens,
e visitar no meu frenesi todas as tocas de espreita,
- Onde então ou em que região eu penso ser teu lugar, ó meu país?
Meus olhos há muito perdidos contemplam a ti
enquanto por um curto espaço minha mente fica livre da frenesi selvagem.
Eu, devo eu ser levada para longe de minha própria casa, para dentro dessas florestas?
Do meu país, dos meus bens, meus amigos, meu país, devo eu ficar longe?
Ausente do mercado, dos campos de batalha, do hipódromo, do campo de jogos?
Infeliz, de coração todo infeliz, de novo, de novo tu deves reclamar.
Pois que tipo de figura humana existe e que eu não poderia ser?
Eu, para ser uma mulher -- eu que era um rapaz, um jovem, um menino,
eu era a flor do campo de jogos, eu era uma vez a glória do palestra;
eram minhas as portas lotadas, meus eram os calorosos limiares,
minhas as guirlandas floridas que enfeitavam minha casa,
quando eu estava para deixar meu aposento ao raiar do dia.
Eu, como devo eu ser chamada agora? Uma serva dos deuses, uma ministra de Cibele?
Devo ser uma ménade, parte de mim, um homem estéril devo eu ser?
Eu, devo eu habitar em regiões cobertas de neve do verdejante Ida?
Passar a minha vida sob os altos cumes da Frígia,
com a corça que assombra a floresta, com o javali que percorre a floresta?
Agora, agora eu lamento meu dever, agora, agora eu gostaria que isso fosse desfeito."

Assim que estas palavras foram emitidas dos lábios rosados,
trazendo uma nova mensagem para as orelhas dos deuses,
então Cibele, afrouxando o laço apertado de seu leão,
aguilhoando aquele indivíduo do rebanho que ia para a esquerda, fala deste modo:
"Vem agora", diz ela, "venha, vai ferozmente, deixe a loucura caçá-lo
manda-o, portanto, pelo golpe da loucura, apressar-se para as florestas de novo
aquele que seria livre demais e fugiria da minha soberania.
Vem, chicoteia para trás com tua cauda, suporta tua própria flagelação,
faz tudo ao seu redor ressoar com um rugido retumbante,
sacode ferozmente sua juba avermelhada com seu musculoso pescoço."
Assim diz a furiosa Cibele, e com sua mão desprende o laço.
O monstro atiça sua coragem e desperta a fúria de seu coração;
ele acelera, ele ruge, com passos largos ele quebra o matagal.
Mas quando ele veio às águas estendidas da costa branca reluzente,
e viu o gentil Átis pelos terrenos planos do mar,
ele corre na direção dele - Átis se voa loucamente para a floresta selvagem
lá para todo o resto de sua vida ele foi uma serva.
Deusa, grande deusa, Cibele, senhora de Díndimo,
esteja toda tua fúria longe de minha casa, ó minha rainha
que outros conduzam a ti em frenesi, outros levem tu à loucura.

Quem eram as gallae?

Relevo funerário de um archigallus
As gallae eram sacerdotisas que adoravam a deusa Cibele, conhecida como "Mãe dos Deuses", deusa da natureza, e Átis, seu/sua cônjuge. Uma sacerdotisa era chamada de galla (feminino) em vez de gallus (masculino) para denotar que a castração já foi realizada. O poema mostra como a galla era destinada ao papel de sacerdotisa, como uma "falsa mulher", para o resto de sua vida. Elas usavam vestes femininas, cabelos longos e eram castradas [Antologia Grega, 219, 220, 234], além de usarem pingentes, brincos e maquiagem pesada [fonte]. Átis é sempre retratado como uma divindade inferior a Cibele, como no poema, em que Átis é sacerdote ou sacerdotisa de Cibele. A mitologia sobre a castração de Átis era usada como justificativa para a castração no ritual de adoração de Cibele e Átis.

Cibele era uma divindade oficial do Império Romano que era bastante adorada, mas apenas os "galli" eram celebrantes oficiais, reconhecidas e financiadas pelo império desde 204 a.C. Apesar disso, os cidadãos romanos eram proibidos de se tornarem gallae, uma vez que elas eram vistas como "homens" que deliberadamente abriam mão de sua fertilidade e de sua masculinidade. O Império as via como maus exemplos para os cidadãos. As gallae eram frequentemente chamadas de pathicus (lascivo), mollis (mole, delicado) ou cinaedus (termo usado para homens adultos com comportamento afeminado ou que gostavam de ser penetrados). Apenas estrangeiros (que eram vistos como inferiores aos romanos) poderiam exercer este papel.

