sábado, 4 de abril de 2015

Travestis e Transexuais contra o Machismo

[Texto originalmente publicado em http://mulheresemluta.blogspot.com.br/2015/03/movimento-mulheres-em-luta-travestis-e.html]

Nós, do MML, reconhecemos a identidade de gênero. Isso significa não apenas reconhecer que as pessoas pertencem ao gênero com o qual se identificam, mas também reconhecer que as pessoas trans são vítimas do mesmo machismo que atinge a todas as mulheres, ainda que de formas distintas. Infelizmente, como nossa sociedade ainda não aceita a existência das pessoas trans, ainda existe muita confusão com respeito a esse tema. Para podermos avançar na luta contra o machismo, essa confusão precisa ser desfeita.

O desafio de ser uma travesti ou uma pessoa transexual começa desde a adolescência. Em suas escolas e também em suas próprias famílias, as pessoas trans não são aceitas e são frequentemente ridicularizadas e agredidas. É muito comum os pais quererem “curar” sua filha ou seu filho, seja impondo um castigo, dando uma “surra” na criança, levando-a para algum “profissional” que promete curá-la, entre outros. Mas a identidade de gênero não é uma doença, não pode ser “curada”. Trata-se simplesmente do que a pessoa é.

Na maioria das vezes, isso faz com que a vida da criança se torne insuportável. Estima-se que 40% das pessoas trans já tentaram cometer suicídio. Muitas delas acabam fugindo ou mesmo sendo expulsas de suas casas. Entretanto, para uma travesti, por exemplo, é muito difícil conseguir um emprego, ainda mais sem ter completado seus estudos. Na maioria das vezes, a única forma de sobrevivência é a prostituição. Cerca de 90% das travestis e das mulheres transexuais se envolve com o mercado sexual e muitas delas são menores de idade. Nas periferias, elas são alvo de violência da população, dos seus clientes e também da polícia. São vítimas de assédios, estupros, agressões e assassinatos. Como consequência, a expectativa de vida de uma travesti ou de uma mulher transexual é de cerca de 35 anos.

Para poder suportar toda a violência a que estão sujeitas na prostituição, a maioria das travestis recorrem a algum tipo de droga, seja legal (como álcool e cigarro) ou ilegal (como maconha e cocaína). Numa sociedade que criminaliza o uso de drogas, isso faz com que elas estejam ainda mais sujeitas à violência policial, inclusive chantagens e assédios. Não é à toa que existem muitas travestis nas prisões.

Muita gente acredita que a maioria das travestis são prostitutas porque são “naturalmente” promíscuas, mas isso acontece porque nossa sociedade não oferece praticamente nenhuma outra opção para elas. Na maioria das vezes, a zona de prostituição é o único lugar em que elas conseguem permanecer e encontrar um grupo de pessoas que as aceitam. Nosso dever é oferecer a nossa solidariedade às travestis assim como a todas as mulheres em situação de prostituição na luta contra toda a violência e a discriminação que sofrem. Por isso, somos a favor de todas as medidas que dão a elas a oportunidade de serem reinseridas na sociedade e no mercado de trabalho formal, inclusive as bolsas de estudos.

Nós também não podemos nos esquecer dos homens transexuais. Os homens transexuais, em especial quando são adolescentes, são vítimas do estupro corretivo, que é um crime cometido com a intenção de “curar” a transexualidade, ou seja, de fazer ele “voltar” a ser mulher. O estupro causa trauma, medo e fragilidade, mas não faz com que um homem transexual deixe de ser um homem.

As pessoas trans são nossas aliadas na luta contra o machismo e a exploração que atinge a nossa classe. 

Nenhum direito a menos, as pessoas trans da classe trabalhadora não vão pagar pela crise!

Mal começou o segundo mandato de Dilma e já foram realizados ataques aos direitos trabalhistas, cortes de verbas para a educação,etc. O governo do PT quer colocar a crise econômica nas costas das trabalhadoras e dos trabalhadores enquanto continua entregando o dinheiro para as empresas e os bancos na forma de “incentivos fiscais” e de pagamento da “dívida pública”.
 
Enquanto isso, o Congresso Nacional está ainda mais reacionário. O Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do PMDB, ressuscitou o projeto de lei que cria o “Dia do Orgulho Hétero”, uma provocação nefasta contra todas as pessoas LGBTs. Eduardo Cunha já mostrou que será uma barreira para a aprovação de leis que garantam os direitos básicos das mulheres e das LGBTs e que será contra as medidas de combate à violência homofóbica e transfóbica.
 
Ainda este ano, o PLC 122, projeto de lei que visa criminalizar a homofobia, foi definitivamente arquivado. Enquanto isso, os assassinatos homofóbicos e transfóbicos continuam acontecendo e são marcados com muita violência, sendo que as travestis são as vítimas mais frequentes desses assassinatos. Dilma, que prometeu criminalizar a homofobia durante sua campanha, não pronunciou uma única palavra sobre o assunto.
 
Em uma época de “ajuste fiscal”, o primeiro gasto que o governo vai querer cortar não será o dinheiro que é destinado às empresas e aos bancos, mas sim as políticas criadas para combater a violência e garantir os direitos das minorias, como a Lei Maria da Penha e a lei que criminaliza o feminicídio. Por isso, será necessária muita luta em defesa dos direitos das mulheres, pessoas negras e LGBTs.
 
No último dia 12, foi publicada no Diário Oficial da União uma série de medidas em defesa dos direitos das pessoas trans nos sistemas e nas instituições de ensino. Isso significa que travestis e transexuais poderão requisitar que sejam tratadas exclusivamente pelo nome social (por exemplo, nas listas de chamada, nos processos seletivos e nas avaliações), utilizar o uniforme escolar e o banheiro conforme sua identidade de gênero. A medida também exige que os boletins de ocorrência policial incluam campos para identificar a orientação sexual, a identidade de gênero e a nome social da pessoa atendida.
 
Muitas pessoas têm manifestado dúvidas, em especial com respeito ao uso do banheiro, dizendo que, com essa medida, “meninos” podem passar a usar o banheiro das meninas nas escolas, e vice-versa. Isso não é verdade. Segundo a medida, os banheiros devem ser usados conforme a identidade de gênero. Não é possível que, por exemplo, um menino (que não é trans) se identifique como menina e se sujeite a toda ridiculização e violência que as meninas trans sofrem cotidianamente apenas para conseguir usar o banheiro feminino.
 
Consideramos que essa medida é um avanço para o reconhecimento dos direitos das pessoas trans e para o combate à transfobia nas escolas e universidades. Entretanto, não devemos nos iludir com essa medida. Em vários estados, já existem medidas que, teoricamente, deveriam garantir o direito ao nome social, mas muitas vezes elas não são efetivadas, ou então são efetivadas de forma insatisfatória, através de muita burocracia. Para que a identidade de gênero seja reconhecida nas instituições, é preciso treinar as professoras e professores, funcionárias e funcionários da instituição. Também teremos que enfrentar muita resistência por parte das instituições, das diretorias e reitorias. Por isso, será ainda necessária muita luta para que essas medidas sejam realmente efetivadas.
 
Além disso, essa medida foi implantada justamente porque gera poucos gastos para o governo. Entretanto, para que a identidade de gênero das pessoas trans seja de fato reconhecida, é necessário que o nome social e o sexo possam ser alterados no registro civil e que os tratamentos que essas pessoas demandam (como terapia hormonal, acompanhamento psicológico e cirurgias) sejam garantidos gratuitamente pelo sistema público de saúde. Ou seja, é necessário aprovar uma Lei de Identidade de Gênero, como a Lei João Nery. Mas a aprovação dessa lei por esse congresso reacionário é improvável, ainda mais em uma época em que o governo está realizando cortes de “gastos”. Isso significa que devemos estar ao lado das pessoas trans na luta pela aprovação desta lei e para que a crise não caia sobre os ombros das travestis da periferia, das pessoas transexuais e de todas as pessoas trans da nossa classe, mas sim que os ricos paguem pela crise.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

29 de janeiro: Dia da Visibilidade Trans

Que opção resta para a grande maioria das pessoas trans? Se elas são expulsas dos espaços públicos, do mercado de trabalho e até de suas casas, onde elas conseguem ficar? É por esse motivo que cerca de 90% das pessoas trans (na grande maioria, travestis) vivem na periferia, sobrevivem a partir da prostituição, na maioria das vezes desde a adolescência. Isso significa que elas, desde cedo, têm que se adequar a condições bastante precárias: realizar vários programas a um baixo custo, entregar uma boa parte à cafetina ou ao cafetão, submeter-se a situações de constrangimento e de agressão, etc. De outra forma, não há como sobreviver.

Texto (de minha autoria) publicado em http://www.pstu.org.br/node/21267

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Em defesa dos "homens de saia" e das fantasias carnavalescas

Piu, passista da beija-flor que foi
assassinada este ano.
É carnaval! A festa é feita bem no meio da rua com seus blocos, fantasias, músicas e danças. Até o povo mais pobre das periferias aproveita para ocupar a rua, festejar, enfrentando muitas vezes a violência policial por conta disso. Durante a festa, muitas pessoas aproveitam para fazer aquilo que a moral hipócrita da nossa sociedade não permite. Aquilo que também acontece de forma escancarada durante a Parada LGBT, no carnaval, também acontece de forma mascarada: o ato de travestir-se.

Evidentemente, isso não acontece sem contradições. Muitos homens, ao usarem uma roupagem feminina, ridicularizam a figura feminina e tornam-se alvo de chacota intencionalmente. Essa chacota não se dirige ao homem que se veste, mas sim à travesti que não está lá, à travesti que "não existe". Por conta disso, muitas pessoas, tendo em vista a defesa das pessoas trans, estão espalhando que não apenas a ridicularização do feminino e da travesti, mas até o próprio ato de travestir-se (ou transvestir-se) é uma atitude transfóbica. "O homem de saia apaga a travesti", dizem. "A fantasia não vale mais que a identidade".

Mas, afinal, onde está a transfobia e a misoginia: no ato de vestir-se ou no ato de ridicularizar-se? E se é possível vestir-se sem ridicularizar-se, o ato de vestir-se por si só é transfóbico? Existe algum mal por trás do fato das travestis não serem tão facilmente distinguíveis em época de carnaval como são ao longo do resto do ano? Vamos limpar o terreno!