No final do século I, a castração foi proibida pelo império. Mais tarde, o cristianismo se utilizou dos galli para demonizar a religião pagã pela prostituição feminina e pela "sodomia" (sexo anal), como parte da campanha ideológica para a criminalização da "sodomia" (tornou-se crime um homem ser penetrado por outro no século IV, no século VI um homem que penetrasse outro homem também passou a ser considerado criminoso).

O jurista romano Ulpiano descreveu 5 tipos de vestes romanas:
  1. Vestimenta virilia, a roupa do paterfamilias, do pai e chefe da família;
  2. Muliebria, a roupa da materfamilias, a mãe da família;
  3. Puerilia, a roupa das crianças, dos e das menores de idade;
  4. Communia, as vestes comuns usadas tanto por cidadãos como por cidadãs;
  5. Familiarica, a roupa da familia, ou seja, de servas, servos, escravas e escravos.
Um plebeu, uma mulher romana e um senador [fonte]
Ulpiano não distingue o nome dado às roupas das crianças e das servas ou servos por gênero. Apenas da mãe e do pai. Segundo Ulpiano, um homem que usa roupas femininas seria objeto de escárnio. Entre as mulheres, apenas as prostitutas usavam roupas masculinas.

Sendo assim, as vestes estavam ligadas diretamente ao papel das pessoas dentro da família e também sua classe social: o pai, chefe da família, que administrava a propriedade privada; a mãe, cujo papel era reproduzir e gerar herdeiros para as propriedades; as crianças, que eram herdeiras das propriedades (sejam meninos ou meninas); e as pessoas das outras classes (não-cidadãs), que não tinham ou que eram propriedade privada.

Qual é, portanto, o "escárnio" para um homem? Vestir uma roupa da mulher cidadã, quem não era chefe da família, que não tinha direito a administrar nem mesmo a sua própria propriedade privada (a não ser que não tivesse pai ou marido). Vestir a roupa de quem exercia o papel reprodutivo, limitada à esfera privada.

É por isso que as gallae não se viam nem eram vistas como mulheres, no máximo eram vistas como "falsas mulheres". Por mais que quisessem, por mais que tentassem, não conseguiriram exercer o papel social de uma mulher cidadã. Uma galla poderia se tornar sacerdotisa ou prostituta, mas não poderia ser uma materfamilias. Por causa disso, eu acredito que não existiam condições socioeconômicas para que a identidade transgênera pudesse existir socialmente.

[Observação: Pode ser que tenha sido possível a existência de uma identidade transgênera masculina, como a de Megillus, em cidades gregas onde a mulher poderia se tornar a chefe da família, mas acredito que, mesmo assim, eram casos isolados. Vale notar que mesmo a identidade masculina de Megillus na estória era privada, não social.]

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Somos todas Verônica

Verônica Bolina: travesti, negra e pobre. Presa sob a acusação de agredir uma vizinha durante uma briga, ela estava sendo tratada todo o tempo como se fosse homem. No dia 12 de abril, durante uma transferência de cela, houve uma briga entre Verônica e o carcereiro. Por arrancar a orelha do carcereiro com os dentes, uma série de fotos do episódio foram divulgadas. Nelas, se vê que os policiais espancaram-na, despiram-na e rasparam o seu cabelo. As imagens imagens mostram que Verônica está sem camisa e com o rosto desfigurado. Um verdadeiro retrato de uma polícia que criminaliza as travestis que vivem na periferia e o povo negro.

Texto publicado em http://www.pstu.org.br/node/21397

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Transgeneridade na ponta do lápis (crítica às teses "científicas")

Não temos muitos dados precisos sobre a população trans no Brasil. Infelizmente, o IBGE não perguntou, em seu último censo, a identidade de gênero nem o nome social das pessoas entrevistadas. Enquanto o governo do PT continua fingindo que a gente não existe, com políticas LGBTs que definham por falta de financiamento, o Congresso ataca diretamente os nossos direitos e estimula cada vez mais o ódio contra nós. Não há nenhum censo sobre a nossa realidade nesse país - e, diga-se de passagem, o mesmo pode ser dito para quase todos os países do mundo. As estimativas que encontrei, que são defendidas por diversas ONGs e instituições do país, não parecem muito confiáveis.

Felizmente, é possível encontrar algumas pesquisas e estimativas mais precisas vindas de outros países. Vamos aos números!