Travestilidade e fantasia na antiguidade

Vejo muitos textos por aí que dizem que é equivocado afirmar que existiam travestis desde a antiguidade porque os gêneros trans da antiguidade eram diferentes dos gêneros trans da atualidade. Esses mesmos textos, entretanto, admitem que haviam mulheres na antiguidade e as chamam assim, mulheres. Também admitem que haviam homens e os chamam de homens. Não são as mulheres e os homens da antiguidade diferentes das atuais? Não sigo essa ideologia que prega que os gêneros cis são eternos e os gêneros trans são episódicos.

"Afrodito"
Na Grécia Antiga, pelo menos desde o século V a.C., existiam estátuas de Afrodite em que ela levanta o vestido para mostrar um falo. Essa versão de Afrodite era também chamada de Afrodito. Acreditava-se que o ato da Afrodite levantar o vestido tinha o poder mágico de espantar os demônios e conferir boa sorte. Os festivais de culto a essa Afrodite eram caracterizados com rituais de travestilidade. Esse tipo de ritual existia e continua existindo em diversas sociedades, o que mostra que provavelmente têm uma raiz em comum há milhares ou dezenas de milhares de anos atrás. Afrodite, entretanto, virou Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, já que uma deusa importante como Afrodite não poderia ser travesti numa sociedade travestifóbica.

Em Roma, na Gália, existia uma linhagem sacerdotal em que a travestilidade não era momentânea, mas sim permanente. Elas chamavam a si mesmas de gallae, mas eram e são chamadas de galli, masculino de gallae. Sua tradição consistia na castração (momento no qual passava a ter uma identidade feminina reconhecida), além do uso de nomes e roupas femininas. Uma galla era vista como uma "falsa mulher" e sua identidade feminina era ora encarada como uma escolha, ora como uma obrigação religiosa. As gallae eram vistas como a afronta máxima aos ideais romanos de virilidade. As gallae foram perseguidas e criminalizadas pelo Império Romano e sua tradição chegou ao fim. Afinal, a deusa mãe Cibele era importante demais para ser cultuada por travestis.

Vemos, aqui, que a travestilidade momentânea, ao longo do tempo, se transformou (e continua se transformando) em travestilidade permanente. Na verdade, não é necessário recorrer à antiguidade para mostrar isso: até hoje, muitas pessoas que hoje são travestis, na adolescência ou na infância eram "meninos" que gostavam de usar saia. É como se o processo individual de transformação para o gênero travesti imitasse, em essência, o processo histórico e social que criou o próprio gênero travesti.

Félix e a borboleta no casulo

Ao longo de 2013 e no começo de 2014, o nosso país assistiu, pela primeira vez, um romance gay numa novela da Globo em horário nobre. Foi um marco na história LGBT. A maioria de nós vibrou quando Félix e Niko, no capítulo final da novela Amor à Vida, se beijaram. Finalmente! Depois de tanto tempo de luta, a Rede Globo foi forçada pela pressão popular a admitir que existem homossexuais e que eles também amam. Apesar de todas as contradições da novela, essa visibilidade foi uma vitória para as LGBTs.

Gostaria de trazer de volta um capítulo desta novela. Quem quiser, pode assistir aqui, pretendo discutir as cenas 5 e 6.

Na cena 5, Edith, que está para se divorciar de Félix, se reúne com a família dele para conseguir um bom contrato de divórcio. Para isso, ela ameaça "fazer um escândalo", ou seja, revelar publicamente que Félix é gay. Félix, então, comenta:

- Se quer fazer um escândalo, Edith, faça, eu não me importo! [...] Eu estou como uma borboleta pronta pra sair do casulo.
- Entre nesse casulo. Agora! - ordena seu pai. Félix se silencia.

Na cena seguinte, mais uma vez Edith ameaça:

- Eu vou te dar alguns dias pra você me oferecer um bom acordo ou senão sua vida íntima vai se tornar pública.
- Melhor assim! - responde Félix - Daqui pra frente se eu sair no carnaval com esplendor de plumas e purpurina, ninguém vai se surpreender!
- Félix, cale-se! - ordena seu pai mais uma vez.

O machismo nesse episódio é evidente. Edith é o estereótipo de mulher louca, chantagista, que quer arrancar posses do seu marido e que não pensa em nada além do dinheiro. Ela, inclusive, quer se aproveitar da homofobia para esse fim e não demonstra ter nenhum peso na consciência por isso.

Mas... e quanto a essa tal borboleta que César, o pai de Félix, tem tanto medo que saia do casulo? Em quê consiste esse tal "esplendor de plumas e purpurina"? Estamos falando de homossexualidade? Isso foge ao espectro da sexualidade. Este capítulo faz uma alusão à travestilidade momentânea. Félix não queria expressar apenas sua sexualidade, mas também o seu lado que estava preso dentro do casulo. César, um "respeitável burguês", não quer ter a vergonha de que saibam que seu filho tem um lado "feminino", muito menos que ele se permita ter qualquer semelhança às pessoas consideradas mais abjetas pela sociedade. Ele é tão travestifóbico quanto o seu xará da antiguidade.

A Rede Globo não quis mostrar, em momento algum, a borboleta saindo do seu casulo. Félix, sendo uma caracterização positiva da homossexualidade, foi embranquecido e higienizado de qualquer característica "feminina", por mais passageira que fosse.

O pessoal é político?

Nós, LGBTs, em especial as pessoas trans, sabemos que, para existir, precisamos travar uma batalha política constante pelo nosso direito à existência e pelo reconhecimento da nossa identidade. Caso contrário, a tendência é que as pessoas nos isolem e nos marginalizem e que nossa vida se torne insuportável. Até mesmo os setores mais progressistas da sociedade acabam fazendo isso.

Pai veste saia para apoiar filho que gosta de vestidos.
A criança precisa identificar-se como trans para ter
direito a usar vestidos?
Muitas pessoas, às vezes baseadas na tese subjetivista  de que "o pessoal é político", acabam acreditando que o problema não está na opressão que nós sofremos, mas sim na subjetividade alheia. Por exemplo, é muito comum dizerem que os homofóbicos são homossexuais enrustidos. Ou seja, "xingam" os homofóbicos dizendo que são gays. Isso é reproduzir a homofobia. Até Jean Willys embarcou nesta onda. Durante a Parada LGBT de Campinas, um dos blocos, em vez de criticarem a homofobia de Marina Silva, cantaram uma marchinha dizendo que ela deveria experimentar sexo anal. Ditar regras sobre a vida sexual de uma mulher é machismo.

A opressão LGBTfóbica é objetiva. Sua base de sustentação é a desigualdade social que se manifesta não só nas diferenças de direitos, mas também nas diferenças salariais, na expulsão de espaços públicos, nos assédios que LGBTs sofrem no mercado de trabalho, na patologização da nossa identidade, etc. Não é possível combater essa opressão atacando a subjetividade alheia. Muito pelo contrário, assim acabamos reforçando os estereótipos e reproduzindo as opressões. Não adianta nada "chocar a sociedade" se isso não servir para despertar a consciência de que nós somos oprimidas, que somos vítimas da desigualdade, da violência e da injustiça.

A higienização da sociedade

As sociedades patriarcais, ao longo da História, às vezes incorporaram algum setor LGBT na sociedade, mas de forma limitada. Por exemplo, nos países capitalistas desenvolvidos, em consequência da Revolta de Stonewall em 1969, que deu origem à tradicional Parada LGBT, homens gays e bissexuais foram mais ou menos incorporados na sociedade (mas são levados a formar casais heteronormativos), dependendo da região. As mulheres LGBTs e as travestis continuam à margem da maioria dos espaços sociais. As pessoas trans concentram-se na prostituição em zonas periféricas.

Conforme o movimento avança e obtém conquistas, a burguesia, através de seus instrumentos (Estado, instituições científicas, mídia, sistema educacional) pressiona para que o movimento se divida e retroceda. O movimento LGBT também acaba, por pressão da sociedade, reproduzindo essa mesma lógica. Quando a travesti é usada como um ícone LGBT que é estereotipado e ridicularizado pela mídia e também pela medicina, a população LGBT busca livrar-se deste estigma se diferenciando das travestis e deixando-as à margem.

A medicina denomina a travestilidade momentânea de "travestismo fetichista" e a travestilidade permanente simplesmente de "travestismo" ou de "travestismo bivalente". Ambas as formas são consideradas patologias pela medicina. Enquanto o "travestismo bivalente" é classificado como transtorno de identidade de gênero, o "travestismo fetichista", como transtorno de preferência sexual. Quem não tem problemas em sentir ânsia de vômito pode encontrar uma teoria "científica" sobre "travestismo fetichista" nesta página. Muitas pessoas (inclusive alguns setores da medicina) consideram como patologia apenas o "travestismo fetichista".

Algumas pessoas reproduzem essa mesma lógica e criam uma barreira entre travestilidade momentânea e permanente, como se uma fosse oposta à outra. Assim como a medicina, querem classificar como prejudicial a travestilidade que não é decorrente de uma identidade de gênero. A realidade, entretanto, é que muitas vezes a travestilidade momentânea precede e se transforma em identidade. Conheço muitas travestis com as quais isso ocorreu.

No carnaval ocorrem muitos casos de opressão, como machismo e também travestifobia. É uma época em que mulheres e travestis estão ainda mais sujeitas à violência e à objetificação sexual. Muitos homens se montam e reforçam essas ideologias por sua atitude, que precisa ser constrangida. Mas isso não se resolve acreditando que o problema é das pessoas que se montam. Não devemos restringir o direito das pessoas a experimentarem o gênero, nem isolar ainda mais os costumes culturais das pessoas LGBTs aos guetos que nos são reservado. Também não devemos restringir esse direito apenas para quem tiver registrado a carteirinha oficial de sua identidade de gênero trans, nem mesmo de sua orientação não heterossexual. Não podemos reproduzir a mesma lógica que inferioriza as bichas pintosas, as passivas, as drags, as travestis, que busca separá-las dos homens gays higienizados e empurrá-las de volta à marginalidade.