Estimativas da população trans

Ano passado, a Índia incluiu três opções no campo gênero: "masculino", "feminino" e "terceiro gênero". Isso foi resultado de uma decisão da Suprema Corte em reconhecimento da existência daquelas popularmente conhecidas como hijras, que são socialmente semelhantes às travestis latino-americanas. No censo, 488 mil pessoas se identificaram como pertencendo ao terceiro gênero. Isso significa que existe, no mínimo, 1 pessoa transgênera para cada 2480 pessoas na Índia (abreviadamente: 1:2480). Se a proporção de travestis no Brasil fosse a mesma, teríamos 82 mil travestis no país!

Hijras são admitidas pela primeira vez na História
no programa de pós-graduação através de um
sistema de cotas na Universidade de Nova Delhi, Índia
Entretanto, existem vários problemas nessa proporção. Primeiro, é que não são podem ser contabilizadas as pessoas que vão um dia se identificar como trans (embora seja possível calcular estimativas delas). Segundo é que a população trans é, em média, muito jovem. Além disso, acredita-se que existem pessoas transgêneras que não se identificaram no censo. Além das hijras, existem outras pessoas transgêneras na Índia que não são socialmente reconhecidas.

Uma crítica às estimativas "oficiais" se encontra no belo artigo acadêmico de Lynn Conway, que é cientista da computação e engenheira elétrica, e Femke Olyslager, também engenheira elétrica, ambas mulheres trans. Elas apontaram diversos erros cometidos pelas estimativas anteriores, porque partiam de pressupostos absurdos: por exemplo, que todas as pessoas transexuais realizam a chamada CRS (cirurgia de redesignação "sexual"). Também ignoraram que essas realizam a CRS com, em média, 40 a 45 anos, o que significa que a contagem ignora, no mínimo, metade das pessoas transexuais adultas (ou seja, aquelas que ainda irão realizar a CRS).

A partir de entrevistas feitas com cirurgiões (no ano de 2001) que realizam a CRS, elas calcularam que, entre as pessoas designadas ao sexo masculino, no mínimo 1 a cada 1300 realizaram ou vão realizar a CRS nos EUA. Isso não é um ponto fora da curva: o mesmo cálculo com dados de um estudo em Singapura (no ano de  leva à proporção de 1 mulher trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 2000 pessoas designadas ao sexo masculino, e 1 homem trans que realizou ou vai realizar a CRS a cada 5600 designadas ao sexo feminino. No Reino Unido, a proporção de mulheres trans que fizeram ou farão a CRS é 1:1900.

Aviso: Na minha opinião, não há razão para calcular a proporção de mulheres trans entre pessoas designadas ao sexo masculino. Conway e Olyslager fazem esta estimativa porque partem da concepção que a causa da transexualidade é biológica.

Transgeneridade e contexto socioeconômico


Travestis na América Latina e Hijras na Índia:
subemprego, marginalização, ausência de
emprego formal e de direitos humanos.
Quando as hijras foram questionadas a qual gênero elas pertenciam, 5% responderam "transgênero", 36% responderam "feminino" (ou seja, como mulher) e 59% responderam simplesmente "hijra". Este perfil identitário se assemelha muito ao das travestis latino-americanas. Tanto "hijra" quanto "travesti" são identidades de gênero femininas, que se apresentam através de nomes e pronomes femininos. Embora não haja estatísticas, é bastante conhecido que uma parte das travestis se identifica como mulher e outra parte se identifica simplesmente como travesti, assim como ocorre com as hijras.

No estudo feito na Argentina, 67% das pessoas trans entrevistadas eram travestis. Apenas 5,3% das pessoas não se identificava nem como travesti, nem como mulher ou homem trans (ou transexual).

Identidades das pessoas trans
entrevistadas em La Matanza, Argentina

No estudo feito nos EUA, as identidades são bem distintas. Lá são encontradas identidades de gênero não-binárias, ou seja, que não são nem exclusivamente masculinas nem exclusivamente femininas. É o caso do gênero queer e "dois-espíritos". Esta última identidade não-binária é presente em diversas tribos indígenas norte-americanas. Esse nome foi escolhido porque várias delas acreditam que a pessoa dois-espíritos carrega um espírito feminino e outro masculino. Conforme a pesquisa indica, muitas pessoas não-indígenas se identificam com o termo.

O estudo permitiu que as pessoas se identificassem com diversas identidades, mas colocou as pessoas em categorias analíticas para prosseguir no estudo.

Classificação analítica das pessoas trans entrevistadas nos EUA

De acordo com o relatório, "transgender MTF" e "transgender FTM" são sinônimos de mulher transgênera e homem transgênero, respectivamente. "Gender non-conforming" é o nome dado às pessoas que não se encaixavam nas outras duas categorias (o que inclui gêneros não-binários).