Eu defendo as borboletas.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Sobre as limitações do feminismo radical

Enquete no site A Capa mostra, em números, a
alienação transfóbica histórica: pessoas trans ainda são
pouco conhecidas e muito indesejadas.
O feminismo radical é uma vertente do feminismo que surgiu nas décadas de 1960 e 70 em uma época de várias mobilizações que são conhecidas como a Segunda Onda do Feminismo. Essas mobilizações surgiram no mundo todo e reivindicavam o fim da desigualdade de gênero entre as mulheres e os homens, o direito ao voto, a legalização do aborto, o fim da violência contra a mulher, entre outros. O feminismo radical é, portanto, uma corrente feminista que se originou nas lutas. A sua principal referência teórica foi elaborada por Simone de Beauvoir em 1949.

É impossível não reconhecer a importância do papel teórico, político e histórico que tiveram as teorias feministas radicais para desvendar e denunciar o machismo na nossa sociedade. Por outro lado, também é impossível não reconhecer que elas têm sérias limitações históricas. Se há décadas atrás essa corrente tinha um papel fundamentalmente progressista, hoje acredito que, infelizmente, quando se refere à questão trans, uma parte dela passou para o lado do conservadorismo. Por quê?

A alienação LGBTfóbica histórica

Pintura de Theodor de Bry retratando
"sodomitas" sendo devorados por lobos (1594).
Como já discuti em outro texto, existe uma alienação LGBTfóbica que foi construída durante milênios e que prega que não existem pessoas LGBTs. Em outras palavras, uma ideologia que prega que todo ser humano é naturalmente heterossexual e cisgênero desde o nascimento. Para criar essa ilusão, ao longo de milênios, as classes sociais dominantes (senhores de escravos e de terras, monarcas, imperadores, nobres, membros do clero) realizaram, ao longo de milênios, um verdadeiro genocídio, usando para tal seu domínio sobre o Estado e, consequentemente, sobre as forças armadas e seu sistema de "justiça".

Alguns mecanismos criados para realizar o genocídio histórico também serviram de base para o machismo. Um exemplo bastante simples é a perseguição às "bruxas" durante a Idade Média. Qualquer mulher (ou: pessoa reconhecida socialmente como mulher) e que fugisse aos padrões rígidos de feminilidade era considerada bruxa e levada à fogueira. A criminalização da "sodomia", por outro lado, (que era entendida como um tipo de promiscuidade) também serviu para condenar à morte qualquer homem (ou: pessoa reconhecida socialmente como homem) que se recusasse a aceitar seu papel masculino.

"Não fale de mim como se fosse uma mulher"
diz o personagem trans "Megillus" na estória
do escritor grego Luciano, séc. II.
Quantas histórias de pessoas trans foram
apagadas dos livros?
Em contrapartida ao genocídio, houve também uma perseguição ideológica. Os textos históricos que denunciavam a nossa existência foram alterados, tiveram seu acesso restringido, não foram preservados ou foram intencionalmente destruídos. Tudo isso em nome da "moral cristã", ou melhor, em nome da moral da dominação de classe.

A perseguição também se estendeu a religiões e culturas pagãs, muitas das quais reconheciam e aceitavam a existência de LGBTs. Quando o homem branco (isto é, o homem branco, heterossexual e cisgênero) escravizou os povos negros e indígenas, isso foi feito também a partir da perseguição de sua cultura, incidindo com sua religião e seus exércitos para forçar essas tribos a deixarem sua "perversidade", o que inclui negarem a existência de pessoas trans. Muitas tribos indígenas e africanas que costumavam ter, em seu seio, várias sacerdotisas travestis, hoje em dia, já não têm mais.

Se observarmos a estrutura patriarcal que a sociedade tomou durante esses milênios, fica evidente porque era necessário criar a alienação de que não existem LGBTs: porque LGBTs não se encaixam na concepção tradicional de família (seja no sistema escravocrata ou no sistema feudal). Ao longo da história, vemos diversos exemplos onde uma sociedade dividida em classes tenta, por causa das pressões sociais, incorporar um ou outro setor LGBT, mas isto sempre se dá de forma limitada.

A teoria de Beauvoir e suas limitações


A teoria de Beauvoir e as teorias feministas radicais não superaram a ideologia LGBTfóbica, principalmente no que se refere às pessoas trans. Pelo contrário, adaptaram-se à transfobia.

Beauvoir construiu uma teoria que é branca e cisgênera, pois assim era toda a ciência disponível em sua época. Essa teoria ignora que existiam e sempre existiram pessoas transgêneras. Por conta disso, ela perde de vista vários fatos que alteram significativamente alguns pontos de sua teoria. Sua teoria é falha e, por isso, precisa ser criticada em seus pontos fracos, o que não significa que ela tenha que ser descartada. Judith Butler, que elaborou a teoria que é base para a corrente transfeminista, na minha opinião, cometeu um erro ao jogar fora praticamente toda a teoria de Beauvoir.

Ao longo das últimas décadas, as feministas radicais foram forçadas pelas circunstâncias a deixar de ignorar nossa existência. É preciso salientar que algumas feministas radicais reconhecem que não podem tirar conclusões precipitadas sobre as pessoas trans porque admitem que nossa sociedade é transfóbica. O nível desse reconhecimento varia. Mas uma grande parte toma uma posição conservadora, nem sequer admitindo a possibilidade da teoria de Beauvoir estar errada em alguns aspectos. Pelo contrário, agarram-se acriticamente à concepção de que o gênero é um sistema imóvel de castas e que contém apenas duas castas.