Aviso: os termos MTF e FTM são inadequados.

A institucionalidade expressa nas leis e nos livros de psiquiatria afirmam que o que diferencia a mulher transexual e a travesti é que a primeira tem repulsa por sua genitália por motivos biológicos e deseja, portanto, realizar uma vaginoplastia, enquanto a travesti não tem repulsa pela genitália. Entretanto, na pesquisa argentina, 67% das pessoas trans são travestis, enquanto, na pesquisa estadunidense, apenas 14% das mulheres transgêneras não realizaram nem desejam realizar a vaginoplastia.

Se esses gêneros ocorressem por razões biológicas, haveria alguma correspondência às travestis (tanto em subjetividade quanto em identidade) nos EUA e que ocorre com mais ou menos a mesma proporção que ocorre na Argentina e na Índia. Além disso, a presença de 13% de pessoas com identidade de gênero não-binária não encontra correspondência na Argentina. A tese de que a disforia genital tem razão biológica não se sustenta diante desses números.

A transgeneridade é, de fato, um fenômeno universal (ou praticamente universal) nas sociedades em que existe o gênero. Entretanto, a forma como ela se expressa depende das relações socioeconômicas (leia-se: sociais e econômicas) de cada sociedade. Muito provavelmente, as mulheres trans buscam uma adequação melhor do corpo porque nos EUA a inserção de pessoas trans no mercado de trabalho é maior. A busca pela cirurgia diminui a rejeição, aumenta a possibilidade de encontrar e manter um emprego, alterar os documentos, etc. Isso, evidentemente, também tem um reflexo subjetivo. No Brasil, por outro lado, o acesso à CRS é muito mais precário e burocratizado, de forma que não é costume das travestis buscarem-na. Isso também tem seu reflexo subjetivo na construção da identidade de gênero.

Utilizando os dados de Conway e Olyslager (1 a cada 2500 pessoas designadas ao sexo masculino já realizaram a CRS) com o estudo da National Task Force nos EUA (23% das mulheres transgêneras já realizaram a CRS), calculamos que, nos EUA, a proporção de mulheres trans é cerca de 1 a cada 580 mulheres, a proporção de homens trans é de 1 a cada 970 homens, a proporção de pessoas com identidade de gênero trans (ou seja, mulheres e homens trans e gêneros não-binários) é de 1 a cada 620 pessoas!

Outro estudo no Reino Unido afirmou que nesse país o número de pessoas que busca um tratamento para a "disforia de gênero" (sic) está aumentando em cerca de 15% a cada ano (que é a mesma taxa na Europa). Isso significa que a cada 5 anos, a população trans que busca tratamento na Europa dobra!

A estimativa pode ser imprecisa, mas não resta dúvida que a quantidade de pessoas trans nos EUA é proporcionalmente muito maior do que a na Índia. Todos esses dados nos levam a concluir que a existência de pessoas trans numa sociedade depende muito mais dos fatores socioeconômicos do que dos fatores religiosos e culturais. Ora, os EUA é um país majoritariamente cristão e nele os pastores fundamentalistas alimentam a aversão e o ódio às pessoas trans. A sanha transfóbica dos fundamentalistas alimenta a violência e os crimes de ódio como também a depressão e as taxas de suicídio. Os dados parecem indicar que isso leva as pessoas trans a buscarem ainda mais os tratamentos e as cirurgias para conseguir se encaixar na sociedade e evitar a violência.

A transfobia nos mata todos os dias, mas não faz com que deixemos de ser trans.

Transfobia: de norte a sul, de leste a oeste...

Em La Matanza, [2] 51% das travestis e mulheres trans responderam que sua principal atividade remunerada é a prostituição, que, na prática, é criminalizada. 85% delas afirmaram que estão ou já estiveram em situação de prostituição. Na índia, 32% das hijras afirmaram que sua principal atividade remunerada é a esmola, enquanto 21% afirmaram que é a prostituição, sendo que ambas atividades são criminalizadas. Outras 32% trabalham em uma ONG voltada para hijras ou prevenção de AIDS.

Conseguir um emprego formal é um desafio. Na argentina, [2] 44% das pessoas entrevistadas realizaram um curso de capacitação profissional, mas, dentre estas, 52% responderam que isso não as ajudou a encontrar um emprego. 72% das pessoas disseram estar procurando outra fonte de renda e, destas, 82% responderam que esta busca é dificultada por sua identidade trans.

Nos EUA, [3] a exclusão das pessoas trans do mercado de trabalho formal é menor, mas ainda assim o acesso e as condições de emprego são bastante precárias. Enquanto 7% da população está desempregada, 14% das pessoas trans também estão. Enquanto 7% da população estadunidense recebe menos que $10 mil por ano, na população trans essa proporção sobre para 15%, sobe para 28% considerando as pessoas trans latinas e para 35% entre as pessoas trans negras. 97% afirmaram terem sido maltratadas no trabalho, incluindo perseguição por parte de colegas (50%), uso repetido e proposital do pronome de gênero errado (45%), acesso negado ao banheiro correto (22%), violência física (7%) e assédio sexual (6%). 26% delas perderam o emprego por serem transgêneras e 44% não conseguiram algum emprego por serem transgêneras.

Somos todas Verônica
As chances de sofrer algum tipo de violência são grandes. Em La Matanza, Argentina, [2] 50% afirmaram terem sofrido discriminação por parte da própria família, 41% por parte de amigos, 63% dos vizinhos, 85% de pessoas estranhas na rua, 58% por parte de colegas da escola e 77% da polícia. Entre os problemas causados pela polícia, 33% afirmaram terem sofrido extorsão, ameaça, maltrato ou humilhação, 20% foram detidas arbitrariamente, 15% sofreram violência verbal, 14%, violência física, outros 14%, abuso sexual ou estupro e ainda 3% afirmaram terem sido vítimas de tortura.

O outro estudo [4] também realizado na Argentina envolvendo mais regiões diverge um pouco com respeito aos números, mas mostra a mesma realidade de marginalização, exclusão e violência.

87% das hijras [1] também afirmaram que tiveram problemas causados pela polícia. Não há dados estatísticos sobre quais problemas elas enfrentaram, mas os relatos também mostram abuso sexual e estupro. Anitha Chettiar afirma:
Dentre aquelas que eram perseguidas frequentemente [pela polícia], duas das hijras disseram que foram espancadas pela polícia e advertidas que elas não podiam pedir esmola. Uma das que foram perturbadas por causa do trabalho sexual, disse: "Eu não sou permitida de solicitar clientes para sexo. Mas muitos policiais fizeram sexo comigo", e outra acrescentou, "Os policiais não me deixam trabalhar com sexo, mas exigem sexo gratuito."
Anitha inclui outros relatos de violência policial que indicam que na Índia, a violência policial tem a mesma natureza que na Argentina.

No mundo todo, de norte a sul, de leste a oeste, impera a transfobia. E esse império vai cair.


[1] Estudo de Anitha Chettiar, publicado na International Journal of Social Science and Humanity, Vol. 5, No. 9, que foi baseado em entrevistas feitas com 63 hijras.
[2] Teste piloto realizado pelo governo argentino sobre 209 pessoas trans (principalmente travestis, mulheres e homens trans) da cidade de La Matanza.
[3] Estudo do National Center for Transgender Equality e do National Gay and Lesbian Task Force, que entrevistou 6450 pessoas trans (incluindo crossdressers e drag queens/kings) espalhadas por todo o território dos EUA. Outros arquivos sobre esse mesmo estudo podem ser encontrados aqui.
[4] Estudo sobre o impacto da Lei de Identidade de Gênero na Argentina realizado pela Asociación de Travestis, Transexuales y Transgéneros de la Argentina (ATTTA).

segunda-feira, 13 de abril de 2015

A matemática e a lógica formal no capitalismo

[Texto originalmente publicado em http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=3064]

Para se desenvolver, o sistema capitalista precisou criar transformações cada vez mais profundas sobre a matéria. A criação de máquinas cada vez mais complexas, capazes de realizar tarefas cada vez mais precisas, requer, por sua vez, um avançado conhecimento em física. Esta, para se desenvolver, apoiou-se na matemática, uma ciência que sempre se desenvolveu a partir do raciocínio lógico. Entretanto, até o final do século XIX, a lógica formal padrão era a aristotélica, um sistema lógico incapaz de desenvolver o raciocínio matemático em todo seu potencial.

Tanto Hegel quanto Marx fizeram duras críticas à lógica formal aristotélica. Entretanto, as pressões sociais causaram uma revolução nas bases da matemática e da lógica formal que começou pouco antes da morte de Marx e se estendeu ao longo de várias décadas. A maior revolução da lógica formal até hoje, assim como a da matemática, foi a formalização da matemática. Vamos discutir como se deu esse processo 

O sistema euclidiano

Se tivéssemos uma máquina do tempo e voltássemos à Grécia Antiga, encontraríamos uma matemática totalmente diferente da que vemos hoje. Não havia fórmulas, símbolos estranhos, equações e nem números. Os gregos não inventaram a matemática, nem foram os primeiros a descobrirem como realizar operações aritméticas, mas foi na Grécia que nasceu o primeiro método axiomático, introduzido por Euclides em Elementos.