Em defesa do materialismo dialético

O estudo materialista da realidade precisa ser feito de forma dialética. A estrutura patriarcal da sociedade não é imutável, infalível e nem homogênea. Por mais que ela tenha traços fundamentais que se conservam, ela muda de forma conforme o sistema sócio-econômico, as tradições culturais, as intervenções políticas, os desdobramentos da luta de classes, a região, as características sociais dos sujeitos, etc.

A sociedade separa as pessoas desde antes do nascimento conforme seu aparelho reprodutor. Até hoje, em sociedades não-capitalistas, essa separação é uma necessidade material. Na sociedade capitalista, essa separação é feita por motivos ideológicos. [Voltarei a esse assunto em outro texto]. Com base nessa separação, as pessoas são, desde o nascimento, educadas para pertencerem a um ou outro gênero e a cumprirem os papéis socialmente estabelecidos. Isso é o que denominamos socialização de gênero, que pode ser (na nossa sociedade) feminina ou masculina. Entretanto, a socialização assume diferenças importantes nos diversos setores da sociedade.

Cito um trecho de um texto sobre interseccionalidade:
Podemos nos reportar à experiência da escravização para visualizar melhor essa relação: se por um lado, mulheres negras eram desumanizadas e “masculinizadas” ao lado dos homens negros, e cumpriam todo o trabalho na mesma proporção e intensidade que os homens, desarticuladas assim do lugar de fragilidade atribuído às mulheres cis brancas debaixo do patriarcado; quando era conveniente que elas fossem exploradas e reprimidas como mulheres, elas o eram. O papel dos estupros, violações sexuais, como expressão da manutenção do poder econômico do senhor de escravos sobre o trabalho feminino exemplifica essa relação. [...]

O lugar das mulheres cis e trans negras e não-negras na sociedade de classes guarda diferenças importantes do lugar das mulheres cis brancas. Se para as mulheres cis brancas, o trabalho foi um direito adquirido, para as mulheres cis negras o trabalho sempre foi uma realidade imposta, começando pela escravização.
A socialização por gênero assumia um caráter diferente para o povo negro quando este era escravizado. Os traços essenciais dessa diferença permanecem (e também se alteram) na sociedade atual uma vez que o racismo persiste. E para as pessoas trans? Qual caráter a socialização de gênero assume?

Para justificar uma política transfóbica, muitas feministas radicais fazem uma análise mecânica (isto é, anti-dialética), dizendo: "As pessoas que tiveram uma socialização masculina são homens, as pessoas que tiveram uma socialização feminina são mulheres." A partir desta "lógica" se conclui que as mulheres trans e as travestis são homens, que os homens trans são mulheres, que pessoas com gênero não binário são mulheres ou homens conforme o aparelho reprodutor com o qual nasceram.

Mas a realidade segue sua própria lógica e não a lógica mecânica e exata dos livros! A realidade não segue as regras da lógica formal.

Uma das primeiras características da socialização é ensinar as diferenças entre os sexos (como se fossem iguais aos gêneros e iguais às diferenças biológicas relacionadas ao aparelho reprodutor). Ao mesmo tempo, é ensinado às "meninas" que elas são meninas e aos "meninos" que eles são meninos. Em outras palavras, as crianças são convencidas a aceitar a identidade de gênero que lhes é designada. Acontece que uma parte das crianças (uma ínfima minoria, mas que não pode ser ignorada) se recusa, às vezes desde muito cedo, a aceitar a identidade de gênero que lhes é designada, na maioria das vezes se identificando com o gênero oposto a ele. Às vezes isso se dá de forma aberta, às vezes em segredo ou até inconscientemente.

Para a maioria das crianças, a identidade de gênero é adquirida sem conflitos internos ou externos. As próprias crianças reivindicam ser "meninas" ou "meninos". É evidente que a socialização de gênero tem outras características que se tornam opressoras para as meninas, para as crianças negras, para aquelas que tentem fugir dos papéis tradicionais de gênero, etc, mas para a maioria a identidade de gênero não é opressora por si mesma. Pelo contrário: ela é aceita como natural, biológica, de forma que a maioria as pessoas têm a impressão de que ela nem sequer existe. Mais uma vez nos deparamos com a alienação transfóbica histórica.

Após ter sido isolada e passar por
várias terapias que tentavam
"curá-la", Leelah cometeu suicídio
no dia 28 de dezembro.
Em sua nota de suicídio, dizia:
"Consertem a sociedade. Por favor."
Quando a identidade de gênero entra em contradição com a designação de gênero, a socialização de gênero tem desdobramentos opostos. Para uma menina trans, por exemplo, a socialização masculina é uma negação de sua própria identidade e coloca ela em oposição com o ideal masculino que a sociedade lhe impõe. Isso, na maioria das vezes, se desdobra em uma violência extrema. Conflitos verbais, constrangimentos, ridicularizações, isolamento social, agressões físicas e psicológicas, castigos que duram meses, terapias de "cura", expulsão da escola, expulsão de casa, espancamento até a morte, etc, são apenas alguns exemplos dos possíveis desdobramentos dessa contradição.