A palavra grega axioma significa “aquilo que se apresenta como evidente”. Euclides formulou um conjunto de axiomas a partir dos quais seria possível demonstrar os resultados em geometria que eram conhecidos na época utilizando apenas passos lógicos bem definidos. Esses resultados são chamados de teoremas.

Os três primeiros postulados (axiomas) de Euclides afirmam, respectivamente, que é possível ligar quaisquer dois pontos por uma reta, estender indefinidamente uma reta e construir um círculo com qualquer ponto como centro e com qualquer raio. Ou seja, esses postulados são apenas descrições abstratas sobre o que é possível realizar com uma régua (sem escala) e um compasso. Assim, a geometria euclidiana não era um estudo completo sobre o plano, mas apenas sobre o que é possível construir com régua e compasso neste plano. Por exemplo, não é possível construir uma elipse nem uma parábola diretamente com régua e compasso.

Aqui é preciso notar que esses axiomas não são “evidentes por si mesmos”, mas são evidentes para quem tem familiaridade com uma régua e um compasso. Já o quinto postulado, por não ser elementar nem evidente, foi alvo de polêmica na Grécia antiga. Muitos acreditavam que, por não ser óbvio, deveria ser possível demonstrá-lo a partir dos demais postulados. Hoje, sabemos que isso não é verdade, pois conhecemos a existência da geometria hiperbólica, que satisfaz os quatro primeiros postulados mas não satisfaz o quinto. Se houvesse uma demonstração lógica do quinto postulado a partir dos quatro primeiros, essa mesma demonstração valeria para a geometria hiperbólica, mostrando que o quinto postulado seria satisfeito também nessa geometria, o que não é verdade.
Além dos cinco postulados, Euclides também enunciou algumas “noções comuns” (que dizem respeito à noção de igualdade) e que hoje também são classificadas como axiomas.

O sistema axiomático construído por Euclides demonstra que é possível sistematizar o estudo da geometria (e também da aritmética) de forma separada da atividade humana concreta. O sistema de Euclides corresponde à atividade humana e ao mesmo tempo é independente dela.

Na Grécia Antiga, a matemática se desenvolveu tendo o trabalho de Euclides como base. Nesse trabalho, até mesmo a aritmética era vista sob a ótica da construção com régua e compasso. Entretanto, existem números que não podem ser construídos com régua e compasso, como, por exemplo, o número pi e a raiz cúbica de 2. Esta era a maior contradição da matemática grega: ela pressupunha implicitamente que todos os números são construtíveis, o que não é verdade. Isso deu origem aos três problemas clássicos gregos que (embora não soubessem na época) não podem ser resolvidos a partir da matemática grega. Essa contradição gerou a necessidade de um novo sistema axiomático para os números reais. Foi só no século XIX que foi a compreensão da matemática se aprofundou ao ponto de demonstrar que nem todos os números são construtíveis. A contradição da matemática grega foi resolvida. 

A lógica aristotélica

A lógica formal é uma ciência que estuda as regras que permitem alguém chegar a uma conclusão a partir de um conjunto fixo de premissas (hoje também chamadas de axiomas) e uma sequência de passos lógicos. A lógica formal não pode estipular quais premissas devem ser aceitas, mas apenas avaliar se a conexão entre essas premissas e a conclusão seguem as regras da lógica. O trabalho de Aristóteles em Metafísicas serviu como base para a lógica clássica que até hoje é a lógica padrão. Apesar de existirem outros sistemas lógicos formais, é a partir dessa lógica que as pessoas são ensinadas a pensar ao longo do sistema de ensino, principalmente nas disciplinas de exatas.

Na lógica aristotélica, uma proposição assume um e apenas um entre dois valores de verdade: verdadeiro ou falso. É isso que, essencialmente, está por trás dos três princípios aristotélicos (princípio da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído). Por causa disso, a lógica formal aristotélica é incapaz de lidar com algumas sentenças matemáticas. Nem mesmo alguns resultados mais complexos que Euclides obteve poderiam ser formalizados na lógica aristotélica. Como seria possível estudar proposições sobre objetos desconhecidos (ou seja, variáveis) se o próprio valor de verdade dessas proposições não são variáveis? Para poder resolver essa contradição, a lógica formal também precisou aprofundar sua compreensão sobre proposições e o pensamento lógico. 

O programa de Hilbert e a matemática do século XX

No início do século XX, havia uma crise na matemática: faltava-lhe um fundamento. As teorias matemáticas estavam dispersas, cada uma era desenvolvida a partir de suas próprias regras. Hilbert lançou um programa para resolver essa crise: criar um fundamento para toda a matemática. Isso significaria criar um sistema axiomático a partir dos quais seria possível construir e demonstrar logicamente toda a matemática que existia até então.

Isso, evidentemente, era muito mais difícil do que na época de Euclides, mas as ferramentas necessárias para concretizar essa tarefa já haviam sido criadas.

Gottlob Frege desenvolveu em 1879 a lógica de predicados. Frege foi responsável por criar técnicas dentro da lógica formal que fossem capazes de lidar com variáveis, em especial pela criação do conceito de quantificador. É com esse conceito que a lógica de Frege foi finalmente capaz de formalizar um velho teorema de Euclides: “existem infinitos números primos”.

Vale aqui uma observação: Frege não estendeu a lógica aristotélica, mas a negou. Para Aristóteles, uma proposição só pode ser verdadeira ou falsa, nada mais. Cada predicado, pelo contrário, ora assume um valor verdadeiro, ora assume um valor falso, dependendo de qual é o valor de cada variável nele contido. Ao contrário das proposições de Aristóteles, o predicado “x é branco” encerra em si as duas possibilidades, verdadeiro e falso, ou seja, sua veracidade é relativa ao valor de “x”. Frege incorporou na lógica formal um conceito matemático e, sem perceber, deu um salto em direção à dialética. Essa é uma verdade que os matemáticos de hoje não admitem. A lógica fregeana desenvolveu e negou a lógica aristotélica da mesma forma que a atual estrutura dos números reais de hoje desenvolveu e negou os números construtíveis da matemática grega.

O trabalho de Frege ficou desconhecido internacionalmente por várias décadas. Em 1893, Frege lançou a primeira edição do livro “Leis Básicas da Aritmética”, criando, a partir de sua lógica, um sistema axiomático para a aritmética. Em 1903, quando a segunda edição do seu livro estava para ser impressa, Bertrand Russel mostrou que era possível chegar a um paradoxo a partir de seu sistema axiomático, o conhecido Paradoxo de Russel.

Na década de 1910, Bertrand Russel e Alfred Whitehead lançaram três volumes de Principia Mathematica, que continham um extenso trabalho (mais de 1900 páginas!) para construir toda a matemática conhecida até então a partir de algumas dezenas de axiomas. Este trabalho foi baseado na obra de inúmeros matemáticos. Seu sistema lógico era fregeano. Os objetos matemáticos eram construídos a partir da teoria de conjuntos que Georg Cantor desenvolvera no século anterior utilizando a teoria dos números reais. Após mais de dois mil anos, o trabalho de Aristóteles e o de Euclides finalmente encontraram uma síntese.

O programa de Hilbert buscava outros resultados. Algumas décadas depois, Kurt Gödel e Alan Turing demonstraram que era impossível alcançar a maioria dos objetivos que o programa buscava. 

A matemática e a lógica formal na atualidade

A matemática de uma época é a matemática da classe dominante. Na Grécia Antiga, a matemática era uma ferramenta utilizada, por exemplo, para administrar a propriedade privada, estudar a música e as obras de arte. O que as escravas e os escravos ganhavam com a matemática? Nada. Pelo contrário: a classe dominante, que detinha a propriedade privada, encontraria na matemática uma forma de quantificar e administrar seus escravos, pois eles eram propriedades.

Hoje em dia, as universidades, as revistas acadêmicas e as pesquisas científicas estão cada vez mais sob o controle das empresas e dos bancos, direta ou indiretamente. As áreas que servem diretamente ao lucro das empresas (como as engenharias) recebem volumes consideráveis de dinheiro para que possam desenvolver suas pesquisas. Cada vez mais laboratórios são comprados e controlados diretamente pelas empresas. Áreas que não servem para o lucro da burguesia ainda são financiadas pelo Estado, seja por tradição ou por serem necessárias ao desenvolvimento geral da universidade, mas recebem financiamentos e incentivos bem menores e às vezes entram em crise.

Esta lógica fez com que a matemática da atualidade se dividisse em duas partes. Uma parte, conhecida como matemática aplicada, diz respeito às pesquisas que estudam a matemática ligada à atividade humana e que, por isso, podem ser apropriadas e direcionadas pelas empresas. A matemática aplicada é utilizada, por exemplo, para estudar e otimizar o processo de produção e de transporte das mercadorias, evitando desperdício e economizando tempo de trabalho. A outra parte, a matemática pura, diz respeito ao estudo da matemática em sua abstração, incluindo axiomas e teoremas, mas que não busca e nem sequer conhece sua aplicação prática.