Isso faz com que travestis sejam vítimas da violência na escola e em suas casas, que as expulsa de casa, da escola, do mercado de trabalho e as leva à prostituição como única opção. Isso é socialização masculina? O fato da grande maioria das travestis ser empurrada à prostituição, muitas vezes desde a adolescência, mostra que nós somos vítimas diretas do machismo! Com respeito aos assédios que enfrentamos na rua, aos estupros, às chantagens e perseguições policiais tipicamente enfrentada pelas prostitutas, a criminalização da travestilidade, aos crimes de ódio que se desdobram em torturas, espancamentos e assassinatos, isso tudo contradiz a concepção mecânica de socialização de gênero.

Não existe uma socialização de gênero homogênea, nem para pessoas trans, nem para pessoas cis. Teorias são muito importantes para que seja possível compreender a realidade, mas a realidade é muito mais complexa do que qualquer teoria humana. Cabe a nós adaptarmos a teoria à realidade, que está em constante mudança, e não tentar adaptar a realidade a uma teoria estática. A teoria de Beauvoir, em sua forma estática, não consegue compreender a transgeneridade. A teoria de Butler, que é dialética, mas idealista, a meu ver, se baseia em elementos que só existem em regiões mais "desenvolvidas" do capitalismo atual e que mostra fraqueza quando aplicada à periferia, aos países "subdesenvolvidos" e às sociedades não-capitalistas. Apenas uma teoria de gênero que seja materialista e dialética seria capaz de incorporar os pontos fortes das teorias de Beauvoir e de Butler e explicar, em essência, a transgeneridade em sua diversidade histórica e social.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Crítica à concepção positivista de Eli Vieira

Os positivistas têm uma solução simples: o mundo deve ser dividido entre o que nós podemos dizer claramente e o resto, sobre o qual é melhor que nós permaneçamos em silêncio. Mas pode alguém conceber uma filosofia mais inútil, uma vez que o que nós dizemos claramente se reduz a quase nada? Se nós omitíssemos tudo o que é obscuro, o que restaria para nós seriam tautologias triviais e desinteressantes.

É preciso desmascarar o positivismo. Não posso deixar de comentar os absurdos ditos por Eli Vieira ao tentar desqualificar Djamila Ribeiro.

Eli começa dizendo o seguinte: 
1) Não sabe responder ao argumento de alguém nem conhece o suficiente para dar uma resposta? Diga "não concordo com seus pressupostos teóricos e bases epistemológicas". Aí você defende seus dogmas e a palavra sagrada de suas altas autoridades sem precisar dar nem um mísero argumento.
Mais abaixo, ele faz outra afirmação: 
2) Aliás, lembro que "pressuposto" não testado, ou que já nasce oco por causa de outros conhecimentos, mais merece o nome "dogma".

Acontece que a afirmação (2) é uma forma de desqualificar qualquer argumentação que não se baseie em pressupostos testáveis. Mas (2) é uma afirmação epistemológica. Ou seja: Eli Vieira critica Djamila Ribeiro por que ela não concorda com a epistemologia utilizada por ele, mas, ao mesmo tempo, ele não concorda com a epistemologia utilizada por ela e, pior, taxa-a de "dogma" sem dar qualquer justificativa senão o fato que a epistemologia de Djamila não é baseada na "testabilidade".

Em (2), Eli Vieira diz, em particular, que "um pressuposto que não é testado é um dogma". Mas isso também é um pressuposto! E o que faremos com este pressuposto, ou seja, o pressuposto dado pela afirmação (2)? Devemos testá-lo ou chamá-lo de dogma? Se tentarmos testar este pressuposto para concluir que ele é verdadeiro, estaremos cometendo a falácia do argumento circular. Se não o testarmos, não podemos concluir que ele é verdadeiro a não ser que o admitamos como um dogma.

Ironia das ironias, tudo é ironia! Eli utiliza pressupostos não-testáveis para criticar a argumentação de Djamila porque ela utiliza pressupostos não-testáveis!

O pressuposto (2) de Eli é uma versão distorcida do critério de falseabilidade de Karl Popper. Popper quis separar o que é e o que não é científico demarcando as proposições que são falseáveis (científicas) e as que não são falseáveis (não científicas, ou "dogmas"). Entretanto, apesar de reconhecer que o critério de Popper é insuficiente, Eli simplesmente muda "falseável" para "testável" e acha que, assim, o problema está resolvido!

Uma observação sobre Karl Popper: ao formular seu critério de falseabilidade, ele usa implicitamente, como pressuposto, a lógica clássica aristotélica, mais explicitamente, as "Leis Clássicas do Pensamento".

Entre essas leis, encontram-se o Princípio da Não-Contradição, que afirma que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, e também o Princípio do Terceiro Excluído, que afirma que uma proposição, ou é verdadeira, ou é falsa. Em outras palavras, as Leis Clássicas do Pensamento são uma forma extremamente binária de se conceber a verdade e a falsidade.

Entretanto, a partir de métodos empíricos e de proposições falseáveis, a Física chegou às leis da Mecânica Quântica. Tais leis, paradoxalmente, mostram que proposições sobre o estado de partículas subatômicas não seguem esses princípios.

Ironia das ironias, tudo é ironia! O critério de falseabilidade de Popper foi falseado!

Eli Vieira também mostra como está preso aos velhos princípios aristotélicos ao citar um trecho de Susan Haack:
"Descrevemos o mundo às vezes de forma verdadeira, às vezes de forma falsa. Se uma descrição sintética é verdadeira ou falsa depende do que ela diz (o que diz respeito à convenção humana) e de como as coisas no mundo descritas por ela são."
Se há uma coisa universal sobre o conhecimento humano é que ele foi historicamente produzido por seres humanos. Isso não quer dizer que o conhecimento foi retirado pelos seres humanos unicamente a partir de seus próprios cérebros, a partir de suas subjetividades, como quem cria ideias a partir das ideias. Não sou pós-moderna. Mas também não quer dizer que a "Ciência" tenha sido retirada da natureza da mesma forma que se tira uma foto de uma paisagem estática, de forma que todas as fotos tiradas mostram essencialmente a mesma imagem.

O conhecimento humano foi produzido no meio do processo vivo em que a própria sociedade trabalhava a natureza ao seu redor para retirar dela seu sustento e aquilo que lhe era útil, transformando a natureza e a própria sociedade, descobrindo a natureza e a si mesma, abstraindo cada vez mais seu próprio conhecimento e até mesmo sobre seu próprio modo de pensar. Tal conhecimento nunca foi livre de imprecisões, polêmicas, inconsistências, contradições, etc. Muito pelo contrário: o conhecimento humano se desenvolveu e se aperfeiçoou ao longo do tempo por causa de suas contradições internas e também de suas contradições com o mundo concreto, com a sociedade humana, etc.

Nem tudo no conhecimento humano tem caráter puramente subjetivo. Algumas partes desse conhecimento (como a Física) adquiriram um caráter bastante objetivo e conseguem hoje se desenvolver de forma independente das subjetividades (ao menos na aparência - voltarei a esse assunto em outro momento). Entretanto, não podemos negar, por exemplo, o papel central e decisivo que as subjetividades têm no desenvolvimento da nossa compreensão sobre as opressões, sua natureza e sua essência.

Essa concepção positivista que pretende criar critérios práticos, mecânicos e absolutos para separar a "Ciência" e a "Não-Ciência" como alguém que separa frutos bons e ruins num supermercado, não serve para o desenvolvimento nem do conhecimento humano nem da própria Ciência. Mas serve para Eli Vieira desqualificar toda a argumentação de Djamila Ribeiro baseando-se apenas em algumas questões superficiais e pontuais desta argumentação. Isso não se chama objetividade científica, pelo contrário, é mais um reflexo de uma subjetividade machista e racista que é típica da arrogância elitista academicista.

Thomas Kuhn, um semi-marxista da Filosofia da Ciência

Eli Vieira escreveu um texto mostrando algumas limitações do critério de Karl Popper. Ele afirma:
O desenvolvimento posterior da filosofia da ciência é onde eu buscaria respostas mais sofisticadas para um critério de demarcação entre ciência e não-ciência. Uma conciliação entre o pensamento de Thomas Kuhn (particularmente o pensamento de Kuhn reformado após as críticas ao "Estrutura das Revoluções Científicas", como pode ser visto no posfácio à segunda edição deste livro) e a teoria da ciência de Imre Lakatos é um ponto de partida.
Se tudo é ironia, aqui vai mais uma. Eli Vieira, que demoniza o marxismo como anticientífico neste mesmo texto, acaba sugerindo superar as limitações de Popper com a epistemologia de Kuhn. Entretanto, para desenvolver uma epistemologia da Ciência, Thomas Kuhn começa fazendo o mesmo que qualquer marxista faria: pesquisar nos livros de história para compreender o processo de mudança, de evolução pelo qual passou a própria ciência, ou as ciências. Kuhn redescobre, em parte, o método dialético empregado por Hegel e depois por Marx.

Kuhn afirma que toda ciência contém contradições que vão se acumulando e se desenvolvendo ao longo do tempo, até o ponto em que ocorre uma crise, o que faz com que a ciência entre em uma revolução, onde são construindo novos paradigmas científicos que substituirão os velhos paradigmas, e a ciência volta à estabilidade. Parece até uma paródia da descrição das revoluções que está no Manifesto Comunista!

Infelizmente, Thomas Kuhn não utiliza o método marxista em todo seu potencial. Ele não parece ter estudado como as instituições estatais e a classe dominante interferem na própria evolução da ciência, inclusive interferindo fisicamente para impedir que certas revoluções ocorram, por exemplo como aconteceu com Giordano Bruno e Galileu Galilei quando propuseram a teoria heliocêntrica: Giordano foi condenado à morte, Galileu teve que se retratar e recusar sua teoria para não ser condenado à morte.

A própria teoria de Kuhn também é um exemplo disso: a demonização do marxismo financiada pelo imperialismo ao longo do século XX (cujos interesses eram puramente os da classe dominante, ou seja, da classe burguesa, em especial da burguesia imperialista) fez com que Kuhn não tivesse acesso ao método dialético marxista para desenvolver sua teoria em todo seu potencial. A falta de compreensão do marxismo faz também com que muita gente rejeite a teoria de Kuhn com base em interpretações errôneas ou mesmo por terem sua consciência limitada pela lógica aristotélica. E é por isso que positivistas vivem descaracterizando Kuhn.