A academia ensina que a matemática só pode ser desenvolvida a partir de axiomas, cuja veracidade é tomada como pressuposto e como fundamento para o raciocínio lógico. Esses axiomas geralmente incluem uma concepção fregeana da lógica. Isso tudo cria a ilusão de que a matemática se desenvolve a partir do “pensamento puro”, desvencilhado da materialidade, que independe de qualquer subjetividade ou contexto histórico no qual o ser humano que a estuda está inserido.

A História, entretanto, mostra que a matemática, na verdade, se desenvolveu historicamente a partir da abstração da atividade humana concreta sobre a natureza e que sempre esteve ligada ao seu contexto histórico e social. A lógica também se desenvolveu historicamente a partir do conhecimento humano sobre a própria natureza. Descobertas recentes na Física, por exemplo, levaram à criação de outros sistemas lógicos formais, como a lógica quântica e a lógica fuzzy, que desobedecem às regras da lógica aristotélica.

Enquanto o fundamento para a matemática grega eram os postulados de Euclides, o fundamento para a matemática de hoje é o sistema axiomático de Zermelo-Fraenkel. Esse sistema não tem como base a atividade humana nem características da natureza, seus axiomas não podem ser verificados empiricamente e não são nem um pouco evidentes.

Muitas pessoas julgam que eles são intuitivos. Essas pessoas passaram a infância brincando com bolinhas, aprendendo a contar maçãs e laranjas, a desenhar círculos ao redor delas para representar conjuntos, estudaram matemática durante os ensinos fundamental, médio e superior e só então puderam estudar e entender o significado de cada um dos axiomas. Outras pessoas defendem que a matemática é uma invenção humana, que o universo matemático é uma abstração humana que não existe. Entretanto, não só a matemática é produto da abstração humana do mundo real, como também, através do trabalho humano, se mostra capaz de entender, prever e modificar o mundo ao nosso redor.

Alan Turing desafiou essa lógica. Turing cresceu em um mundo onde as máquinas se desenvolviam e adquiriam cada vez mais importância. Isso o inspirou a conceber teoricamente uma máquina capaz de executar qualquer algoritmo. A partir de sua teoria matemática, não só ele demonstrou que alguns dos objetivos do Programa de Hilbert não poderiam ser atingidos quanto também foi capaz de criar sua máquina, a máquina de Turing, hoje conhecida como computador. Turing mostrou que é possível desenvolver a matemática não em sua pura abstração, nem em sua aplicação empirista, mas sim relacionando a teoria e a prática, o abstrato e o concreto.

Na verdade, a separação da matemática entre pura e aplicada serve apenas para que as empresas consigam melhor se apropriar de sua aplicação e manter a matemática pura sob controle, longe do mundo real. A matemática, ao contrário do que a lógica formal prega, não é um conjunto de resultados lógicos obtidos de axiomas que foram entregues aos seres humanos pelos Céus. A compartimentação do conhecimento impede o desenvolvimento da matemática porque seu fundamento não está nos axiomas, mas sim no seu desenvolvimento histórico que teve como base o desenvolvimento da sociedade e de suas relações socioeconômicas, assim como o desenvolvimento da lógica e de todo o conhecimento humano. Apenas o materialismo histórico-dialético pode fazer com que a matemática supere os limites da lógica formal.

domingo, 5 de abril de 2015

Inclusão social: Os dados estatísticos da Unicamp


Gostaria, aqui, de resgatar um texto que escrevi em 2012 para combater os argumentos mais frequentes da época às cotas raciais, em particular ao mito de quem acredita que as cotas sociais podem substituir as cotas raciais.
Costuma-se afirmar que um programa de cotas sociais podem substituir um programa de cotas raciais e sociais. Entretanto, uma pesquisa feita na Unicamp sobre acesso à educação revela que a desigualdade racial existente no Brasil não se trata meramente de desigualdade social, mas existe mesmo quando se compara indígenas, negros, amarelos e brancos de uma mesma faixa de renda, desigualdade que existe em todas as faixas de renda, embora seja mais acentuada nas faixas de menor renda, conforme mostra a tabela a seguir. [fonte]



Texto publicado em http://ogritocoletivo.blogspot.com.br/2012/09/inclusao-social-os-dados-estatisticos.html.